Ho fame
Alessandro
Manzoni é um dos meus autores preferidos. Para explicar a razão levaria aqui
muito tempo. O que importa é que, por uma ligação de afecto ou o que se queira
chamar, gosto de atravessar sempre que possível a Via Alessandro Manzoni em
Milão. Sai-se da Galeria de Victor Emanuel e vê-se em frente o Teatro della
Scala. Quem gosta de ópera já sabe do que falo.
É
uma rua rica numa zona rica numa cidade rica. Mesmo no início da rua, do lado
direito, vi por quatro dias um homem que dormia na rua e parecia não sair de
lá, de dia ou de noite. Sempre coberto com um édredon, deitado quase sempre, uma
vez vi-o sentado a olhar com concentração um ponto, não sei o quê.
As
palavras que com ele troquei são agora irrelevantes, e que Deus me julgue por
que só Ele pode conhecer. Mas das várias vezes que passei por ele vi o seu
olhar vazio, talvez sem motivação, ou sem estímulo. Ao seu lado uma cartolina
que dizia em capitulares a frase mais simples: HO FAME. Tenho fome.
Numa
rua rica num bairro rico num país rico num continente rico. Tenho fome. Notoriamente
italiano, portanto europeu, portanto responsável pelo colonialismo e pela
exploração dos outros povos. Um porco explorador sem redenção. Tenho fome. E
pensei como uma Europa rica acha que já resolveu o problema da sua pobreza e
pode abandonar-se às delícias da miséria alheia.
Tenho
fome... Chesterton dizia que se queríamos ver real diversidade devíamos apanhar
o metro e sair na estação seguinte e não ir à outra ponta do mundo. Compreende-se.
Quem precisa de andar centenas ou mesmo milhares de quilómetros para ver a
diversidade apenas mostra que não tem subtileza. Só lê o que aparece em letras
garrafais. Não percebe a importância fundamental das diferenças subtis. Precisa
do tamanho gigante para ler um texto. É um destituído, em suma.
Tenho
fome... A mensagem cristã é a de amar o próximo, não a humanidade. A primeira é
de Cristo, a segunda é de Victor Hugo. Alguém que não veja a diferença entre um
e outro mais uma vez mostra que não é subtil. Curtius dizia que Hugo era uma
cascata de banalidades e em parte tem razão. As suas proclamações são actos de
teologia definhada em alma de merceeiro. Não era um génio do pensamento. E por
isso é fácil de seguir por definhados do pensamento como ele. De novo, os bons
sentimentos...
HO
FAME. Os que se ocupam do Terceiro Mundo e não vêem a miséria à sua volta, os
que se consideram globais, ou seja, e em confissão plenária, rotundos, são
apenas os descendentes de pensadores de taberna, para quem o destino do seu
próximo é irrelevante, e a defesa dos fracos apenas prevenção contra os ataques
legítimos ao que são. Afirmando-se defensores dos fracos, pavoneiam uma
santidade que não têm e afirmam ninguém ter.
Tenho
fome... O que não perdoam ao próximo que tem fome concreta e não faz parte dos
seus pobres quadros conceptuais é que exista e que seja ao mesmo tempo uma
metáfora do que são. Uma miséria indiferente à miséria alheia que precisa criar
o espectáculo da preocupação quando a sua verdade é apenas a de destituídos. Já
não de pão, mas de espírito.
Alexandre
Brandão da Veiga