segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Contra o pequeno burguês VIII

 


No mundo em que nasci o pequeno burguês era visto como inferior e via-se como inferior. Foi o momento de glória da sua coerência. Hoje em dia diz que não há verdades e não tem identidade, o que quer dizer que só admite as falsas ou que vê como tais. O mundo em que eu nasci revoltava-me pela sua injustiça. Esse foi o meu erro. O mundo em que eles nasceram foi o da sua humilhação. Esse foi a origem das suas ilusões. Uma classe que passa a dominante por inadvertência, que descobre que a sua verdade é a de não a ter, e de ontologia apenas ter uma coxa antes suscitava-me a comiseração e algum constrangimento. Depois de ter conhecido o mundo à sua imagem percebi que dele fui expulso para ninguém em compensação entrar. É um mundo do vazio, que se compraz em anunciar o seu vazio e absurdo, agora não como uma fatalidade, mas como uma pena para quem dele não participa.

A finalidade era a de integrar todos e eu fui excluído. E a vontade de integrar aplica-se apenas a um estranho tipificado, a um exótico definido por guias turísticos. Seja. Porém, o resultado é um mundo em que o primeiro que se sente estranho é o pequeno burguês. Faz mesmo propaganda disto nas universidades de que se apossou. Ninguém está na sua terra. Os antigos senhores que já não existem, os exóticos que existem apenas na sua imaginação e os próprios pequenos burgueses que se sentem sem substância, sem essência, sem existir. No mundo que construíram só há estranhos, não há esperança e apenas ilusão. É o que o pequeno burguês ensina nas faculdades sobre o mundo. Apenas se esquece de dizer que fala do mundo sim, mas do que criou. Sem grandeza, sem verdade, sem ambição.

Podem julgar que insulto gratuitamente o pequeno burguês. Mas bem pelo contrário. Apenas faço compilação. Mera suma. Do que ele diz sobre o mundo, ou seja, sobre si mesmo. A artimanha do pequeno burguês é praticar o insulto e partir do princípio de que não percebemos que só pode ser a ele que se refere. Como em massa se dirige a pequenos burgueses, a estratégia funciona e deixa todos felizes, na medida que o possam ser. Sintetizá-lo, algo que o assusta. Fazer-lhe justiça, o que para ele é inesperado. Mostrar na sua nudez a sua essência, o que ele não deseja. Mas façamos-lhe jus. Ou seja, oponhamo-nos e insultemos. Mostremos-lhe que o mundo que nos apresenta é apenas um espelho, e até nisso é trivial.

Gostava de me despedir do pequeno burguês. Sem ressentimento. Mas em boa verdade já sem comiseração. E sem interesse. Mas não tem morada, nem identidade, nem mesmo face. Acha que depois de morrer vai ser apenas um saco de flatulência e num resto de piedade tendo a dar-lhe razão. Os seus vários esfíncteres são indistinguíveis. O seu mundo não acaba no Juízo Final, nem num crepúsculo dos deuses ou num acorde final. O seu mundo começa e acaba da mesma forma. Num flato. Bendito seja, que me fez perder tempo. Leve, pois, os seus bons sentimentos e os seus direitos do homem para onde lhe der mais utilidade. O seu mundo sem grandeza tem o defeito de não ser microscópico. E já com ele gastei mais poesia do que era de seu merecimento.

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

 

 

 

 

 

 

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quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Contra o pequeno burguês VII

 


 

O pequeno burguês é sempre «pós» qualquer coisa. Pós-moderno, pós-crítico, pós-estruturalista, pós-cristão. Com «pós» significa que vem depois de um mundo com uma identidade que não sabe definir - não acredita em essências afinal - e para justificar o mundo em que vive tem de mostrar como era má essa identidade. Não percebe - mas o que percebe ele? - que a designação de «pós» é a confissão de um beco sem saída. Depois do «pós» o que poderá vir? O «pós-pós»? Esta concepção do futuro mostra que não vê futuro, que é o burguês sem esperança. Chama-se de «pós» na ânsia de não haver um «pós» que após ele o negue. Tudo nele é confissão contrariada. Diz-se vindo do nada, apenas aceita um mundo feito do instante sem substância, e cria teorias cuja condição é não ter futuro. Por isso abdica do tempo, da realidade e da carnalidade. Prefere os direitos humanos e a tolerância, embora negue as essências e portanto também a humana e já não sabe o que mais há-de tolerar.

Está habituado ao escárnio. Do nobre pelo seu reles nascimento, do burguês pelos seus fracos feitos, do proletário pela presunção de se elevar acima de si. Esse escárnio antigo é-lhe insuportável, porque substantivo. Mas, eterno saudoso do escárnio, prefere ser gozado pelo miserável do terceiro mundo que não respeita as ordens de expulsão que os Estados pequeno burgueses emitem, lhe come os subsídios. O que é lixo para os Estados subdesenvolvidos e corruptos é para ele uma oportunidade de futuro. O mesmo em que não acredita. O futuro, desde que seja dos outros, é prometedor. O escárnio, desde que seja de nova fonte, é refrescante. Ele, que não acredita em identidade salvo a dos outros está condenado pela sua natureza em nada a mudar. De chacota da sua raça torna-se chacota das outras. E assim se sente em casa.

Espantam-se uns que nesta época haja tanto livro hermético, com uma linguagem arrevesada, definições contra o costume, línguas novas criadas para iniciados. Nenhum espanto pode haver. O pensamento sempre foi opaco para o pequeno burguês, por isso para ele produzir pensamento não é desvelar, tornar claro e evidente. É bem pelo contrário tornar opaco. Só a opacidade lhe cheira a pensamento. Por isso, se é pretensioso na sua linguagem, ao mesmo tempo está a ser sincero, a seguir a sua natureza, mais uma vez. Se ele percebesse, se ele fizesse perceber, não seria para ele pensamento. O seu estilo barroco e cheio de pretensões é apenas sinal da sua essência. É novo-rico. Ou peca por sobreabundância ou por escassez. Ninguém em casa lhe ensinou o sentido das proporções, e vai para a escola aprender com outros novos-ricos que proporções é coisa que não existe.



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terça-feira, 22 de agosto de 2023

Contra o pequeno burguês VI

 Para o pequeno burguês subir ao poder foi a oportunidade de desprezar livremente o pequeno burguês. E pode fazê-lo em boa consciência porque lhe faltam duas: a de que subiu ao poder, e a de que é a si que está desprezando. Sente que é de justiça ter nojo do que é, porque não percebe que começa a ser nojo exactamente por ser tão pouco e por isso impor ao mundo claudicante ontologia. Dilui o ser, e a partir desse momento pode dizer tudo e o seu contrário, rindo da moral enquanto apenas sabe moralizar. Quando se vem de um mundo latrinário toda a origem parece porca. E não compreende que não são porcas as origens por definição, mas apenas a sua.

Como burguês, é puritano. Não pode ter ao mesmo tempo Deus e sexo. Mas a pureza para o grande burguês está associada a uma disciplina. Ou o percurso kantiano, ou o livro de etiqueta e bons modos que supre a deficiente educação que teve em casa, ou o ordinário da missa. O pequeno, como é sem esperança, perde a noção de prudência. A pureza acaba por ser entendida literalmente como «pur», fogo. Tudo tem de acabar numa pira, no limite funerária, em geral de auto da fé, em que são destruídos livros, apagados autores, destruídas tradições. Apenas sobram as culturas exóticas, porque só elas podem ter substância. Não as percebe, e isso salva-as. O mundo de origem do pequeno burguês, o instituído pela nobreza cristã, tem de desaparecer porque o insulta, e é o único em que vê substância, é o único em que acredita. Diz-lhe: vens de baixo e nunca sairás do baixo. Queimando esse mundo aparece-lhe um outro que também o irá condenar como branco, de origem cristã e reles. Mas as condenações pretéritas têm mais peso para o pequeno burguês. Homem sem esperança está preso ao passado. E tudo é melhor que o inferno de ser quem é. O seu delírio de pirómano vai-o levar a ser queimado por outras culturas. Mas esse é o seu futuro. E do futuro o pequeno burguês nada tem e nada percebe. Não se sente perdedor de grande coisa, porque o futuro nunca lhe pertenceu. Por isso, e sem passado, come desesperadamente o presente.

Os tiranos da época contemporânea eram pequenos burgueses. A sua base de apoio pequeno burguesa. Não me interessa saber se as ditaduras são de esquerda ou direita. A grosseria, a crueldade, a falta de liberdade vêm da mesma cloaca. O Mussolini socialista não foi substituído por um aristocrático fascista. A origem, o aspecto, os modos são os mesmos. O seu nojo da liberdade revela-se nas suas teorias, que dizem que somos dominados pela linguagem, pelo contexto social ou sexual, vítimas tanto quanto destituídos de autonomia. No fundo, as subtis destrinças entre as várias teorias são de somenos importância. O pano de fundo é a escravidão em relação a algo. Se a União Soviética, o mercado, a China, o islão é irrelevante. O pequeno burguês só está em casa numa prisão. Qual é, só folclore. E se ele se apega ao folclore diz apenas de onde vem. Quando doutorado perora, vemos-lhe a anca a descair para um vira ou um corridinho.

 

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segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Contra o pequeno burguês V

 

Um mundo escasso ontologicamente apenas podia produzir um efeito: um mundo de moralidade. O pequeno burguês vê tudo na perspectiva da moral porque não tem substância. A própria natureza é para ele moral. Moralmente perfeita e atacada pelo ser humano, que mais não é que um piolhoso. Lembra-se assim sempre dos seus antepassados quando quer caracterizar o humano. Não há uma essência humana, mas direitos do homem. Diz-se para além de bem e mal, mas a sua linguagem trai o seu pensamento exclusivamente moral: «é indecente», devemos ser solidários (conceito repelente se o há), temos dívidas em relação às outras culturas.

Uma parte de si sente-se excitada por usar uma linguagem heróica, mas acaba sempre no discurso da moral e dos bons costumes. Dar o seu sangue como os heróis? Nem pensar. Byron dá o seu sangue, os filósofos de salão dizem que devem ser os filhos dos outros a dar o seu. Porque não quer dar o seu sangue? Porque é cobarde, mas também porque é lúcido. Sabe que iria dar algo sem valor, mas é o único tesouro que tem. Como pequeno burguês tem um pé-de-meia: é o que vale a sua vida.

O seu sucesso é secreto. E de novo não há cabala. Com a vitória da democracia governa o povo. O pequeno burguês sabe-se povo. Tudo faz sentido. Mas desse povo em sentido jurídico também faz parte o proletariado, o grande burguês... e o nobre. Isso ele esquece. Tornando-se a maioria do povo, por a maioria ser pequeno burguesa, assume um poder sem disso ter consciência. Como Monsieur Jourdain, fala em prosa e não o sabia. Passou a ser soberano e julga que é uma abstracção chamada povo que o é. O mundo passa a ser moldado pela sua pequenez e nem se apercebe. Reina por descuido, decide sem saber.

O pequeno burguês é obediente. Aceita qualquer submissão desde que velada. Porque é velada a sua vida. Escondida, coberta, por isso sem mistério. É aliado dos Estados Unidos. Aliado, ou seja, obediente. Há bases americanas na Europa, não há bases europeias nos Estados Unidos. A assimetria não o alerta. Vive obediente desde que mudem as palavras. Submisso em relação à China que merece ser mais poderosa que a Europa. Porquê? Porque teria um privilégio aristocrático: a de ter sido potência antes da Europa. É tudo falso nisto, mas mais uma vez está disposto a aceitar todas as aristocracias, salvo a única que acha verdadeira, a dos nobres que o dominaram.

Desde a II Guerra Mundial começámos a ouvir uma intensificação da crítica ao pequeno burguês. Crítica? Sejamos francos. Desprezo, declaração de nojo. Da parte de quem? Sartre, Kerouac, Lacan, Barthes, Foucault, depois Derrida, Deleuze. Mudam os nomes dos movimentos, existencialista, beatnik, estruturalista, pós-moderno. De comum uma coisa, e já é muito. O desprezo do pequeno burguês. Mas eram porventura aristocratas, proletários? Nem de propósito: são todos pequeno burgueses. Como o apogeu do burguês coincide com o cume do seu desprezo, o pequeno burguês sobe ao poder sem disso ter consciência e não sob um banho de flores, mas de tomates podres.

 

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quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Contra o pequeno burguês IV

 


 

Que pode fazer o pequeno burguês? Sem o passado do nobre, sem a glória presente do burguês, sem as promessas de futuro do proletário, que se pode dar a si mesmo? Tem de se construir um mundo de passado sem valor, um presente que é mera promessa, e um futuro que será sempre equívoco. O seu mundo, fá-lo à sua imagem e semelhança. E enche as escolas, as universidades, os jornais dos seus representantes. É vencedor pelo número e pelas regras democráticas, falta-lhe construir o seu triunfo.

Não o vejo referido. Mas toda a ontologia nasce de uma antropologia. Nos diálogos platónicos o «prepon», o conveniente, é usado como critério, na metafísica aristotélica os critérios homéricos são usados para desembocar no princípio da parcimónia: é melhor que seja um só a governar... O mundo do pequeno burguês é sem ontologia ou com fraca ontologia. Não tem materiais para a construir e por isso nega que seja possível a construção. O Maio de 68, o pós-modernismo e pós-estruturalismo estão cheios dessa ontologia oca, sifilítica, pronta a colapsar ou já em escombros. Não um relativismo, porque essa é uma atitude aristocrática, mas uma fúria perfuradora, uma vontade de destruição.

«Destruktion» dá desconstrução. Dosse bem o mostrou: o conceito de desconstrução vem do muito nazi Heidegger. Não se quer alargar horizontes, quer-se abater as torres que os permitem amplos. Um mundo à imagem do pequeno burguês não tem essência porque esta assenta numa antropologia aristocrática. Se virmos todos de baixo ficamos todos iguais. Não há quem tenha o privilégio da hierarquia.

O pequeno burguês é o burguês que perdeu a esperança da grandeza. O burguês pode não ter o sangue nobre das epopeias, mas pode ao menos aspirar à superioridade filológica da sua análise. O proletário pode sonhar ser o próximo herói. Com um custo: só colectivo. Nenhum pode ser Aquiles, mas há a ambição que todos o sejam. Tendo perdido a esperança da grandeza, a sua grande inimiga é a hierarquia. Corrijo: não todas as hierarquias, apenas as que o condenam nativamente.

Que haja hierarquias que condenem sobretudo a nobreza, a única que no fundo tem por verdadeira e por isso quer apagar, é algo que lhe agrada. O ritual do chá japonês é profundo, o europeu vácuo. A personagem dravídica sente-se igual aos europeus mesmo se baixa os olhos perante o brâmane. Que um muçulmano espanque a mulher faz parte de uma intimidade que não podemos violar, que um príncipe europeu traia a mulher, sinal da sua menoridade. Não são todas as hierarquias que condena, mas apenas as que o condenam.

Não são outras culturas que respeita. E está mesmo disposto a ser por elas desprezado. Porque no fundo não dá importância ao seu juízo. Quando lhe dizem que a Europa é nova-rica perante o antiquíssimo Oriente aceita a ideia com alegria, não por humildade, mas por ressentimento. O importante é que a nobreza que sempre o desprezou seja ela mesma chamada de nova-rica. Quanto a si sabe que não tem redenção, ninguém irá incensar o seu ilustre nascimento. Que possa dizer que a nobreza que o dominou é ela mesma de fresca data, baixo preço a pagar pelo desprezo que suscita noutras culturas. Ao desprezo está habituado. Prefere o de criaturas a que não dá importância ao dos seus antigos senhores.

A sua relação doentia com as hierarquias torna o pequeno burguês arredio a toda autoridade ou submisso a qualquer uma. É o mesmo que dotado de espírito democrático aceita o fascismo ou Mao ou diz que é proibido proibir. Foi-lhe dada a soberania pelas constituições e não pelo nascimento e está pronto à submissão porque ser soberano significa hierarquia. É contra a clara separação entre os direitos dos nacionais e dos estrangeiros porque não se acha merecedor de tratamento especial e está pronto a manter a tradição da sua família: a de obedecer a outros. Só deseja que os outros não sejam os mesmos. Ou seja, a antiga nobreza que o senhoriou ou a grande burguesia que o explorou. Se os outros forem antigos escravos dos seus antigos senhores está disposto, não a confraternizar, mas a obedecer. É de sua natureza estar submetido, é esse o seu estado natural.

 

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segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Contra o pequeno burguês III

 


 

Bem o sabemos: é muito arriscado indicar inícios e em última análise ocioso. Mas inevitável. E há pelo menos um início e um sintoma de que algo mudou. O início, o termo da I Guerra Mundial. O sintoma, o «Ensaio sobre o Dom» de Marcel Mauss.

Com o fim da Grande Guerra logo em 1919 em vários países ganham as eleições os candidatos dos pequenos burgueses. O condomínio entre a nobreza e a grande burguesia mostrou-se falho. Um mundo governado em condomínio mata-se a si mesmo. O pequeno burguês tem medo dos grandes movimentos da História. E entre o proletariado que o torna irrelevante ou os senhores que lhes comeram os filhos prefere soluções pacatas, razoáveis, acomodadas.

Mauss é um sintoma. Mauss e o seu comentador oficial, Lévi-Strauss. Qual a grande novidade do «Ensaio»? As ciências humanas não podem ter a objectividade da física. É um tique de quem não estudou física dizer o que ela é para depois dela se distinguir. E o que resulta desta ausência de uma absoluta irrevogável objectividade? A subjectividade é inevitável. Já que assim é, vamos reconhecê-la, e vamos usá-la. É o que pomposamente se chama de integração da subjectividade. O cientista traz-se consigo, ao menos que diga quem é.

Em si a ideia pode ter algum assento. O maior problema surge quando se começa a descrever essa subjectividade. Não. O maior problema começa quando em vez do dito cientista dizer que é a sua subjectividade e apenas ela, decide universalizá-la. E diz: esta é não a minha subjectividade mas a nossa. E dá mais um passo: é nossa, e ela mesmo inevitável.

A partir deste momento tudo passa a ser perigoso. Porque em vez de descrever as suas desgraças, o seu discurso passa a ser uma censura de desgraças colectivas. Qual o seu conteúdo em Mauss? Nós, resta saber que nós, com a nossa mentalidade mercantil e materialista, nunca perceberemos o dom gratuito, e como toda uma sociedade se pode construir com base nele.

Eu tinha quinze anos. Não vinha do mesmo passado que Mauss. E graças a Deus tinha uma formação histórica ou que ele não tinha ou esqueceu. Como? Disse eu. Nós? Que nós? Os burgueses? Seja. Mas o pobre Mauss não percebeu que em passado pagão e em dois mil anos de cristianismo o dom é fundador das nossas sociedades? Dá o nobre, o rei e a Igreja. Quando não dão perdem o seu estatuto social. Violam os seus deveres. Quem é este nós de Mauss? Ele? A família dele? A sua classe. Aceito. Mas não fala por mim e pela minha gente.

Aos quinze anos mostrei a minha repulsa por esta ideia. À minha volta os meus colegas anotavam obedientemente. Seriam eles também como Mauss. Este foi apenas um início. Depois diziam-nos que somos uma sociedade binária, que nunca iria compreender outras estruturas de pensamento. Realmente? Como podia uma cultura que há dois mil anos assenta na Santíssima Trindade ser incapaz de ir além do binário? Fez-se silêncio. Eu tinha cometido o crime de falar de teologia como antes tinha praticado o delito de referir a História.

 

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sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Contra o pequeno burguês II

 

O burguês, para se fundamentar, procura desesperadamente um valor universal que lhe diz ser mais que um plebeu. É inglês, ou de raça branca ou civilizado. E pertencendo a uma nova casta nobre pode avançar pelo mundo certo da sua legitimidade. Ou não. O nobre continua ao seu lado mostrando-lhe que é menos, como reconhece Mann nos Buddenbruck, mas convence-se que no fundo essa inferioridade é inofensiva e se dilui no grande plano da providência universal. É burguês, é certo, mas antes é inglês ou branco ou civilizado.

O problema do pequeno burguês é que reúne dois estigmas: é burguês e é pequeno. O burguês resolveu essa equação nobilitando-se. Aprende bons modos, faz grande cultura, assume os heróis aristocráticos como seus. Os heróis de Ariosto e Camões não foram depostos com o advento da burguesia. Apenas se estendeu a sua vigência. Herói podia ser não apenas o nobre, mas o burguês que o tomasse por modelo.

Solução talvez não muito durável, ilusão talvez. Mas o paradigma não muda. A estabilidade da civilização parece assegurada, mesmo que se tenha alargado o universo dos seus herdeiros maiores. Todos são iguais pelo nascimento para todos poderem ser heróis. Mas ninguém se ilude: nem todos o serão. O plebeu satisfaz-se com a possibilidade desde que lhe deixem fazer o esforço. A transmissão da virtude, o velho conceito aristotélico da nobreza, está garantida, não por sangue selecto, mas por uma vida exigente. Teve alguns bons resultados. Não por muito tempo.

E compreende-se. É que se o burguês exige a igualdade das possibilidades carece da desigualdade dos resultados. No final, tem de haver pódios, e o grande burguês não quer estar ao lado do pequeno. O pequeno é deixado a si mesmo, não apenas como o que nasceu mal, porque plebeu, mas que sucedeu mal, porque continuou pequeno.

O proletariado não tem valor nenhum em nenhuma cultura. A plebe romana, as castas baixas são geridas como um problema, uma intempérie, um fenómeno da natureza. Reconhece-se o seu poder, mas não passa pela cabeça de ninguém dar valor ao refugo da sociedade. Todavia, o pequeno burguês tem azar. Na civilização cristã o proletariado rapidamente se torna figura crística. É por sofrer, por ser frágil, que tem valor e um destino. Se o pequeno burguês existisse numa sociedade pagã podia viver consolado por abaixo de si ter os reles, os mais baixos. Mas o cristianismo tira-lhe esse gosto.

A nobreza tem a dimensão do passado e da glória. E como Darwin observou, da beleza, porque a nobreza pode escolher as mulheres mais belas. Baddo plebeia e bela entre os godos e várias imperatrizes bizantinas e russas são disso exemplo. Não pelo sangue, não pela glória, não pela distinta beleza se destaca o pequeno burguês. A herança pagã condena-o.

Sobra o burguês, o grande, o seu irmão de sangue, como ele vindo da gleba. Mas aquele faz tudo para se diferenciar do pequeno. Não quer a sua presença, não quer o seu exemplo, não quer o seu parentesco. Para onde se pode virar o pequeno burguês?

 

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quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Contra o pequeno burguês I

 

 

 


Os tratados antigos tinham frequentemente títulos como «contra» ou «in». Aprendíamos em latim que se seguia um acusativo com uma ou outra preposição. Uma e outra expressão, independentemente das subtis diferenças que entre elas se encontram, querem dizer a mesma coisa: contra alguém, algo ou alguma ideia. Títulos brutais para uma época delicodoce como a nossa, mas que têm o mérito de serem inequívocos. Sim, o que mais detesta o pequeno burguês: a franqueza, a inequivocidade.

Eis-nos dentro da questão. Temos de a levar com tempo. Ponhamos primeiro o que está primeiro. Eu, que nasci noutra época e noutro mundo, nada tinha contra o pequeno burguês. Era uma realidade distante, estranha, com a qual tive de lidar pouco. Não me ocupava.

Com o tempo os meus contactos com os pequenos burgueses aumentaram. E com eles vieram novos sentimentos. Umas vezes constrangiam-me por imitarem, e mal, os tiques aristocráticos. As pequenas burguesas queriam ser senhoras. Os pequenos burgueses diziam que não eram quaisquer uns, e a simples necessidade de o dizer invalidava a sua pretensão. Outras vezes sentia pena, mas sempre uma profunda estranheza. Não era a minha gente, o meu mundo.

Percebi que se revoltassem por serem quem eram, que quisessem ser mais, e serem vistos como mais. Achei justo. Eu não queria ser quem eles eram, e não conhecia quem o quisesse. A legitimidade da sua revolta assentava precisamente no pouco que eram.

Levei muitos anos a perceber no entanto que, o que eu via como um bicho algo deplorável mas inofensivo, estava numa marcha de tomada de poder que nada tinha de cabala - era exigir um espírito sistemático de que não é capaz, e desemboca no «é proibido proibir» - mas de uma lógica que resultava da progressiva tomada de poder pela burguesia.

O século XIX pode ser o do triunfo da burguesia como lugar-comum mas não foi o do monopólio da burguesia. A nobreza mantém um imenso poder com as segundas câmaras, o corpo de oficiais, o diplomático, mas também vastas propriedades e prestígio da classe. Mas a nobreza impõe-se também como paradigma. A cultura superior opõe-se à inferior, o bom gosto, a noção de etiqueta, tudo vem da nobreza. O burguês, para se elevar, imita o nobre aceita-lhe os princípios. Se a nobreza lê Homero e Dante e ouve Mozart, a burguesia não se pode quedar pela música pop e a literatura de cordel. Pode muitas vezes ter mais afinidades com esta cultura menor, mas institui como princípio que é menor. Aceita o paradigma aristocrático, em suma.

O problema do burguês é que nunca está em casa, o seu próprio princípio o condena. Se qualquer um pode chegar onde está quer dizer que nunca deixa de ser qualquer um. Para ser mais que os outros, tem de adoptar um princípio que o nega: o aristocrático. A ideia da superioridade de um povo inteiro ou de uma raça não cabia num aristocrata. Que todos os venezianos fossem superiores a todos os outros povos negava o que era uma evidência para um nobre veneziano: que tinha mais afinidades com o nobre florentino que com o gondoleiro.

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