Eu e sim
Lembro-me que quando
aprendi alguma coisa de gramática polaca o meu professor ficava muito espantado
porque «sim» em polaco era «tak», mas os bons dos polacos quando queriam dizer «não»,
por vezes diziam «nie tak». Para ele pareceria querer dizer «não sim». Sabia bem
mais de polaco que algum dia hei-de saber, mas nisto o bom do latim ajudou-me.
Em latim «sim» traduz-se em
geral por «ita». Mas «ita» originalmente não quer dizer «sim». Mas «assim». Em
boa verdade, a negação, do que consigo perceber, é sempre muito mais primitiva
que a afirmação. Pelo menos nos advérbios, entenda-se. Em bom rigor, tanto um
polaco como um romano não está a dizer «sim», mas «é assim, é assim como
dizes». Apenas confirmam através do modo.
Por outro lado, a palavra
«eu» não é notada na sua estranheza pela maioria dos falantes. «Ego» em latim e
grego, tem sempre formas muito diversas no nominativo (forma do sujeito) e nos
outros casos.
Pode-se dizer que com a
terceira pessoa se passa o mesmo. Em boa verdade, «ele» não é necessário nas
línguas indo-europeias, porque são línguas ricamente flexionadas. A própria
flexão do verbo em geral já nos mostra de que pessoa estamos a falar, se da
primeira, se da segunda ou da terceira.
A segunda aparece-nos como
mais natural. «Tu» é sempre um chamamento natural. Quando digo algo, não preciso
de dizer «eu digo algo». (O francês com a sua absorção dos sons finais tornou
mais importantes os pronomes pessoais, mas essa é uma outra história: em «je
dis», «tu dis», «il dit» diz-se «di» em todas as formas).
A terceira pessoa nasce
muitas vezes de uma indicação, de um «aquele» para o qual se remete.
A verdade é que a primeira
pessoa não é tão evidente. Apontar para mim quando sou eu a dizer algo, quando
em acréscimo a língua separa claramente pela flexão que é a mim que me refiro,
não parece muito necessário.
Por isso o «sim» e o «eu»
são das mais complexas construções da língua que podem existir. Pressupõem uma consciência
do discurso (sim) e das pessoas que o pronunciam (eu). Requere um grau de abstracção,
no fundo, uma teoria, sobre a comunicação e a acção que não são simples.
A questão é que o que é primitivo
nos invade a todo o momento. O estado natural é o estado precisamente: natural.
Uma casa constrói-se sobre terrenos não civilizados, um jardim sobre terras não
cuidadas, todos nós assentamos sobre a selva, o deserto, a savana. Que o homem
com o seu trabalho nos tenha dado a ilusão de que a natureza está no passado,
apenas é sinal de que nos esquecemos que a camada de civilização em geral é
muito estreita, fina e frágil.
O mais difícil é sempre
dizer «sim». Dizer «não» apenas define o que afastamos, não o que acolhemos. Afastando
agora uma coisa, há mil que podemos estar a afastar ou a receber ao mesmo tempo.
Mas acolher uma coisa, significa integrá-la em nós, fazer-nos uma com ela na
nossa vida.
Dizer «eu», significa que
não posso apelar em tudo para um mundo que está fora de mim. Havendo um eu, sou
obrigado a responder por ele. O caminho mais fácil é dizer que «eles» são culpados,
ou «tu» és culpado, que sou apenas uma peça flutuante no mundo a quem não podem
ser atribuídas culpas. Dizer «eu», significa que existe quem acolhe partes do
mundo, que se fazem escolhas, e essas escolhas são feitas por alguém: eu,
precisamente.
O verbo «esse» em latim
quer dizer «ser» e «comer», como aliás em alemão. Há quem queira fazer nascer o
verbo «ser» da ideia de comer. Que seja. De novo a mesma ideia: somos apenas
quando temos a faculdade de acolher o mundo.
Os sinais de barbárie encontram-se
quando dizemos que os outros são sempre culpados. O sistema capitalista, o
sistema político, os políticos, quem seja. Estamos a dizer que não. Que não
somos responsáveis por nada. Estamos a dizer que o eu não existe, ou é fraco,
mera folha ao vento sem poder próprio. Estamos a dizer que nada somos, porque
nada podemos acolher como nosso. Quando a culpa é dos outros, é sempre dos
outros, é de nós que falamos, de como somos pouco, fracos, não acolhedores. De
como somos folhas ao vento, facilmente levadas pela mais pequena lufada. Se
calhar quem o diz tem razão. Pode-se dar o caso que esteja apenas a confessar quão
primitivo é. Ter razão, sem ser, sem ser eu, sem ser capaz de dizer que sim.
Instrumento negador atirado por qualquer brisa, vale o que vale a folha caída. Recordação
poética, mas apenas para quem pode dizer eu, sim, e que é.
Alexandre Brandão da Veiga
(mais)