Como nos verão os vindouros?
Mas assim como fazer cartas persas permitiu, pelo distanciamento geográfico, ver o mundo onde estamos, da mesma maneira afastarmo-nos um pouco no tempo para o futuro permite-nos ver com maior perspectiva o que somos.
Como aparecerá a nossa época aos olhos dos vindouros?
As épocas míopes vêem-se mais pelo que desprezam no seu passado no que a ela estão agarradas. Para um romano os seus maiores eram referência. A decadência em relação aos tempos primevos da República foi sempre tema recorrente desde a maturidade da mesma até ao fim do Império. A cultura cristã, para se impor na cultura antiga, teve de salientar a sua antiguidade por estar ancorada no judaísmo. Lembremo-nos que uma das acusações que se lhe fazia era a de novidade. Uma acusação, entenda-se, não um mérito. E no entanto, ninguém pode negar o papel de Roma na História.
As projecções de futuro reduzem-se a uma ficção que se apelida de científica, mas em bom rigor é meramente tecnológica. O que nos apresentam são culturas, não mais sábias, mas que viajam mais depressa, curam melhor as doenças, mesmo se se vestem com um gosto duvidoso. A incapacidade de antecipar, de imaginar novos gostos, novos valores, novas formas de comportamento, é evidente. Imitações boas ou más (geralmente más) da Antiguidade, da Idade Média repetem padrões, não os criam. A nossa época gosta de lustro. O projecto político, a antecipação realmente estratégica, essa quase inexiste. Tirando o projecto europeu, tão mal tratado pelos seus usuários, nada de futuro, de nova ideia se apresenta na política mundial.
Um pateta lê um livro, não sabe uma palavra de sânscrito ou pâli, e toca de dizer que é budista ou adorador de Krishna. Outros inventam neopaganismos que têm mais similitude com a banda desenhada que com o verdadeiro sacrifício humano. Outros fazem-se adoradores do diabo, ignorando que ele não perde tempo com medíocres. Há muitos candidatos a vender a alma, mas a procura é exigente e majestosa. Analfabetos não lhe interessam. Outros ainda encontram no Terceiro Mundo culturas integradas, onde as pessoas vivem alegremente imersas numa cultura. E daí criticam a cultura europeia por não ter essa capacidade de integração do homem na vida. Autobiográfico empedernido o turista fala sempre do seu próprio umbigo.
A bíblia da época está nos anúncios publicitários, nas frases tão rápidas nos debates que se reduzem à condição de meros slogans, sem demonstração, simples expressões tabeliónicas de revisor oficial de contas, em jornais, em sítios da Internet que se vasculham distraidamente. E estudo, a releitura, a memorização, a atenção deixaram de ter espaço nobre na nossa cultura sendo reduzidos a uma semi clandestinidade.
A quarta, o desenvolvimento material, sobretudo tecnológico. No entanto, não podemos esperar que os vindouros nos idolatrem nesta matéria. Em primeiro lugar, porque é natural que estejam mais desenvolvidos tecnologicamente que nós. Admiraram a aceleração, mas não se sentirão esmagados pelos resultados. Por outro lado, é verdade que a Europa, mais que qualquer outro continente, conseguiu um equilíbrio entre prosperidade económica e redistribuição da riqueza raro na História. Mas essa era está a esgotar-se, pelo menos no modelo inicial. É comum os eruditos admirarem grandes realizações materiais. Os turistas fazem-no também por breves momentos. Mas ainda hoje em dia é mais comum a paixão pelos gregos que pelos romanos. É que as obras que tocam o coração humano e o seu espírito deixam marcas mais profundas e mais excitantes. E a nossa época anda algo falha de Leibniz.
Muitos de nós se riem da toga romana, da peruca da Europa clássica, da cota de armas cruzada. Esquecemo-nos que o futuro se vai rir de nós, com a diferença que tenho francas dúvidas que sinta uma imensa admiração. A toga romana produziu Virgílio, a Europa clássica Bach a cota de armas cruzada produziu Dante. As nossas calças apenas se borram. Sem heroísmo, sem projectos de longo prazo, com um sorriso alvar e condescendente típico do novo-rico perante tudo o que é sério, eterno, ou absoluto, o pateta contemporâneo passeia-se no transitório e julga-o definitivo. Mas, sabendo que não o é, e porque tem tanto medo de morrer como de ser eterno, diz que a morte e a eternidade têm o mesmo valor, ou seja nenhum.
Os vindouros, esses, rir-se-ão uns, ou terão piedade outros, de tanta estreiteza, de tanta obcecação com o presente, tanta ânsia de se estar onde não se está, de tanta superficialidade e distracção e de tanto mal-estar perante conquistas técnicas que afinal foram gloriosas mas tornaram-se banais. E o riso só não será maior caso respeitem um pouco mais os seus antepassados que nós. A nossa redenção estará em serem eles o oposto do que nós somos.
Alexandre Brandão da Veiga