A chamada “lenda negra” espanhola – que a nós, portugueses, muito interessa –, é, em boa medida, fruto de uma propaganda de muitos séculos que, levada a cabo pelos opositores do então império espanhol, erigiu em preconceito apenas uma das partes da verdade. Daqui resulta, entre outras coisas, que essa propaganda ainda hoje continua, quanto mais não seja por inércia, sendo facilmente visível, por exemplo, em algumas das produções culturais (sobretudo as dirigidas às massas) da Inglaterra.
Sendo obviamente um facto as violências e as desumanidades perpretadas pelos espanhóis, sobretudo nos séculos XV e XVI, em relação aos protestantes, aos judeus e aos índios da América, é preciso não esquecer, como quase sempre é esquecido (sobretudo ao nível da divulgação às massas), não só que esses factos não podem ser julgados pela consciência dos homens do século XXI, como ainda – e isto é o mais importante – que também é do nível dos factos a defesa heróica, santa e estranhamente eficaz que os mesmos espanhóis fizeram dos índios da América.
É nesse sentido que aqui transcrevo, a partir do relato que dele fez, mais tarde, Bartolomeu de las Casas, o famoso sermão que o frei António de Montesinos fez ano de 1511 na então ilha de la Hispaniola, em defesa dos direitos dos índios. É o princípio de uma história gloriosa, em que intervieram primeiro os espanhóis e depois os portugueses, verdadeira – e melhor – origem dos hoje universais direitos do homem.
«Naquele tempo, já os religiosos de São Domingos consideravam a triste vida e o duríssimo cativeiro que padeciam os naturais desta ilha – a ilha era a Hispaniola, o actual Haiti –, e como se consumiam sem que disso se compadecessem os espanhóis que os possuíam, para quem não eram mais do que animais sem proveito depois de mortos, pesando-lhes apenas que morressem pela falta que nas minas de ouro e nas fazendas lhes faziam. (...) Claro que em tudo isto havia entre os espanhóis o mais e o menos, (...) mas não me recordo de conhecer um só homem piadoso para com os índios, dentre aqueles que se serviam deles, a não ser um, que se chamou Pedro de la Rentería. (...)
Ora, os ditos religiosos, olhando e reparando e considerando, durante muitos dias, as acções dos espanhóis para com os índios, e o nenhum cuidado que tinham com a sua saúde corporal e espiritual, e a inestimável inocência, paciência e mansidão dos índios, começaram a juntar o direito e o facto (...) e a tratar entre si da fealdade e enormidade desta injustiça nunca vista, perguntando-se: «Acaso estes não são homens? Não se devem com estes guardar e cumprir os preceitos da caridade e da justiça? Não tinham estes as suas próprias terras e os seus senhores e senhorios? Ofenderam-nos estes em algo? Não somos nós obrigados a predicar-lhes a lei de Cristo com toda a diligência para convertê-los? Pois como podem as tantas e tão inumeráveis gentes que havia nesta ilha, conforme nos dizem, em tão pouco tempo, que é obra de quinze ou dezasseis anos, ter tão cruelmente desaparecido?»
Um destes espanhóis, que matara a sua mulher às punhaladas, por suspeita de adultério, vivia há 4 anos fugido nos montes quando ali chegaram os dominicanos. Siceramente arrependido, durante muito tempo lhes rogou que lhe «dessem o hábito de frade leigo, com o qual pretendia, com a ajuda de Deus, servir toda a sua vida. Deram-lho, com caridade, por verem nele sinais de conversão e ódio da vida passada e desejo de fazer penitência, a qual depois fez muitíssima, tendo nós por certo que morreu mártir (...).
Este, a quem chamaram frei João Garcés, e que no mundo era João Garcés, de mim muito conhecido, contou pormenorizadamente aos religiosos as execráveis crueldades que ele e todos os demais tinham feito a estas gentes, tanto na guerra como na paz, se é que podemos chamar-lhe paz, tal como ele as tinha visto. Os religiosos, assombrados perante obras tão inimigas da humanidade e dos costumnes cristãos, ganharam então o ânimo para impugnar o princípio e o meio e o fim daquela nova e horrível forma de tirânica injustiça (...) e deliberaram predicá-lo publicamente nos púlpitos e declarar o estado em que estavam os nossos pecadores que mantinham e oprimiam aquelas gentes, e de como nesse pecado morriam, galardão que receberiam por via das suas desumanidades e cudícias.
Acordam todos os seus letrados (...) o primeiro sermão que sobre esta matéria deveria predicar-se, e todos o assinam com os seus nomes (...). Impôs o padre vigário, - frei Pedro de Córdova -, sob regra de obediência, que aquele sermão fosse pregado por aquele que, depois dele, era o seu principal pregador, o qual padre se chamava frei António de Montesinos. (...) Este padre tinha o dom da pregação, era duríssimo na repreensão dos vícios e, acima de tudo, nos seus sermões muito colérico, eficacíssimo, razão pela qual se cria que davam os seus sermões muito fruto. A este, por ser muito animoso, cometeram o primeiro sermão desta matéria, tão nova para os espanhóis desta ilha; e a novidade não era outra senão afirmar que matar estas gentes era pecado.
E como era o tempo do Advento, acordaram que o sermão se predicasse no quarto domingo, no qual se canta o Evangelho em que o evangelista São João refere: «Enviaram os fariseus a perguntar a São João Baptista quem era, e ele respondeu-lhes: Eu sou a voz que brada no deserto.» E para que toda a cidade de São Domingos ouvisse o sermão, e ninguém faltasse, sobretudo os principais, convidaram o segundo Almirante, que então governava a Ilha, e os oficiais do Rei e todos os letrados e juristas que havia, cada um em sua casa, dizendo-lhes que, no Domingo, na Igreja Maior, eles fariam um sermão com o qual queriam dar-lhes a conhecer uma certa coisa que a todos muito tocava, pelo que lhes rogavam que fossem ouvi-lo (...).
Chegado o Domingo e a hora de pregar, subiu ao púlpito o dito padre frei António de Montesinos e tomou por tema e fundamento do seu sermão, que levava já escrito e assinado por todos os outros: Eu sou a voz que brada no deserto. Feita a sua introdução e dito algo que dizia respeito à matéria do tempo do Advento, começou a encarecer a esterilidade do deserto das consciências dos espanhóis desta Ilha e a cegueira em que viviam; o perigo em que andavam da sua condenação, não advertindo os pecados gravíssimos em que com tanta insensibilidade estavam continuamente implicados e nos quais morriam. E logo voltou ao tema, dizendo: “Para vo-lo dar a conhecer subi eu aqui, eu que sou a voz de Cristo no deserto desta Ilha. E convém, portanto, que, não de qualquer maneira, mas com todo o vosso coração e com todos os vossos sentidos, a oiçais; esta voz será a mais nova de todas as que ouvistes, a mais áspera e dura e a mais espantosa e perigosa das que jamais pensastes ouvir. (...) - E continuou: - Esta voz diz que todos estais em pecado mortal e que nele viveis e morreis, pela crueldade e tirania que usais com estas gentes inocentes. Dizei: Com que direito e com que justiça tendes em tão cruel e horrível servidão a estes índios? Com que autoridade haveis feito guerras tão detestáveis a estas gentes que estavam nas suas terras pacíficas e mansas, nas quais tantas infinitas delas haveis consumido com mortes e estragos nunca ouvidos? Como os tendes oprimidos e cansados, sem lhes dardes de comer nem os curardes das suas enfermidades, das quais padecem pelos excessivos trabalhos que lhes dais? E das quais morrem, ou, melhor dizendo, os matais, para sacar e adquirir ouro cada dia? E que cuidado tendes de quem os ensine na sagrada doutrina e que conheçam a Deus, seu criador, sejam baptizados, oiçam missa, respeitem as festas e os domingos? Estes não são homens? Não têm almas racionais? Não sois obrigados a amá-los como a vós mesmos? Isto não o entendeis? Isto não o sentis? Como estais tão profundamente adormecidos em sono tão letárgico? Tende como certo que, no estado em que vos encontrais, não vos podereis salvar mais do que os mouros, ou os turcos, que carecem ou não querem a fé de Jesus Cristo.”
Finalmente, de tal maneira explicou a voz que antes muito tinha encarecido, que a todos deixou atónitos, a muitos como fora de sentido, a outros antes empedernidos e a alguns compungidos, mas a nenhum, segundo depois percebi, convertido. Concluído o seu sermão, desceu do púlpito com a cabeça muito baixa (...) e foi-se, com o seu companheiro, para a sua pequena casa de palha. (...) Assim que saiu, encheu-se a Igreja de um murmúrio que, ao que parece, mal deixou que se acabasse a missa.» *
Não se pense, porém, tratar-se de meras palavras. O murmúrio logo se tornou em escândalo e este, dali, rapidamente chegou à corte, onde o Rei, vendo a sua autoridade sobre aquelas terras e aquelas gentes posta em causa, não foi nada favorável aos dominicanos. Mas estes, com o tempo, juntamente com outros religiosos e homens de letras, impuseram cada vez mais o problema à consciência dos seus contemporâneos e, acima de tudo, à do Rei, que o acolheu de tal maneira que, em 1550, ordenou que se realizasse a célebre Junta de Valladolid, na qual os dois principais defensores das duas doutrinas opostas que se haviam elaborado desde então, Bartolomeu de las Casas e João Ginés de Sepúlveda, deveriam expor os seus aregumentos e tentar chegar a uma conclusão. O Rei, que na altura era também o Imperador, interrompeu, durante todo esse tempo (à volta de um ano), a conquista.
Deste profundo debate que aconteceu na Península Ibérica emergiu a consciência moderna da dignidade do indivíduo, da democracia como único regime natural, da separação dos poderes espiritual e temporal, do direito internacional e dos direitos humanos, mais tarde celebrados nas suas origens francesa, inglesa, holandesa e alemã. Estas últimas, no entanto, eram origens totalitárias, o que, na verdade, as nossas não eram. É no reencontro com este nosso passado – dizendo melhor: é na presentificação deste nosso passado – que o nosso futuro, assim o creio, se mostrará. E, no entanto, lembrar isto em Portugal, é ser voz que brada no deserto.
* CASAS, Bartolomeu de las, De Indis, Livro III, cap. 3-4.