quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Entre les murs de Laurent Cantet


Registo esforçadamente realista do ano lectivo de uma turma do 4º ano (equivalente ao nosso 8º ano) num liceu (equivalente à nossa secundária) do 20.éme (equivalente à nossa Damaia). Confronto entre um sistema de ensino (o francês) e um sincretismo cultural feito de origens múltiplas, de condições e formas de adaptação diferentes, de perspectivas pessoais e familiares variadas.

Podemo-nos interrogar sobre o que importa neste filme: a) Tomar conhecimento de uma realidade? Não é propriamente uma novidade; b) Reflectir sobre o modelo de ensino em si mesmo, os seus processos e as suas finalidades? Nem as aulas nem as reuniões dos professores denotam essa reflexão; c) Observar o efeito de um modelo de ensino confrontado com a diversidade cultural e existencial dos alunos? Não se percebe se há esse modelo ou se estamos apenas perante uma gestão do caos.

Baseado na experiência relatada em livro Entre les murs (2006) de um professor — François Bégadeu — o filme (2008) apresenta o decurso de um ano lectivo entre as aulas da disciplina de Francês e as reuniões entre professores. Se quisermos ver o filme de um lado lamuriento, mas totalmente ineficaz, podemos cair na ladainha social nas justificações exógenas ao problema: condições sociais, diversidade étnica, etc. Só que, nos colégios onde não se aplicam aquelas justificações, os problemas são absolutamente iguais. Ao vermos o filme reconhecemos que estamos perante um problema geracional e não local. Se quisermos compreender o fenómeno é aí que temos de procurar as razões. Sendo a educação um processo de conhecimento de si próprio, uma orientação do crescimento mental e uma maiêutica da razão, ela é determinada por diversos factores de mimetismo que arrastam os alicerces da formação. A começar pela família onde o exemplo de vida dos pais é determinante até aos valores que são transmitidos por quem passa mais tempo com as crianças e com os adolescentes, muitas vezes a televisão e os jogos interactivos. Estes são factores determinantes que facilitam ou minam o papel da escola que, por si só, não tem capacidade de motivar os seus alunos.

Se associarmos a este cenário de vida privada e social um modelo de ensino que não rectifica nem se impõe como exemplo do que deve ser a formação das crianças e dos jovens, a humanidade pode estar perante uma catástrofe sem paralelo. Podemos observar que os alunos não deixam de passar as fases próprias até à eclosão da razão e da sua manipulação. Porém, a elogiada capacidade de resposta e espírito rebelde que tanto são apreciados nos jovens respondões, atrevidos ou insolentes, demonstra apenas que capacidade de operar dialecticamente com a escassez de dados de que dispõem não lhes falta, o problema são os conteúdos sobre os quais eles operam, em geral, são raciocínios feitos a partir da sua reduzida experiência que resultam necessariamente em formas galopantes de egoísmo e de desesperança. Dá gosto vê-los reagir, mas faz pena vê-los tão limitados na sua percepção da realidade.

A escola perante tão complexo e esgotante processo, acaba por se sentir na obrigação de compensar as infelicidades das vidas dos jovens insolentes e indiferentes e acaba por se ir tornando numa marquesa de psiquiatra com resultados que estão à vista de todos.

Para encontrarmos saídas para o problema teremos de recentrar o nosso olhar no que deve ser a finalidade da educação. Temos de pensar que a organização do saber corresponde a uma forma disciplinar a que individualmente o aluno vai aceder e que vai compreender na medida em que for percebendo a finalidade de todo o seu percurso. Aquilo que se exige que seja apreendido, somatizado e compreendido tem de se apresentar através de um processo de captação da atenção e da curiosidade. Mas também através de uma atitude que se tem de exigir aos alunos. Essa atitude deve exprimir a gravidade (a importância) do comportamento (agora diz-se atitude) para o sucesso da aprendizagem. A demissão dos pais e dos professores, do seu papel normativo, acreditando que o ensino pode ser feito pela brincadeira, só diminui o desenvolvimento psicológico da criança e do jovem. A ideia que é preciso levá-los a bem tem limites que não podem ser ultrapassados ao ponto de tornar tudo num recreio sem fim. E, sobretudo, sem seriedade, nem gravidade. O problema da educação é dos mais graves, senão o mais grave de todos os problemas. A prática de virtudes como a disciplina, persistência, concentração e coragem são virtudes humanas indispensáveis à formação do carácter.

Na sociedade da imagem, em que estamos transformados, a percepção da heroicidade não transmite aquelas virtudes, só o sucesso. O sucesso dos jogadores de futebol, por exemplo, com que os jovens são confrontados não lhes dá a construção do sucesso, só o resultado. Eles ficam convencidos que o jeito chega e, em rigor, o que os fascina, porque também é isso que os media transmitem, são os símbolos do sucesso: carros desportivos, roupas de marca, penteados exóticos, adereços preciosos, aparência de terem muitas namoradas. O herói que formou outras gerações, e não há assim tanto tempo, era precisamente o contrário: punha a sua disciplina, persistência, concentração e coragem ao serviço dos outros, morria por eles, não procurava louros, perseguia um bem.

Mesmo no centro da complexidade do mundo contemporâneo o recentramento da educação no seu foco primordial é talvez a última experiência, aquela que verdadeiramente se tem adiado. Perceber quais os factores que motivam as crianças e os jovens, que tipo de imaginação é próprio de cada idade, que tipo de responsabilidades lhes devem ser exigidas em cada momento, é essencial para repor as finalidades da educação na primeira linha da organização do ensino.

Educar para quê? Esta a interrogação que deve estar presente em todo o edifício do ensino desde a escola primária até ao fim da universidade. Na disciplina de Desenho do 1.º ano na Faculdade de Arquitectura do Porto aprendia-se que um desenho deve sempre reflectir o tempo que tivemos para o fazer. Os primeiros 10 segundos têm, por isso, que conter o esquema do desenho final, como ao fim de 2 horas o detalhe deve exprimir um conhecimento exacto do objecto desenhado. A tese é: o desenho está sempre feito, o todo está sempre presente e o tempo é o amadurecimento do registo inicial. A finalidade está posta desde início.

Educa-se para a liberdade ou instruímos para o trabalho. Estas parecem ser as posições extremas que balizam os sistemas de ensino. Ou serve para nos conhecermos a nós próprios ou serve para nos familiarizarmos com as técnicas da produção. Ou o ensino é dirigido ao saber e o saber é infinitamente mais do que a preparação para o trabalho, ou o ensino é dirigido ao exercício de técnicas concretas e variadas e ficam coarctados anos de aprendizagem e de amadurecimento de ideias e de pensamento.

Perante a complexidade das sociedades contemporâneas esquecemo-nos, de reforma em reforma, do objectivo primordial de toda a educação que é integrar as crianças e os adolescentes no convívio universal. Essa integração só se faz através do que é universal e não em particularidades que, por definição, apenas contribuem para um todo e não são em si mesmas universais. A identidade que o jovem começa a reconhecer quando pela razão se torna um ser reflexivo é o momento do seu desenvolvimento em que se abre um conflito entre si o mundo onde se vai afirmar singular e único. O reconhecimento da diferença anda a par do reconhecimento da relação com o mundo e com os outros e é, então, que pelo pensamento ainda frágil se vai formando como ser livre, e livre significa aqui capaz de se integrar com originalidade no convívio universal. A liberdade é a finalidade do que se desenvolve para ser aquilo que é, aquilo que vai reconhecendo que é, aquilo em que se vai constituindo como identidade intransmissível ou individual. Assim, se percebe que só aprendendo a pensar, mais do que aprender técnicas que o prendam a um ofício ainda antes de saber pensar, é que cada ser se realiza livremente.

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terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Meu caro 2009


Retirado do Pnet Homem, com a devida vénia.


Escusa de vir pé ante pé. Já estamos à sua espera e estamos avisados. Julgo, aliás, meu caro 2009, que nunca nenhum ano chegou com tantos e tão tremendos pré-avisos. A sua fama, a fama que o precede, não poderia ser pior. Que vai ser o ano em que a crise financeira se transforma, como a água de Canãa em vinho, na maior crise económica. Que vai ser um ano deprimido, de falências e deflações; que vai ser um ano de desemprego e de fundas crises sociais. Que não ficará pedra sobre pedra.

Mas sabe como é, há em todos nós uma irresístivel vontade para fugir à unanimidade. Essa pequenina vontade individual vai a par de uma réstea de esperança. Agora que vai tomar conta disto, perceba que nós, humanos, somos assim. Apesar de todas as contra-indicações com que nos distribuiram o folheto da sua propaganda, já só queremos que 2008 resigne com dignidade e que, meu caro 2009, a cadeira seja sua.

Mas não se precipite. Não deite fora o bebé com a água do banho. Tudo pode estar em causa, mas não a liberdade que, tão arduamente, gerações e gerações construíram antes de nós, a começar pelos princípios do livre mercado que foram a base do desenvolvimento que hoje tende para a globalização. Houve erros e perversões, morais e criminais, que 2008 lhe deixa como herança. Mas também lhe oferece, para equílibrio global, um dos mais surpreendentes sopros de renovação, o eleito presidente Obama, que já lhe terá sido estremecidamente recomendado como o seu melhor aliado. Não tenha, caro 2009, pejo em revisitar a história: aconselhe-se com o sábio ano primo da eleição de Roosevelt e invente os termos de uma nova era de cooperação global.

Dir-lhe-ão que todos, mas todos, queremos a paz. Ouvirá dizer que a guerra, quando sai à rua, leva poucas palmas e chega até a ser pateada. Não acredite em tudo o que ouve (às vezes nem no que vê) e prepare-se, sobretudo, para ir fazendo a paz com algumas guerras. Inevitáveis, odiosas e com humilhantes danos colaterais. Se for rever o histórico dos seus antecessores verá que nenhum escapou a esse cortejo de ferro, fogo e sofrimento e que a paz foi sempre, como as obas de Santa Engrácia, uma “work in progres”.

Se puder – e Deus queira que sim, embora Deus pouco ou nada tem a ver com isso, informação que já lhe terá sido providenciada – se puder, invente um Viagra político e ministre-o aos políticos europeus. A Europa é o que é, velha, cansada, às vezes gorda e burocrática, mas vai fazer-lhe uma falta dos diabos. Valendo o que vale, a Europa é uma raposa que conseguiu domar alguns dos mais irracionais demónios do nacionalismo (nem todos os do proteccionismo) e dos extremismos ideológicos e religiosos. Vai fazer-lhe falta um parceiro assim, se, meu caro 2009, quiser jogar umas canastas sossegadas.

No mais, que vai ser muito, dê um jeito ao tempo. É um favor pessoal que me atrevo a pedir-lhe. Faça uma gestão mais cuidada da chuva e do bom tempo. Para conforto de todos e para não termos de aturar a arquejante e reumática brigada ecológica.

Last but not the least, se for possível faça com que Philip Roth escreva mais um romance – agora que ele conseguiu o milagre de converter um protagonista de 71 anos, incontinente e impotente, num herói exaltante (no notável “O Fantasma Sai de Cena”), julgo que tudo o que lhe saia da mão é sublime e é genuíno. Os romances dele são tão bons que até das vírgulas temos ciúmes.

Acredite, meu caro 2009, bem vai precisar de um romance do Roth se quer que, algum dia, alguém se lembre de si com palavras carinhosas e verdadeiras.

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segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Caos Calmo


Nem sempre a literatura procura uma metáfora. Pode ficar-se pela revelação de uma história como ela terá acontecido. Outras vezes, a história apenas parece que podia ter acontecido como é contada, porque o autor optou por conduzi-la pelos caminhos que lhe convieram para de alguma forma chegar a um outro lugar.

Caos Calmo (romance de Sandro Veronesi, 2006) pode ser a história de Pietro e da sua filha Cláudia nos dias seguintes à morte da mãe, Lara. Pietro perante a morte de Lara encara o futuro centrado em Cláudia e na expectativa da sua reacção à morte da mãe. Decide surpreendê-la com a decisão de ficar todos os dias em frente à escola desde que a leva de manhã até que ela sai à tarde. Diz-lhe com o seu acto que ela é agora o centro da sua vida e presume que a sua presença constante poderá suprir a perda da mãe. Vamos seguindo sempre o que Pietro presume ser melhor, o seu melhor.
Pietro faz um corte radical com a sua rotina de gestor de topo num período em que a sua empresa e os seus colegas de administração mais precisariam dele para enfrentar uma difícil decisão de fusão internacional. Passa habitar de manhã e de tarde no jardim, em frente à escola. Na nova morada vai estabelecendo novas rotinas com os outros habitantes e transeuntes daquele jardim. Mais, transforma aquele lugar no ponto de encontro com todos os que precisam dos seus conselhos, os colegas, o irmão, a cunhada, etc.
Aparentemente difícil (como filmar dias inteiros num jardim), o filme de Antonello Luigi Grimaldi, vai sendo pautado por aspectos quotidianos, por personagens nas suas rotinas com quem Pietro acaba por se relacionar através de olhares e gestos ou com quem acaba por conviver como o dono do restaurante ou o vizinho que o convida para uma pasta, que introduzem elementos cómicos e dramáticos que vão temperando o conceito de caos calmo subjacente.
Se procurarmos uma metáfora teríamos o confronto entre o mundo — Calmo — que se repete e prossegue indiferente aos dramas e tragédias individuais e a vida pessoal de Pietro — Caos — que guarda dentro dos limites da privacidade individual ou familiar, as suas tempestades, as suas hipérboles, sonhos, desejos e frustrações, desvios, erros e sentimentos, decisões, indecisões enfim, os seus caminhos. Pietro trocou as suas rotinas, deixou a empresa pelo jardim. O desconsolo e o medo do futuro encontrou refúgio num pacato jardim em frente à escola da filha. Terá ele lá ficado para proteger a filha, ou para se proteger a si? Ou para proteger os dois? Ou para se protegerem mutuamente?
O Caos de Pietro é anestesiado pela mundo Calmo, aquele pequeno mundo em que se refugiou. Tudo continuou sem parar, a fusão aconteceu, as aulas sucederam-se, o restaurante continuou a servir almoços, as mães e os pais continuaram a levar e a ir buscar os filhos à escola, a polícia a orientar o trânsito a essas horas, a rapariga a passear o cão, a mãe e o filho (com sindroma de Down) a olhar para o carro de Pietro à espera do apito e das luzes a piscar, tudo segue o seu curso; é a força do mundo, independente de cada um, mas feita da rotina de cada um. O mundo corre e repete-se, as nossas vidas é que escondem tumultos de paixão e de dúvidas.

O filme começa com Pietro e o irmão a salvarem duas mulheres. O marido da que Pietro salvou ainda lhe disse para ele não ir, que era perigoso. Ao regressar a casa vê a mulher morta no chão e a filha a gritar porque é que ele não tinha atendido o telefone. Há um complexo processo de substituição de identidades, enquanto salvava uma mulher desconhecida mal amada, morria a sua mulher, mal amada também. Mais tarde sonha com a mulher que salvou, com a que está viva, com a que podia ainda sonhar.
Na escola a filha, Cláudia aprende o sentido de reversibilidade e irreversibilidade, de novo a comparação com a vida e a morte, o que se pode inverter e mudar e o que não tem remédio.
Finalmente, o drama de Pietro e projectado na filha tem solução. Cansada de ser motivo de riso dos colegas, Cláudia, pede a Pietro que não fique mais no jardim. A emancipação emocional da filha, mais uma vez por força do mundo, resolve o hiato em que a vida de Pietro não poderia permanecer indefinidamente.

Todo o filme é passado na primeira pessoa, são raras as cenas sem Pietro (Nanni Moretti). Como nos filmes de Woddy Allen, tudo se passa em torno de um eu, introspectivo, indeciso, inseguro, carente. Mas, Pietro (Nanni Moretti), é visto pelos amigos, pelos familiares e por todos aqueles com quem se cruza, como um ser superior capaz de qualquer empresa (presidente após a fusão), corajoso (salva a vida de uma mulher com quem acaba por ter sonhos eróticos, pára para pensar arriscando perder uma carreira profissional) e leal (ao irmão e aos colegas que aconselha e com quem mantém os laços apesar das intrigas).
Não podemos falar, em rigor, de um filme de Nanni Moretti, mas pergunto-me: poderemos deixar de falar de um filme de Nanni Moretti? O argumento de que é co-autor torna-o de algum modo autor, porque Nanni Moretti é isto mesmo: um autor a falar de si e de como pensa mudar o mundo pela mudança das consciências, feita através do seu modo de estar, de proceder, de protestar e de se interrogar.
Não estamos perante uma história em que a necessidade das personagens ecluda da complexidade de uma trama como no romance, na novela ou no conto. Estamos no mundo de Nanni Moretti, no seu humor, no seu modo de cativar, no seu modo de pregar.

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domingo, 28 de dezembro de 2008

Se quiserem fiquem com isto...


(casamento de D. João I com D. Filipa de Lencastre)

Passeava hoje por Lisboa e mais uma vez reparei como as ruas estão sujas, esburacadas e perigosas; o trânsito desordenado; os espaços públicos abandonados; os edifícios privados desinvestidos; as lojas sem imaginação, sem vida e sem cor… e as pessoas, regra geral, tristes e deprimidas.
Ora, isto passa-se numa cidade que, sendo capital do nosso país, foi governada, nos últimos anos, por alguns dos nossos políticos mais destacados, nomeadamente por Jorge Sampaio, líder do PS, que depois foi presidente da República; por João Soares, importante membro do PS e filho de um influente líder desse partido que também foi presidente da República; por Pedro Santana Lopes, dirigente preponderante do PSD e logo a seguir primeiro-ministro; e por António Costa, número dois do PS e há bem pouco tempo ministro da administração interna.
Qual é a explicação para isto? Não sei. Seja como for, não me parece que a resposta seja do domínio propriamente racional da argumentação, mas antes – ou, pelo menos, primeiro – do domínio da motivação e da vontade. É aí que não nos encontramos, que não nos reconhecemos e que, consequentemente, não nos entendemos. Em rigor, porém, também não nos desentendemos. Parece, bem ao contrário, que desistimos. Cá vamos, cantando e rindo. Ou já nem isso: vamos andando!
Só isso explica que chegando à Rua de São Bernardo, a caminho da Igreja de Santa Isabel, depois de passar pelos inúmeros socalcos que circundam o Jardim da Estrela, depare com a apropriação, cada vez maior, de boa parte da rua pela Embaixada de Inglaterra. Desta vez não houve sequer ultimato. Quiseram a rua e tomaram-na. Os moradores, no caminho para as suas casas, que se desviem. O passeio, agora, é inglês, pelo que, ali, só passa quem os ingleses quiserem. Os moradores que atravessem a estrada, circundem a vedação, cumprimentem os polícias e voltem de novo a atravessar a rua, se quiserem entrar em suas casas.
Desta vez também não houve indignação. Colocámos prontamente dois polícias à porta, empunhando metralhadoras, mas foi para defenderem com denodo a embaixada – que é estrangeira e, por isso, é importante. É claro que a porta, agora, é um bocado mais à frente, devido à invasão de Inglaterra à Rua de São Bernardo, orquestrada, há quem o diga, desde Gibraltar, com o objectivo de vir a controlar a base das Lajes. Mas isso que importa? Tomem a rua, fiquem com ela. Invoque-se a aliança luso-britânica; invoquem-se Filipa de Lencastre e Catarina de Bragança… invoque-se seja o que for. A verdade é que nós não queremos aquilo para nada, por isso, façam o que bem entenderem.
Não vai agora dizer-se aos ingleses que, se precisam de mais e de melhor segurança, têm que comprar uma casa que permita assegurá-lo, no que, aliás, evidentemente colaboraremos. Não, isso seria uma maçada. Nem vai objectar-se-lhes que, se a nossa embaixada, em Londres, quisesse um tratamento idêntico, certamente não o teria. Mas, afinal, quem somos nós? Não! Fiquemos calados. Fiquemos quietos. E eles que fiquem com isto, em nome da antiga aliança.
Nós nem sequer nos importamos que os nossos filhos nasçam em Espanha, onde os hospitais são melhores e mais baratos. É claro que nenhum espanhol admitiria ao governo do seu país que o mandasse ter os seus filhos em Portugal, como nenhum morador de Londres permitiria o arrebatamento de parte da sua rua pela Embaixada de um outro país. Mas o facto é que eles gostam daquilo, vá-se lá saber porquê. Nós, ao contrário, não queremos saber disto para nada. Portanto, se os espanhóis quiserem, fiquem com isto; se não, vai para os ingleses. Basta-nos bem ter um presidente na Comissão Europeia, que muito nos honra com a sua posição e tanto bem de lá nos tem feito. Quanto ao resto, saúdinha, que é aquilo que é preciso.

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sábado, 27 de dezembro de 2008

One way ticket

Durante dois anos, os trabalhadores da Quimonda trabalharam por dia 12 horas. Mais quatro horas do que o período normal. São, por cada semana de trabalho, mais 20 horas. O esforço destes trabalhadores foi enorme, segundo os seus dirigentes sindicais.

Este tipo de esforço só acontece se e quando um trabalhador tiver genuíno receio de perder o seu emprego.
Nunca vai suceder num sector de actividade onde essa contigência seja uma impossibilidade legal ou uma impossibilidade de facto.

Veja-se. Por um lado, temos um Ministro que propôs a generalização do periodo experimental para os trabalhadores indiferenciados para seis meses - a motivar decisões acertadas do PR e do TC que impediram a medida.

Ao mesmo tempo temos outro Ministro que corre para a TAP a dar razão ( e mais o quê?) aos Sindicatos que queriam fazer greve no Natal!

Parece-me que é fraca a coesão nacional de um país onde os trabalhadores do sector privado estão sempre numa posição preclitante e os do sector público tão pouco expostos a essas contigências.

O bilhete dos trabalhadores da TAP é sempre de ida e volta.

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sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Portugal: Reformar o Sistema Político ou Reformar a Política? (post fora de horas mas sempre a tempo...)

Houve um tempo em que o plenário dos parlamentos constituía o centro da política. Isso é visível no notável Mr. Smith Goes to Washington de Frank Capra e, em particular, nas suas cenas finais (se bem que o filme também já alertasse para a "burocratização" da política: lembrem-se da cena em que é descrita a Jimmy Stewart a forma como se elabora e aprova uma lei no Congresso americano). Em Portugal, essa identificação do plenário parlamentar com o espaço da política também é clara nalguns famosos textos de Eça.
Essa já não é a política de hoje. A componente parlamentar, representativa e deliberativa da política continua a ser fundamental mas a política já não se centra no plenário de um parlamento. Provavelmente, desde sempre que a política se fazia fora do hemiciclo parlamentar mas este constituía a manifestação pública da política: o espaço em que as diferentes concepções e propostas políticas eram publicamente apresentadas e discutidas. Hoje, a política discute-se nos jornais, na televisão e, crescentemente, na Internet. A complexidade da actividade legislativa exige, igualmente, modelos deliberativos diferentes, em que o parlamento ainda pode ter um papel importante mas de natureza diferente. O plenário parlamentar tem hoje sobretudo um carácter simbólico centrado nos grandes momentos políticos de controlo do executivo e na aprovação – mas não discussão – de legislação. Não é um espaço de deliberação mas um espaço de legitimação da deliberação que tem lugar noutras arenas do processo político: na consulta e participação públicas, na actividade governativa, nas discussões nas comissões parlamentares.
Aquilo que esperamos da política e a forma como é possível hoje em dia fazer política devem ser o ponto de partida de qualquer debate realmente produtivo sobre a política em Portugal. Recentemente, o tema voltou à ribalta, associado às faltas parlamentares, na sua forma habitual: um debate sobre a reforma do sistema político associado ao carácter proporcional ou maioritário do sistema eleitoral, à introdução de círculos uninominais ou votos de preferência etc. E, no entanto, há três outras dimensões da política em Portugal que, na minha opinião, são bem mais prioritárias.
Primeiro, a qualidade dos recursos humanos da política (a fraca qualidade de muitos dos nossos políticos e, em particular, de muitos parlamentares). Alterar isto exige um debate sobre o tipo de político que pretendemos (por ex.: profissional ou ocasional) e não ter medo de afrontar questões difíceis como o estatuto remuneratório dos políticos e o seu regime de incompatibilidades. O que me parece absurdo é continuar a ter um estatuto remuneratório pouco transparente e frequentemente penalizador para quem opta pela actividade política e compensar isso, na prática, com um regime de incompatibilidades que autoriza múltiplos conflitos de interesses e em que a remuneração dos políticos é, na prática, oculta (a perspectiva das vantagens que obtêm no mercado os que exerceram à actividade política…). Ao mesmo tempo, é inconcebível que os deputados não tenham um verdadeiro staff de apoio individual, particularmente ao nível técnico. Como podemos esperar que os deputados exerçam bem a sua actividade legislativa e de controlo político e, sobretudo, que tenham uma actividade individual autónoma dos seus grupos parlamentares sem disporem de um verdadeiro gabinete de apoio? A mudança de natureza da actividade parlamentar é perfeitamente compatível com um menor número de deputados mas, exige, por outro lado um muito maior apoio técnico e administrativo no exercício dessa actividade. Talvez fosse possível introduzir alterações deste tipo sem aumentar o orçamento do parlamento e da função política em geral: menos políticos, mais bem pagos e assessorados e com regras muito mais exigentes na prevenção de conflitos de interesses.
Em segundo lugar, temos de reconfigurar a actividade política e, em especial, a actividade parlamentar. As comissões de inquérito, por exemplo, devem ser valorizadas e facilitadas na sua criação: elas são uma das actividades parlamentares mais susceptível de mediatização e, como tal, de cumprir a função do parlamento enquanto espaço público de debate político partidário e informativo. Os deputados devem ter também um espaço físico e temporal para encontrarem os seus eleitores (não me choca que os parlamentares passem alguns dias da semana nas suas regiões de origem se se reunirem as condições para uma verdadeira actividade parlamentar descentralizada). O parlamento e o governo devem fazer um muito maior uso da Internet enquanto mecanismo de transparência e participação dos cidadãos no processo legislativo e na actividade governativa. Até agora, a Internet tem sido entendida, pelas instituições públicas, sobretudo como um instrumento para facilitar o contacto entre a administração e os cidadãos mas ainda é limitado o seu uso enquanto instrumento de participação e acesso ao processo político (já se pode aprender alguma coisa a este respeito com a União Europeia, embora também esta última possa melhorar). Devia ser possível seguir e até participar online em todo o processo de preparação e adopção de uma determinada legislação: as diferentes versões e o calendário previsto para as diferentes fases do processo legislativo; quem foi consultado; as diferentes contribuições e quem as fez; enviar propostas; registarmo-nos como cidadãos interessados em ser informados em todas as iniciativas legislativas relativas a uma certa área etc. Há imenso que podemos fazer para adaptar a actividade política aos novos tempos. Isto é indispensável para corrigir a actual assimetria entre aquilo que é a política e o que os cidadãos dela esperam e bem mais eficaz que discussões eternais sobre diferentes modelos de proporcionalidade.
Por último, não podemos ignorar que o nosso sistema político é hoje um sistema de partidos e que talvez o principal risco no nosso actual sistema político seja a "captura" dos partidos políticos. Para o melhor e para o pior o acesso ao poder faz-se hoje em Portugal através dos partidos. A nossa escolha de governo é dependente, na prática, das opções que nos oferecem os dois principais partidos portugueses. Os dois candidatos a primeiro-ministro são escolhidos, na prática, por uns poucos milhares de militantes do PSD e PS uma vez que a participação cívica nos partidos tem diminuído de forma considerável. Este contexto de reduzida militância suscita sérios riscos de "captura" dos partidos políticos e, indirectamente, do próprio poder visto que na democracia moderna os partidos políticos constituem, na prática, o filtro de acesso ao poder. Na minha opinião esta é outra questão bem mais importante a ser discutida no contexto de uma reforma política em Portugal. Será necessário repensar a própria organização democrática dos partidos (reflectindo por exemplo à possibilidade de primárias abertas ou dependendo do mero registo – mas não militância – partidário). O que é extraordinário é que não é disto que se fala, como se o sistema político se esgotasse no sistema eleitoral. Talvez seja uma causa perdida mas, como diz Jimmy Stewart, é a luta pelas causas perdidas que dá sentido à política.

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quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Doce, redonda e cega como a alma

I’d Rather Go Blind é uma canção de 1967. A interpretação original é de Etta James. Mas eu ouvi-a primeiro na versão dos Fleetwood Mac que, na altura (ou terá sido só para esta canção), integrava elementos de outra banda inglesa, os Chicken Shack.



A simplicidade da letra é extrema, como extrema é a sua emoção:
Something told me it was over
When I saw you and her talking
Something deep down in my soul said, 'Cry, girl'
When I saw you and that girl walking out
Oh, I would rather go blind, boy
Than to see you walk away from me, child
You see I love you so much that I don't want to watch you leave me, baby
Most of all, I just don't want to be free, no

Experimentem ouvir agora o original de Etta James. Doce, redonda e cega como a alma, the soul.

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segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Um novo Richard Wagner





Descobri recentemente um escritor e um pensador (uma mesma pessoa pode cumular ambas as situações, não é pecado, afinal): Richard Wagner. Nome que faz sorrir de tanto usado. Mas a personagem não faz sorrir. Faz pensar. Pior ainda: é inteligente, matéria-prima rara. E tem ideias. Ainda mais interessante.

A propósito do diálogo com o Islão coloca um problema no mínimo pertinente: diálogo? É precisos saber se temos interlocutor. Vem da Europa de Leste, da Roménia de cultura alemã. Está por isso imbuído de um paradigma europeu sólido, não abastarda por americanismos e multiculturalismos mediáticos. Vem de região com fracturas muito antigas e conhece bem os custos das fracturas. Lúcido e reflexivo, sempre é uma variante em relação à feira de trivialidades que nos consome.

Como já salientei mais de uma vez, o muro de Berlim caiu dos dois lados. E em grande parte a renovação virá da Europa Central e de Leste. São bem mais lúcidos que os politicamente correctos e os travessos inconsequentes que fazem a ordem do dia.






http://alpha.dickinson.edu/departments/germn/richardwagner.html
http://alpha.dickinson.edu/departments/germn/richardbiblio.html



Alexandre Brandão da Veiga

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sábado, 20 de dezembro de 2008

Impostos

O Primeiro-Ministro disse na conferência organizada pelo Diário Económico que não baixava os impostos porque não era certo que as famílias gastassem o dinheiro, consumindo, investindo.

Disse mais. Disse que se fosse o Estado, este gastava de certeza. ( Ninguém duvida )

Sinceramente num país pobre como Portugal alguém duvida que esse dinheiro seria gasto?

Não se chama a isso propensão marginal ao consumo?

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Freitas vs Soares

Sem que nada o fizesse prever, 1986 foi um grande ano.

Portugal era um país enfadonho e antiquado, ainda a contas com uma ditadura e um PREC. Quando Freitas começou a campanha ninguém duvidava da sua vitória.
Eu tinha 14 anos e nunca esquecerei o comício que ele fez em Peniche e a que fui com o meu pai. Escusado será dizer que naquela terra foi o delírio quando Soares por lá passou. Sei, porque fui espreitar.

Naquele ano de 1986 eu usava, com garbo, uma cabeleira imensa e desgrenhada que era motivo de apreensão familiar. Isso e uma grossa camisa de flanela amarela e preta aos quadrados que vestia imensa como se fosse um casaco. Havia também a versão encarnado e preto e azul e preto.

No dia da votação estava agendada a dita para depois de almoço. Fazia parte do programa votar, tomar café e passeio de carro. Todo um programa.

Antes do almoço, o meu pai:"- Sofia, já te penteaste?". Resposta pronta:"- O meu cabelo só é penteado quando lavado, por causa dos caracóis". "- Vai-te pentear".
Lá fui, esforcei-me para dar o meu melhor que era, no caso, quanto pior melhor.

Escovo, escovo e o meu cabelo ascende a uma dimensão transcendental, muito para além de um Hendrix, muito para além de uma juba de leão.

Depois de almoço, o meu pai lapidar: "- Tu ficas". A família bate a porta e eu fiquei sozinha em casa a tarde toda.

Nunca esqueci esse dia. Aprendi que a petulância paga-se cara e ainda que na política e na vida não há vencedores antecipados.

E se de repente alguém lhe oferecer um ano de 2009 atrevido e desafiante, isso é política não é?

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sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Inglês técnico

Ouvi há pouco fragmentos de um discurso do nosso Primeiro-Ministro.

Arrancou, gaguejou e lá soltou em inglês técnico macarrónico " Road map".

Todavia, pergunto-me face aos milhões anunciados diariamente se não será antes um
" Treasure map".

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quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

26 years old?

A partir de Janeiro próximo, o “Director of Speechwriting” da casa branca chama-se Jonathan Favreau. Jonathan encontrou Obama durante a convenção democrática de 2004 e a partir desse momento tem vindo a escrever todos os discursos de maior relevância que o presidente eleito tem feito desde então. O pormenor único que me faz escrever estas linhas prende-se com o facto de Jonathan ter nascido em 1981 e de Obama o tratar por “the kid”.

Quase não vejo televisão. No entanto tenho que confessar que vi ao longo deste ano, (e sofrendo pelas poucas horas dormidas), as três primeiras “seasons” de “West Wing” de Aaron Sorkin (permito-me recomendar sem hesitações a sua altíssima qualidade). A serie, para além de descrever de forma aparentemente exímia o funcionamento interno da Casa Branca e dos bastidores da política de Washington, dedica uma atenção particular a equipa de speechwriting e gestão de imagem do presidente. Rob Lowe, um actor que sempre detestei particularmente, tem nesta serie um excelente desempenho no cargo (no papel do cargo, quero dizer!) que Jonathan Favreau se prepara agora para tomar na realidade.

Espero que o espírito decididamente humanista e liberal (no sentido anglo saxónico da palavra) da administração do presidente imaginário Bartlet seja na realidade uma antevisão daquilo que Obama e alguns destes muito jovens “staffers” possam vir a realizar.

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quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Um riso narrativo

Por causa deste post da Sofia Rocha, apeteceu-me mostrar (e espero não estar a violar direitos autorais) esta imagem de um trabalho da Joana Vasconcelos


e também esta



e faço-o só porque nos trabalhos da Joana Vasconcelos há um riso narrativo - seja lá o que isso for - que me diverte, intriga e faz feliz.

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Aos 30 - Sub vida

Tenho lido por aí que existe uma tendência, pelo menos em Portugal, de muitos adultos, muitos já à beira dos trinta, continuarem a viver em casa dos pais. Nesse grupo interessam-me sobretudo aqueles que trabalham. Como é sabido, aduzem para o efeito, os baixos salários, a crise, o conforto da casa dos progenitores, etc.
Mesmo admitindo que comparticipem na economia doméstica, facto nem sempre verificável, quando o façam não têm de certeza o grau de empenhamento necessário no pagamento da prestação da casa, da alimentação, de todas as despesas de que depende o funcionamento de uma casa e de uma vida.
Sobrará sempre dinheiro para um carro, telemóvel, roupas, livros, música, viagens.
Terão aos trinta anos, muita experiência em consumo, mas muito pouca experiência da vida.
Sobretudo no que ela tem de mais enriquecedor, que são as dificuldades. Quando no início da nossa vida adulta somos confrontados com algumas necessidades e dificuldades, como sejam ir ao supermercado a contar o dinheiro e não saber como se vai pagar a renda, ganhamos em maturidade e se não compreensão, pelo menos aceitação, do ponto de vista dos outros.
É como ir almoçar a casa da sogra por manifesta insuficiência de meios e juntamente com a colher de sopa, engolir também umas colheradas de política financeira, ou de como Salazar havia sido um grande político.
Cada vez mais ouço-os e leio-os - e escrevem muito, sobretudo em blogs - muito convictos e categóricos. Mas são tão desprovidos de experiência e de conhecimento da vida e revelam um tal desamor pela raça humana e pelos portugueses em particular que me pergunto se é aceitável tanto tremendismo.
Pergunto-me com que condições é que uma pessoa assim decide sobre a vida de outras, com que legitimidade emite tanto juízos morais?
Umas valentes colheradas, não digo de chá, mas de sopa e política financeira, talvez lhes fizesse bem.
Mas nunca em casa da mamã, bem entendido.

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Lagarto às cores manda mulher para a prisão

Lagarto às cores manda mulher para a prisão. O lagarto foi considerado culpado pelo atropelamento do polícia.

Este poderia ter sido o início do artigo do Correio da Manhã caso eu não tivesse travado mesmo em cima do polícia.
No passado domingo ao meio-dia eu descia, a conduzir, a Rua do Alecrim. Estava um dia claro, de sol, ao fundo o Tejo brilhava metálico.
Começo a ver, ao fundo da rua, do lado esquerdo, uma festa de fitas ondulantes coloridas, estapafúrdias, desgarradas, a esticarem-me os braços. Olhava, olhava e ria. Lembravam-me Barcelona e os lagartos de pedra de Gaudí.
Comecei a rir, como rio sempre que a beleza me interpela. Sempre que dou com o belo, rio. Se vejo na rua um homem, uma mulher, uma criança de beleza superior, rio sempre.
Tratava-se da nova obra de Joana Vasconcelos. Um lagarto de ráfia em cima de um prédio em reconstrução na Rua do Alecrim.
Travei já em cima do polícia roxo de tanto apitar que tentava por ordem no trânsito.
Nem assim perdi o riso de contentamento que aquele lagarto me provocou.

Abençoada rapariga sem respeito pelas proporções nem deferência pelo preto e branco.

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terça-feira, 16 de dezembro de 2008

O Nu e o Óbolo

A greve
Seria capaz de se despir face a uma bateria de homens e mulheres com uma folha de desenho à frente e um lápis na mão? Ao meu não, rotundo e robusto, assistem razões de peso. Poupo-me à humilhação de as enumerar.
Não me poupo a uma confissão: o nu excitou mais a minha paixão pela pintura do que dezenas de sábias histórias de arte.
Como em todas as grandes histórias, também na história do nu em pintura, toda a gente conhece os generais – de Boticelli a Picasso, de Courbet a Egon Schiele – mas poucos reconhecem o soldado desconhecido que garantiu a vitória nas trincheiras. E sem eles – sem elas – nem a guerra teria sido ganha, nem sequer teria havido guerra.
Agora, arriscamo-nos a perder todas as batalhas. Em Paris, por decisão de Monsieur le Maire, os modelos estão mais nus e arriscam-se a ficar muito mais magros.
Explico-me. Sem intervenção da nossa dedicada e zelosa ASAE, acaba de ser proibida uma prática ancestral. Nas Belas Artes, era norma os modelos despirem-se, posarem e, no fim, dobrarem uma folha de desenho formando um « cornet », para recolha das mais ou menos generosas gorjetas com que artistas e alunos entendiam recompensar a mais árdua das tarefas : « não falar, não se mexer, nada produzir » que é como os próprios modelos definem a voluntária escravidão a que se dedicam.
Pagos a 10 euros a hora, estes e estas amantes da arte tinham no óbolo dos artistas um complemento espiritual que o respectivo físico também não desdenhava.
Chamo a vossa atenção para um pequeno pormenor : é preciso compreender o nu. O nu, nas Belas Artes, custa e custa muito. É feito de sofrimento e imobilidade. Os modelos despem-se e vestem-se atrás de um biombo. Se querem saber, entre uma pose e outra pode passar uma hora : nesse intermezzo não há aquecimentos, nem salas de espera. Não será preciso se-se de ferro, mas é preciso ter uma anatomia temperada. E as gorjetas ajudavam : valiam, dizem os modelos sem fronteiras, um quarto do salário. Autorizavam alguma piscina e, quando calhava, o ginásio. Por isso é que a gorjeta, embora proibida, continuava a ser tolerada nas Beaux-Arts. Agora – dura lex – nem proibida, nem tolerada.
Os modelos vieram para a rua e manifestaram-se. Em carne e osso – e com justiça. Ao contrário do que costuma acontecer, as ruas ficaram melhores. Mais belas e menos perigosas. Foi só um gesto. A mim pareceu-me artístico : vejam as imagens. A cada um de nós, homens e mulheres, vai apetecer-nos abraçar a causa e pôr o objecto da nossa escolha no merecido pedestal. Temos por onde escolher e para todos os gostos. Com uma vantagem : não falam, não se mexem, nada produzem !

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domingo, 14 de dezembro de 2008

1 Euro

1 Euro. Quando pensamos em coisas que custam 1 Euro, pensamos em produtos made in china, à venda nas lojas dos chineses. Produtos sem valor acrescentado, sem qualidade, design ou sofistificação. Nunca pensamos em Investigação e Desenvolvimento.

Na terça-feira a noite em Telheiras vi I&D aplicado a produtos de consumo de 1 Euro.

Pára-se o carro, tocamos no botão, ditamos o pedido e enquanto o fazemos, vemos o pedido a ser escrito num ecrã, com a consequente possibilidade de o corrigirmos. Mais uns metros, abre-se outra janela, o colaborador lê o ecrã e confirma a encomenda, bate certo.

1 Euro, num hambúrger natura, sem molhos ou adicções, mas cheio de I&D, num qualquer MacDonald´s perto de si.

1 Euro hype, é claro que a juventude adora!

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Zé, vamos soletrar

Zé, diz comigo: Reeee-ceeee-sssão.

Outra vez: Reeee-ceeee-ssão.

Muito bem. Estás a ver como és capaz?

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sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

II. Journey to Italy – Rossellini

Qual é o problema deste casal? Ele é o pragmático na aparência. Ela a sonhadora. Mas é mais o que os une que o que os separa. São ambos modernos, e padecem de todas as taras da modernidade. Ele seria hoje o defensor da economia do mercado, ela a altermundialista. Com melhor ar e mais bem vestida, é certo. Mas são dois filões de uma mesma têmpera. Ele irrita-se com a possibilidade da poesia, ela só vê poesia em algo mais espiritual que o espiritual. Ele é bem menos erótico, mas no fundo partilham do mesmo problema: são ambos descarnados, sem corpo.

Ele não deixa de ter duas experiências próprias. É o pragmático mas afinal apenas procura o sentimento. Com uma mulher que vem a saber casada ele procura o sentimento e vê que as portas estão fechadas. Além de casada ela é fiel. De seguida com uma prostituta. Mas por azar dele não encontra na economia de mercado o que seria consolador para ele. Encontra uma mulher que se atreve a ter uma história. Ia-se matar se não fosse a sua intervenção. Ele que procura o sentimento num corpo pago o que lhe diz esse corpo no mercado é que tem sentimentos. Ele que procura o sentimento encontra quem o procura também.

As experiências dela são bem mais ricas. São corpos o que encontra. As estátuas do museu, as caveiras e esqueletos de uma igreja, e sobretudo no final, os corpos incinerados de Pompeia, em que um casal mesmo morto tem mais corpo que o seu matrimónio. E mais duas coisas. Crianças, muitas crianças. E grávidas, grávidas em grande quantidade. Ela, a sentimental na aparência, é destituída de ligação ao corpo. Porque vimos a saber afinal que a hipótese pragmática assassina foi colocada por ela, ela a sonhadora., foi ela que decidiu não ter filhos. É muito mais razoável.

O filme é de 53 e só conheci a Itália 20 anos depois, mas era uma Itália onde ainda muito do que nele se vê ainda existia. Já com a acumulação capitalista amadurecida, mas as mentalidades são mais lentas, bem mais lentas. E o mundo era o mesmo, ou quase. A mesma presença carnal que transbordava para as ruas. E foi isso que o casal encontrou.

As duas experiências de sentimentos, um com porta fechada, outro invasivo, não o desbloquearam. Ela, que teve a percepção do corpo, da omnipresença católica do corpo, percebeu mais depressa que ele onde estava o seu bloqueio. Foi necessário que a maré humana de uma procissão o levasse a perceber que ela tinha corpo, que era frágil, portanto. E que sem corpo não há sentimento.

Uma religião descarnada pelo pragmatismo ou espiritualista são duas vertentes de uma mesma recusa da vida. Ele, que não percebeu que o sentimento não se deseja nem se paga nem se substitui não percebeu que a mediação era o corpo, até ver o corpo da mulher afogando-se numa procissão, no magote de gente. De gente realmente presente, em que cada passo da vida é intenso e atestável. Não é apenas meio, seja de pagamento (como ele pensa), seja de evasão (como ele deseja).

Ele tentou trai-la duas vezes em crise de casamento, ela já o traía em pensamento com um poeta antes sequer do casamento começar, e outra coisa não tinha feito até então. No fundo, caíram ambos na trápola moderna tão superficialmente moderna, em que construímos a nossa vida com base em ideias. E eis que o corpo, seja em estátua, em cinzas, em esqueleto, em gravidez ou em criança se nos impõe. Uma vida sem corpo dá o pragmatismo seco ou uma evasão que se julga poética. De uma forma ou de outra um exílio.

A história acaba bem, embora ele tenha de pôr uma condição. No fundo que ela não o compare nem o critique. Nem tudo é perfeito nesta vida. Se digo "acaba bem" deveria antes dizer “começa bem”. Reconhecendo a presença real do corpo não acaba a história, mas apenas se lançam as premissas para que comece realmente.

Alexandre Brandão da Veiga

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quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

O Fascismo Islâmico

Neste pequeno video - retirado com a devida vénia de fora.tv - Bernard-Henry Lévy discorre sobre as raízes fascistas do fundamentalismo ilâmico. Acusa em particular a atitude de muitos intelectuais liberais, prontos para apontar o dedo ao menor sinal de deslize ideológico no Ocidente, mas voluntária e premeditadamente silenciosos - shhhhhhhh! - sobre esse pecado mortal quando ele ocorre no mundo árabe ou na construção do movimento palestiniano.
Para BHL esse silêncio é covardemente cúmplice do esmagamento dos democratas, dos espíritos livres e das mulheres sequiosas de liberdade no mundo islâmico.
Experimentem ver e ouvir.


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Brrrrrrr...But Worth It !


Trying to get away from an endless work week? Maybe treat yourself to a long weekend without the company of haunting phone calls and never ending emails to respond to? This equation sometimes sums up to visiting destinations with warm climate, blue oceans, a comfortable hammock and usually topping it off with that ever so popular coconut shell filled refreshing beverage- most likely accompanied by a short straw for that occasional stir.


A spontaneous conversation with a convincing friend in Stockholm and my thoughts of beach suddenly turned into cold mountains, a small quaint town, humble people, hot food and high hopes of visually experiencing one of life’s most explosive natural night time phenomenons. Sometimes it takes a simple phone call to change what we think “should be” to something that “could be”. We were on our way to a somewhat forgotten town that without the mention through conversation it’s a hidden secret for most-a place within the Arctic region... Tromso, Norway.


Once exiting the highway from the airport we entered what at first seemed like any normal tunnel. What made this monstrous earth opening so abnormal? It was the several roundabouts we approached within. It was definitely a first for me. Coming from Portugal where you can’t drive a few kilometers without “going round and about” , this definitely captured my attention...and in a tunnel? At times I pictured myself stranded wondering which road I would have to take to get to the surface and other times it felt like we were in a television set,something right out of a sci-fi series.There was light up ahead and we eventually exited this “make believe rocky environment” and approached our little island.

NY winters; snow that at times fell during the entire course of a night making it impossible to open our front door in the morning would make anyone think they can be prepared for the worst cold conditions ever. Boy was I wrong! Be sure to leave all your useless designer winter clothing behind and pack warm. Include a good coat, a wool scarf, some gloves, thick socks and winter shoes. Your favorite sweaters should not be left out of the equation.

Sometimes surrounding ourselves with beauty has a cold and “semi dark price” to pay. When I asked our waitress at Emma’s restaurant what time the sun came up in the morning she replied, “ In the morning? Only late January. It’s the month of welcoming the sun back”. If it weren’t for her rosy cheeks and her ever so kind attitude, I would have thought we were in some kind of “cult town”. Might I add she suggested the most scrumptious tasting lamb ever-cooked to perfection!

It was night time when we landed and night time when we departed. It was a bit strange not to see the sun for the entire weekend. Don’t let that physiologically trick your mind when it comes to eating. When was the last time you ate lunch and it was pitch black outside with a drizzling touch of moonlight making it’s way through the clouds? It wasn’t easy trying to figure out what time of day or what time of the night it was. It's normal to look at your watch from time to time thinking the batteries might have stopped !

Our first day out on the town and I thought, how did Transylvania outrank Tromso’s dark winter months for the birth of Mr. Count Dracula’s tales. What a perfect setting! The only thing missing was a spooky castle somewhere in the mountains on the other side of the bridge which separated the mainland.

We went for long walks along the icy covered sidewalks.May sound dangerous but you get used to it after one or two close calls of your bum making contact with those “cement/iceberg corners”. Wasn’t easy to see if it was the slippery type of ice below the thin layers of snow or the granulated type that helped to have a better grip. Be sure not to walk around with your hands in your pockets to avoid any “face damage” in case luck and quick reflex aren’t on your side…anything but the face I say!

Philip and I were short of time and we were not going to leave Tromso without getting a taste of the “miracle aurora in the sky”. After visiting the tourist office and eliminating skiing, coastal steamer journeys, snowmobiles, reindeer sledding, snowshoeing and ice fishing -I think the photo of people laying on reindeer hide wrapped in blankets next to a hole about the circumference of your average dinner plate-patiently holding a thread in the freezing waters below made this option easy to delete from our list of choices-we decided on the aurora and high speed dog sleigh riding with a traditional meal served at the end.A bus picked us up in the center of town and 40 minutes later we found ourselves in the middle of nowhere. It reminded me a bit of upstate NY visiting my sister’s summer cabin. Nights so beautiful you can almost touch the stars without those “civilization lights” interfering. The fact there were huge tents and a lot full of 300 husky dogs awaiting our arrival, I knew “it wasn’t Kansas anymore”.

We were escorted into a wooden cabin(heated thank goodness) where the hosts took one look and handed us “snow uniforms” without even asking our sizes. I guess some things just come natural after a while. Zipping ourselves up from head to ankle, changing our shoes for some serious snow boots and covering our heads with fur hats to protect our ears(all of which was provided by the tour),we were off into the darkness.We were in groups of two per sled (also lined with reindeer hide)a warm blanket to cover our legs and one instructor who would stand on the back of the sled in order to control those ever so friendly dogs. At first you feel bad for these anxious four legged creatures but you shortly realize it is what they were born to do-not to live in a city going for an occasional walk to a nearby park and lifting their leg!The first pack took off, then the second, then the third, then the fourth and then...we heard what we thought meant “muuuush” and off we went. I’m not sure who was more excited,the dogs or us. The instructor’s simple command and the dogs went from jumping jacks to sprinting canines. I’m not much of a “snow buff” but wow!! We took off into the wilderness following the tracks left behind from the previous sleds. Shortly after our instructor was explaining how perfect the night was to see some action in the sky (not a cloud and good wind facture) we turned to our right and saw a slight formation of a drifting green light increasing in size as we spoke.It would last a short time and later develop in other parts of the dark starlight sky during our 2hr sleigh journey. It was the residue caused from explosions on the suns surface drifting to our atmosphere and making contact with the magnetic particles in the sky-causing an explosion as big as an atomic bomb. Thousands and thousands of miles away and we are left with the colorful expression of space touching our earth’s atmosphere.

The anticipation finally came to an end and our stomachs were beginning to create a little “atomic rumble” of their own,well,at least mine was. It was time to head back to the site and eat. We entered a huge tent with a fireplace blazing in the center. Our hosts prepared us a traditional dinner, reindeer stew- the way the Sami people prepared this dish for centuries. Sami’s date back to the Roman days and were given little importance throughout history. Although they made great hunters, trappers and reindeer herders, they were considered by the church and schools to practice an inappropriate way of life and little importance was given to their way of living. Only up until the late 1960’s’s, with the help of riots and protests emphasizing the importance of their contribution to Norway, they were granted the right to continue to develop their culture as a part of Norwegian heritage.

So much to do-so much to see and so much to learn from this breathtaking Arctic region. One thing is certain, if the winter months have so much to offer I certainly look forward to the “midnight sun” in the summer time and doing this all over again-only in the “opposite/reverse mode” of course ! Humm, I wonder if there’s a reindeer salad on the list of goodies!

Chef Guerrieri

 

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I. Journey to Italy – Rossellini


Realmente uma trama de ironias.

A viagem a Itália de dois ingleses, uma paródia do Grand Tour. Mas em muitos aspectos virada do avesso. Em primeiro lugar, não é viagem de adolescentes solteiros. As regras são outras. Trata-se de um casal, e de meia-idade. Em segundo lugar, não é viagem para marcar o resto da vida como experiência interior e estética, mas a abandonar na prática quotidiana quando se volta a Inglaterra. É viagem definitiva.


Segundo grupo de ironias. Os ingleses do Grand Tour iam para Itália para aprender, acabando por reprimir o essencial. Ficava o estético, a memória, um parêntesis de vida. O casal que viaja no filme não viaja para aprender. Ele para tratar de uma burocracia, de uma herança. Ela com uma intuição de comunicar com o marido, senão de salvar o casamento. A ironia é a de que o conhecimento nos apanha de surpresa, pelo menos neste caso, e talvez seja melhor não se focar demasiado no objectivo para se atingir o essencial.

Terceiro grupo de ironias: parece tratar-se de um drama conjugal, de uma crise. Como tantas outras. Seria assim se Rosselini tivesse terminado a história com uma ruptura. Seria bem mais fácil. Mas – obscena solução se a há: termina bem. Quase temos medo de o dizer.

E quarto grupo de ironias: em vez de ser a perspectiva do homem que prevalece é a da mulher. Muda tudo. Rossellini parece estar a dar uma lição a duzentos anos de tradição britânica no Grand Tour, dizendo-lhes que perderam o essencial. Onde está ele? Veremos.


É evidente que existe aqui um desequilíbrio. Ambos têm classe, mas Ingrid Bergman ofusca pela sua beleza George Sanders. Não bastara a história ser contada sobretudo na experiência feminina, em acréscimo a nossa atenção fixa-se bem mais nela que no marido.

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quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

La frontière de l'aube


Quem viu desaconselhou-me. Vi e aconselho. Mas aviso: se procuram entretenimento ou se têm o cérebro cheio de teorias e referências de cinema, não vão. O filme podia ser uma tese inovadora se tivesse sido realizado há 70 anos, falaria de uma forma de amor, então, actual e compreensível, mas não é. Parece invocar um tempo e uma forma que se sonhou e que se perdeu. Philippe Garrel, o realizador, continua um inalterado “soixante huitard”. Neste sentido, o filme podia ser apenas uma nostalgia. Mas Garrel mostra-nos duas visões do amor postas em contraste.

François deambula entre o autêntico e, por isso, indestrutível amor por Carole e o conformista e, por isso, também, indestrutível amor por Eve. Serão o mesmo? Apesar de terem um poder e a uma lógica que os torna indestrutíveis (talvez, até, por poderem co-existir), há um idealismo no amor por Carole que transcende a própria vontade que, estando na origem da relação, poderia turvar a clareza dos sentimentos. Entre François e Carole há uma relação que expulsa o mundo e o tempo e em que só o amor ideal é real. Não obstante se possuírem, o seu amor é alimentado de uma impossibilidade de existir dentro do tempo que marca, desde início, a sua tragédia latente até ao desenlace final: Carole tem um marido ausente, mas um marido que aparece e perturba; Carole tem amigos no meio dos quais François se torna transparente e ausente, ardendo em ciúme; François resiste-lhe e isso leva-a à loucura; abandona-a e isso leva-a ao suicídio.
O amor por Eve é o amor “burguês” pela mulher que tem as suas ocupações, os seus sonhos, a sua natureza moral, em que tudo está de acordo com o tempo e com o mundo. Pode ser, também, uma promessa de felicidade: Eve fica grávida; François houve os conselhos dos amigos (tem amigos); dá a Eve o melhor presente que é pedi-la em casamento; promete-lhe o seu amor; dorme ao lado dela numa rotina sem sobressaltos.
Mas é das rotinas (vida burguesa, apática, conformista para Philippe Garrel) que se erguem os fantasmas. Não só os do desejo, mas também o da revolução (nada mais apropriado para a democracia pastosa e apática na Europa de hoje). As rotinas de Eve não lhe trazem, afinal, o sossego. François tinha conhecido outro amor, o amor que se alimenta, quase o podemos dizer, da sua ausência, porque o seu idealismo obriga a esvaziar a alma para se inundar plenamente. Daí a imagem dos limpa pára-brisas dada por um dos amigos para exprimir a relação dos amantes: quando um se aproxima o outro afasta-se e vice-versa. Uma espécie de dança da morte, uma sedução lenta, um jogo de escondidas.
Depois do seu suicídio, Carole aparece a François no espelho e chama-o para junto dela. Pede-lhe, no fundo, que se suicide para se lhe juntar. Carole chama-o... ou, ele quer ir ter com ela e invoca-a. Ela chama-o de fora do mundo e do tempo... ou, ele deseja encontrar-se com ela fora do mundo onde ela já não está e fora do tempo onde ela já não vive. O desenlace é trágico porque não tem solução no mundo e no tempo. A solução é morrer para renascer.

A extraordinária fotografia do filme conduz-nos à primeira de duas considerações finais. A narrativa não é um movimento em que as personagens se vão revelando. As personagens de algum modo são aquilo que o autor quer que elas sejam e, por isso, as sequências — os estados, os progressos e os conflitos —são abruptamente introduzidas. Neste estilo há um dramatismo expressionista, em que, ao contrário do teatro ou do romance, as personagens são uma criação directa do autor e não uma necessidade da própria natureza ou razão da narrativa. As personagens não se autonomizam do autor. No cinema, esta forma moderna de criação artística, encontra uma facilidade muito evidente. Há no cinema uma intenção teórica, que sobrepõe a tese à sensação. A unidade estética vem por via do elemento sensível construído pela fotografia de William Lubtchansky. É uma imagem de outro tempo, a preto e branco em que o branco, por vezes, se expande na fita até quase à indistinção das formas. Invocando o cinema dos anos 20/30 o autor transporta-nos para um tempo perdido e misterioso, para nos falar do amor que hoje seria impossível.
A segunda consideração é sobre o amor. A ideia do amor não como um encontro de interesses, como ele se ilude no modelo “burguês”, mas como amor trágico em que o mundo é apenas um lugar de encontro para chegar a outras paragens. Aqui o amor torna-se num manifesto irmão da revolução. Contra o conformismo, o adormecimento e a exaustão do espírito. Aqui o público em geral ri-se. O riso é o medo da morte. É, pois, natural que ria. Riu em Cannes e até apupou. O amor trágico é associado a uma época que passou. O amor hoje em dia anda arredado do mundo. O amor e as causas. Nada turva a pacata apatia em que vegetamos. Mas se bem pensarmos o que procuramos no mais profundamente celeste das nossas cavernas individuais, é o amor que não conhece limite, que não pode estar no que se corrompe e, por isso, não se realiza no mundo e no tempo. Por isso o amor é secreto. Para se proteger. A razão de haver transcende-nos. O amor é sempre transcendente ainda que nos surja como uma porta que por acaso se abriu neste tempo e neste mundo em que vivemos. Quantos estaremos dispostos para a viagem que nos propõe?

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terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Um Natal em África

Grandes alegrias trazem lágrimas. Sempre será assim e muito mais assim foi no Natal de 1974. Só vos digo e para vosso sossego: a alegria tem uma ferocidade vaidosa e dramática.
Em 1974, estava em Luanda, cidade sofrida e a caminho da crudelíssima independência. Aos 21 anos sentia-me tão só quanto só se pode estar. A família tinha deixado África e eu, nem pai, nem mãe, estava por minha conta, acompanhado por uma multidão de amigos cujas cabeças, dia a dia, iam rolando à velocidade da guilhotina na Revolução Francesa. Mortos? Nem mortos, nem atropelados. Eram apenas nomes inconsoláveis que, dia a dia, a ponte aérea para Lisboa abatia ao activo. Para nós, e para o que na altura interessava, defuntos irremediáveis e indesculpáveis.
No meio desse caos furioso e obsessivo, no meio do fogo amigo e do fogo inimigo de cuja ontologia duvidávamos, começou a crescer, modesto mas abnegado, o Natal, o meu Natal de 74. Não sei se foi um sussurro, se foi um piscar de olhos, mas esse Natal, que na Europa calha tão bem aparecer de repente no meio do Inverno, surgiu suave, mais tropical do que nunca e foi o meu primeiro e verdadeiro Natal angolano.
O caloroso acolhimento foi duma família africana, comandada por um patriarca como nunca mais encontrei. Entre irmãos, irmãs e meio-irmãos eram uns seis, mais primas e primos, pai e mãe, como só existem nas grandes sagas familiares. Eu, branco, fui recebido como filho. A geleira, como numa família decente se chama a um frigorífico, estava (esteve durantes dois anos) à disposição: “Aqui não se pede, abre-se e tira-se.
Lembro-me de nos organizarmos e traficarmos. Sei que houve vinho, couves e bacalhau a chegar de Portugal. Se algum dia (e peço perdão) o Menino Jesus me tinha parecido anedótico e um pouco tolo, no Verão angolano de 74 tive a impressão de que o Natal era intemporal, robusto e sem caprichos.
Naquela dia, 24 de Dezembro, tive a melhor das ceias. De vez em quando, ou quase sempre, o crepitar das AK ia pondo vírgulas e pontos de interrogação nessa noite de uma estrela. Menos insistentes, com uma delicadeza obsoleta, dois ou três morteiros introduziam a necessária nota de suspense. Coisa pouca e, I promise, nem sequer me estou a fazer interessante. Coisa muita foram as conversas, as promessas, as juras e os choros dessa ceia tão delicada e intensa. Os discursos, meu Deus, o gosto que tínhamos nos nossos discursos, tão vibrantes, tão eufóricos, tão nus. Apontavam-nos uma pistola à cabeça e discursávamos. Mesmo mortos, continuaríamos a discursar, e sempre com alegria feroz, vaidosa e dramática.
Foi, imagino que foi, no meio dos discursos, em pleno Natal de 74, ciciado e susurrante, que dei comigo a pensar: quem sabe se em vez do verdadeiro Cristo ser Marx – como diziam os nossos discursos e a ponta de cada espingarda – quem sabe se, afinal, o verdadeiro Marx não será este Cristo anunciado por uma estrela amarela no céu vermelho de África.
Para ser completamente franco interessa-me bem mais a a pergunta do que qualquer resposta.
Copiado quase integralmente daqui, do Pnet Homem!

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Ajuda

1) O Banco Alimentar contra a Fome é uma grande ideia e todos os anos contribuo. Mas é uma ideia que podia talvez ser melhorada. O Banco recolhe alimentos à porta dos supermercados que depois são reunidos num armazém e organizados para distribuição. São milhares de sacos cheios das mais variadas coisas. Dantes não havia indicação do que dar e agora isso mudou havendo algumas indicações. Todavia, este sistema implica seguramente altos custos de organização, que só devem compensar porque o trabalho é voluntário. Mas, mais importante, implica que os alimentos sejam dados a preço de retalho e que não se saiba o verdadeiro valor das dádivas. Este sistema podia continuar, dado o sucesso da adesão, mas podia ser acompanhado de uma alternativa: a de se poder dar em talões pagos também nas caixas dos supermercados, talões que depois seriam trocados nos supermercados mas a preços por grosso e portanto mais baixos. Isto podia ainda reduzir os custos de operação. Não sei o que me deu para escrever isto aqui, pois não deve chegar ao destinatário e seguramente alguém já pensou em melhorias deste tipo. Mas mesmo assim aqui ficam as palavras.

2) Não se esqueçam que na declaração do IRS se pode dar 0,5% do rendimento a associações de beneficência. Bem sei que é pouco mas sempre é algum que se tira das unhas do Estado. Se houvesse um site onde se pudessem escolher as associações a quem se quer dar, seria óptimo. Uma espécie de associação das associações. Isso existe?

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segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Democracia versus Socratocracia

Há um tempo atrás, relativamente a uma polémica havida neste blog (nomeadamente aqui e aqui), cujo tema de fundo era o condicionamento ou não condicionamento dos meios de comunicação social pelo actual Governo, resolvi nada dizer. Renovo agora a polémica, porém, fruto de alguma preocupação.
O facto é que desde o início desta legislatura temos vindo a habituar-nos a um novo modelo de relação entre o Governo da nação e os órgãos de comunicação social, segundo o qual parece que já ninguém estranha – e, consequentemente, ninguém leva a mal – que o senhor primeiro-ministro (que não é, obviamente, o único a fazê-lo) telefone para directores de órgãos de comunicação social, directores de informação e jornalistas, afirmando-se desagradado com determinadas notícias, manifestando-se furibundo por causa delas, gritando com os seus interlocutores e intimidando-os relativamente ao seu trabalho.
É lícito concluir, neste quadro, que tais actos – ligados a outros, mais estruturais, como a decisão relativa ao já famoso quinto canal e o apoio que o Governo sempre encontra nas Entidades Reguladoras por ele nomeadas – ajudem a explicar o facto da nossa comunicação social não investigar alguns casos relativos a membros deste Governo que, tendo sido notícia, rapidamente se esfumaram e absolutamente desapareceram, nem informar imparcial e objectivamente seja sobre a actuação do Governo, seja sobre a daqueles que lhe são contrários – sendo que não falo aqui apenas de partidos políticos.
Ora, a minha preocupação relativamente a este cada vez maior controlo e ingerência do Estado nos órgãos de comunicação social (cuja visibilidade é hoje apenas a sua total invisibilidade), tem a ver com o facto de que, se lhe juntarmos o controlo cada vez maior do Estado sobre a economia e os acrescentarmos ao endémico controlo do nosso Estado sobre a esmagadora maioria das associações de carácter civil, veremos como a nossa democracia, que o é ainda de um ponto de vista formal, tem neste momento um claro conteúdo totalitário.
É ou não verdade que cresce entre nós a percepção desta cultura totalitária latente na atitude dos membros do Governo, especialmente assumida no autoritarismo do senhor primeiro-ministro, na intransigência da senhora ministra da educação, na arrogância do senhor ministro dos assuntos parlamentares, na implacabilidade do senhor ministro da presidência e na impunidade do senhor ministro das obras públicas? Não vemos nós, dia após dia, essa cultura transvazar e incorporar-se em vários organismos da administração pública, de que os maiores exemplos permanecem a ASAE, os serviços das Finanças e a Direcção Regional de Educação do Norte? Não será estranha esta revolta de tantos sectores chave da nossa sociedade – dos professores, das forças de segurança, dos militares –, que nunca em Portugal se tinham manifestado com esta espontaneidade e com esta força, e mais estranha ainda pelo facto das suas reivindicações surgirem envoltas no eco de uma distante irrealidade?
A lista poderia continuar. Para já fica assim o desabafo. Muitos discordarão, estou certo. Fico à espera. Entretanto, será bom lembrar que, tendo-se finalmente publicado a lista dos credores do Estado, apenas 3 empresas aceitaram integrá-la. Será bom lembrar a percepção comum, sempre não investigada, de que há empresas que controlam cada vez mais e maior parte dos vários sectores da economia, sem que tal aconteça com a necessária e devida transparência. Será bom lembrar que o Estado nomeia hoje directa e indirectamente os membros dos Conselhos de Administração de 5 Bancos portugueses (BP, CGD, BCP, BPN e BPP), fruto de uma intervenção que começou muito antes da actual crise financeira internacional. Será bom lembrar que, por causa dessa crise financeira, a sobrevivência dos restantes Bancos depende hoje, em boa medida, do aval do Estado. Enfim… Será bom lembrar que a democracia nunca está feita, mas a fazer-se: por todos nós, se nos deixarem; só por alguns, se os deixarmos!

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Eastwood e os 100 anos de Oliveira


Fui ver no sábado o último filme de Clint Eastwood (Changeling) que constitui mais uma obra prima. Penso que não existe hoje em dia um outro realizador tão consistente e perfeito na forma como dirige os seus filmes. Para além disso, ou Eastwood tem uma sorte incrível nos guiões que lhe calham ou consegue transformar qualquer guião num grande filme. A única diferença entre este filme e os mais recentes de Eastwood é que ele regressa a uma separação clara entre o bem o mal. Os filmes de Eastwood são quase todos filmes profundamente morais mas, enquanto na grande maioria dos seus filmes mais recentes (Unforgiven, Mystic River, Million Dollar Baby ou o "díptico" sobre a batalha de Iwo Jima) Eastwood se concentrou na ambiguidade moral e na dificuldade de identificar claramente onde está o bem e o mal, Changeling é um filme que não nos deixa dúvidas a esse respeito. É bem possível também que Angelina Jolie ganhe o Óscar com a sua interpretação (embora, pessoalmente, me pareça que falta um pouco de profundidade psicológica à sua personagem: é uma interpretação perfeita até na sua contenção mas penso que Angelina Jolie simplesmente não consegue exprimir a "geologia" psicológica de um personagem).
A razão porque vos escrevo sobre o filme é outra, no entanto: foi o primeiro filme de Eastwood que vi depois de saber da sua admiração por Manuel de Oliveira. Confesso que isso gerou em mim uma certa perplexidade inicial: eu sou um grande fan de Eastwood mas não de Oliveira. Digo isto com a consciência de que Manuel de Oliveira celebra 100 anos esta semana e que, em Portugal, estas comemorações costumam excluir qualquer referência crítica. Como não há o risco, no entanto, de ofender Oliveira (duvido que leia o nosso blog ou que se importe minimamente com o que penso) gostaria de ser sincero no que respeita ao seu cinema, em particular à luz da sua "relação" com o cinema de Eastwood.
Compreendo os filmes de Oliveira como uma expressão da sua tese sobre o cinema enquanto forma de literatura ou teatro filmados. Compreendo a tese e os seus filmes mas não concordo e não gosto (a diferença é o Aniki Bóbó que formalmente, no entanto, está bem mais próximo do neo-realismo; que pena Oliveira não ter seguido esta via, talvez por não ter realizado outro filme durante muitos anos). Sou capaz igualmente de apreciar certos planos e é aqui que vejo alguma influência em Eastwood (os travellings lentos e com os personagens fixos na câmara por exemplo). Só que, para mim, se Oliveira coincide com Eastwood na elegância formal de certos planos cinematográficos faltam-lhe três dimensões essenciais do cinema que Eastwood dominana perfeição e o transformam no meu realizador favorito: direcção de actores, montagem e ritmo narrativo (o que é diferente de um ritmo acelerado; os filmes de Eastwood por vezes são lentos mas com um ritmo narrativo perfeito). A consequência é que os filmes de Oliveira podem ser objectos muito interessantes mas, para mim, não são bom cinema.
Como este blog está cheio de cinéfilos mais especialistas que eu estou curioso de saber se partilham desta opinião. Discutir Manuel de Oliveira e caracterizar o que faz talvez seja uma forma interessante de celebrar os seus 100 anos. .

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domingo, 7 de dezembro de 2008

O sexteto será de cordas?!

O sexteto de luxo de Barack Obama, incluindo Hillary Clinton como ministra dos Negócios Estrangeiros e um ministro de Bush, Robert Gates, na Defesa, mostra que a democracia americana tem pouco a ver com;
a) a nossa forma europeia (e ainda menos com a portuguesa) de separar esquerda e direita;
b) com a forma europeia, e muito menos com a nossa forma portuguesa, de vermos a alternância democrática.
Aos dois já citados, Obama juntou Janet Napolitano para cuidar da luta anti-terrorista e da imigração, Timothy Geithner, banqueiro que transita da Reserva Federal para as Finanças, Eric Holder que será o primeiro negro ministro da Justiça e James Jones, um general da Nato, para a segurança nacional. As nomeações vieram juntas com um solene aviso: “A economia americana está muito mais inclinada a piorar do que a melhorar”.
No essencial, a equipa é centrista (ou até conservadora se a referência for o espectro democrático) o que sobretudo se reflecte no “dream team” de conselheiros que se juntam, nas Finanças, a Geithner.
Dos 6 ministros – ou secretários – há três com mais de 60 anos (Hilary, por exemplo), dois com mais de 50 e apenas um abaixo, no caso Geithner que tem 47 anos.

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Ministros da Educação


Falemos de ensino. Do ensino secundário:

1. Trinta e três greves em oito anos.

2. Não há evolução de carreira: tanto faz que se seja bom como mau professor. Não há sanção, nem há recompensa e os professores são refractários à avaliação.

3. Os slogans das manifestações dos anos 70 são os mesmos das manifs de hoje.

4. A reivindicação maior é tempo: “querem ser profs para terem mais tempo livre”, acusam-nos os mais críticos, apontando facto da maioria dos profs serem mulheres que querem estar em casa cedo e ter as mesmas férias grandes dos seus filhos.

5. Os profs são, hoje, uma classe proletarizada e deprimida pelas suas próprias queixas.

Não, este não é o quadro que Maria de Lurdes Rodrigues tem de enfrentar. Este é o retrato-robot que enfrenta o ministro Xavier Darcos, responsável pela Educação dos franceses no governo de Sarkozy. O governo francês é dos que mais gasta na Europa (julgo que é mesmo o que mais gasta, com um professor para cada 12 alunos) com resultados tão medíocres como desanimadores que fazem com que 8,5% dos alunos com 15 anos demonstrem grande dificuldade de leitura.
Xavier Darcos, tal como Maria de Lurdes, iniciou a sua cruzada de mudança. Resultado, deparou-se com uma resistência implacável e sistemática. Já estava à espera, os sindicatos não se mostraram, nos últimos trinta anos, favoráveis a uma só das propostas que os diferentes governos apresentaram. Apesar de tudo conseguiu evitar o terramoto português. Favorecem-no duas situações:
pela inexorável marcha da idade, há uma saída massiva de professores da velha geração para a reforma;

a renovação geracional trouxe gente interessada em trabalhar melhor, investindo no seu papel de educador, com a condição de ser mais bem paga.

Parece que Xavier Darcos tem dinheiro para isso.

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A morte de Alexis II


Quando no dito Ocidente nos ocupamos sempre das mesmas coisas, e os projectores se deixam deslumbrar sempre pelas mesmas vistas, gostava de lembrar a morte de Alexis II.

Um homem que deixa uma igreja ortodoxa mais forte que a que encontrou e que deu passos importantes na conciliação com a igreja católica.

Personagem complexa, mas só os insípidos não o são.


http://en.wikipedia.org/wiki/Patriarch_Alexy_II_of_Russia

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Sarkozy encontra Dalai-Lama

Não se pode dizer que Nicholas Sarkozy não tenha a sua própria agenda. E já se viu que não é a habitual e canónica Moleskine. Como também não parece que o produto seja "made in China".
Sarkozy diz que a agenda dele não é dramática.
Há quem diga que é simbólica.
Os chineses alegam que é uma agenda espinhosa.

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sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Eleições antecipadas

Não tenho dados para validar ou para desacreditar a tese segundo a qual o PS prepara caminho para eleições antecipadas. Desse ponto de vista, os desmentidos oficiais valem o que valem. Mas não tenho muitas dúvidas que, a serem provocadas, poderiam traduzir-se num magistral golpe de misericórdia para a oposição. Do que verdadeiramente duvido é do «killer instinct» de José Sócrates.

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quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Inverdades


Lembro-me que em 1980 tínhamos um pequeno aparelho de tv, a preto-e-branco e lembro-me de ver o meu pai saír de casa, de um salto, quando a tv dava as notícias do acidente de Camarate e ir para a rua tentar ver o ar que se respirava.

Essas imagens e a dos políticos desse tempo, ficaram-me gravadas na memória. Quando era miúda, tendia-se mais para o absoluto. Parecia que nesses tempos se usavam menos palavras do que hoje.E as que havia, pareciam absolutas.

Por exemplo, "verdade", "mentira". Estacávamos diante dessas palavras como diante de um fosso. Respirávamos fundo antes de afirmarmos que era verdade e não teríamos coragem de dizer que era mentira aquilo que sabíamos ser verdadeiro.
Para além de que chamar alguém mentiroso exigia coragem. Não raramente teríamos de defender ao murro e pontapé a palavra e apanhar um par de palmadas da progenitora não era caso virgem.

Hoje, desapareceram a responsabilidade, o fosso, a vertigem do absoluto e a coragem. Inventaram-se palavras novas. "Inverdades", é uma delas. É como um passadiço de madeira trémulo e inquieto que permite atravessar para o outro lado, em segurança.

Já não é preciso tomar fôlego. " Inverdades" é uma palavra inventada à medida dos irresponsáveis e dos cobardes.

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MEZZALUNA

Os convivas do "Geração de 60" juntaram-se ontem no restaurante Mezzaluna, em Lisboa, por amável convite do Chef. Guerrieri, italo-americano radicado em Portugal.

Não houve Vichysoise.

Mas houve fartura de bem receber, fina comida, escorreita bebida e prazenteira conversa, para que conste.

Juro que nada desta apreciação resulta do facto de o Chef Guerrieri por duas vezes, à chegada e na partida, me ter dito, à laia de cumprimento, num sonoro e cantado italiano " Bela!"

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quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Sentença de surdez


Não sei se alguns companheiros geracionais partilham esta paixão, mas David Lodge era o meu romancista contemporâneo favorito. A utilização do passado não significa que ele tenha morrido: está bem vivo e publicou em 2008 mais um romance, "Deaf sentence".

Descobri David Lodge em Inglaterra. Eu fazia o doutoramento em Warwick, e comecei pela brilhante trilogia "Changing places - small world - nice work". E fui por aí fora: para trás (The British Museum is falling down, How far can you go?) e aguardando ansiosamente o próximo livro (Therapy, Paradise News, Thinks).

É difícil dizer o que me atrai mais em David Lodge. Talvez a forma ligeira mas profunda com que aborda problemas sociais. Talvez a forma um pouco estranha como constrói situações à partida improváveis mas que acabam por ser quase inevitáveis. Talvez a bonomia e o sentido de humor que levam a tiradas absolutamente hilariantes a propósito de assuntos sérios.

Nunca tive dúvidas de que os seus romances tinham fortíssimas componentes autobiográficas. Em Changing Places ele claramente descreve a sua sabática de troca de posições académicas com um professor de Berkeley (no livro Euphoric State University - estamos no final dos 60s). Em Nice Work a relação do mundo académico com o mundo do trabalho thatcheriano. Em The British Museum is falling down, o seu próprio debate moral (um jovem que está a acabar o PhD) com a pílula, no início dos anos 60. Em Therapy, as suas experiências com a psicanálise. Em Paradise News, viagens de férias em grupo organizado, tão à inglesa. Em Thinks, as relações entre o mundo das letras e das ciências cognitivas.

Para mim, isto era mais um incentivo aos seus livros. "Deixa cá ver o que ele esteve a fazer agora!". O traço mais marcante era a forma como ele descrevia situações semelhantes sem dúvida a outras por que tinha passado e construía um plot interessantíssimo e com um sentido de humor excepcionais. Com todos os livros dele dei por mim a rir alto.

Apareceu agora este "Deaf Sentence". Num posfácio Lodge admite que o livro tem componentes autobiográficas: a sua luta com a surdez, a perda do pai, uma visita quase falhada a Auschwitz.

Para um fã incondicional, o livro é uma tremenda desilusão.

David Lodge não perdeu o instinto de criar situações intrigantes e aparentemente improváveis. Mas onde antes era leve, agora é pesado. Onde mostrava um humor subtil e hilariante, agora é azedo e amargo. Onde mostrava saber rir de si próprio e tinha prazer em partilhar com os outros esse riso, agora é apenas descritivo e tenso.

Amargura, azedume, tensão. Acho que David Lodge perdeu a capacidade de rir de si próprio, de olhar com leveza para os seus próprios problemas. Infelizmente já não vou estar sempre à espera de ver quando sai o seu próximo livro.


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