quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Entre les murs de Laurent Cantet


Registo esforçadamente realista do ano lectivo de uma turma do 4º ano (equivalente ao nosso 8º ano) num liceu (equivalente à nossa secundária) do 20.éme (equivalente à nossa Damaia). Confronto entre um sistema de ensino (o francês) e um sincretismo cultural feito de origens múltiplas, de condições e formas de adaptação diferentes, de perspectivas pessoais e familiares variadas.

Podemo-nos interrogar sobre o que importa neste filme: a) Tomar conhecimento de uma realidade? Não é propriamente uma novidade; b) Reflectir sobre o modelo de ensino em si mesmo, os seus processos e as suas finalidades? Nem as aulas nem as reuniões dos professores denotam essa reflexão; c) Observar o efeito de um modelo de ensino confrontado com a diversidade cultural e existencial dos alunos? Não se percebe se há esse modelo ou se estamos apenas perante uma gestão do caos.

Baseado na experiência relatada em livro Entre les murs (2006) de um professor — François Bégadeu — o filme (2008) apresenta o decurso de um ano lectivo entre as aulas da disciplina de Francês e as reuniões entre professores. Se quisermos ver o filme de um lado lamuriento, mas totalmente ineficaz, podemos cair na ladainha social nas justificações exógenas ao problema: condições sociais, diversidade étnica, etc. Só que, nos colégios onde não se aplicam aquelas justificações, os problemas são absolutamente iguais. Ao vermos o filme reconhecemos que estamos perante um problema geracional e não local. Se quisermos compreender o fenómeno é aí que temos de procurar as razões. Sendo a educação um processo de conhecimento de si próprio, uma orientação do crescimento mental e uma maiêutica da razão, ela é determinada por diversos factores de mimetismo que arrastam os alicerces da formação. A começar pela família onde o exemplo de vida dos pais é determinante até aos valores que são transmitidos por quem passa mais tempo com as crianças e com os adolescentes, muitas vezes a televisão e os jogos interactivos. Estes são factores determinantes que facilitam ou minam o papel da escola que, por si só, não tem capacidade de motivar os seus alunos.

Se associarmos a este cenário de vida privada e social um modelo de ensino que não rectifica nem se impõe como exemplo do que deve ser a formação das crianças e dos jovens, a humanidade pode estar perante uma catástrofe sem paralelo. Podemos observar que os alunos não deixam de passar as fases próprias até à eclosão da razão e da sua manipulação. Porém, a elogiada capacidade de resposta e espírito rebelde que tanto são apreciados nos jovens respondões, atrevidos ou insolentes, demonstra apenas que capacidade de operar dialecticamente com a escassez de dados de que dispõem não lhes falta, o problema são os conteúdos sobre os quais eles operam, em geral, são raciocínios feitos a partir da sua reduzida experiência que resultam necessariamente em formas galopantes de egoísmo e de desesperança. Dá gosto vê-los reagir, mas faz pena vê-los tão limitados na sua percepção da realidade.

A escola perante tão complexo e esgotante processo, acaba por se sentir na obrigação de compensar as infelicidades das vidas dos jovens insolentes e indiferentes e acaba por se ir tornando numa marquesa de psiquiatra com resultados que estão à vista de todos.

Para encontrarmos saídas para o problema teremos de recentrar o nosso olhar no que deve ser a finalidade da educação. Temos de pensar que a organização do saber corresponde a uma forma disciplinar a que individualmente o aluno vai aceder e que vai compreender na medida em que for percebendo a finalidade de todo o seu percurso. Aquilo que se exige que seja apreendido, somatizado e compreendido tem de se apresentar através de um processo de captação da atenção e da curiosidade. Mas também através de uma atitude que se tem de exigir aos alunos. Essa atitude deve exprimir a gravidade (a importância) do comportamento (agora diz-se atitude) para o sucesso da aprendizagem. A demissão dos pais e dos professores, do seu papel normativo, acreditando que o ensino pode ser feito pela brincadeira, só diminui o desenvolvimento psicológico da criança e do jovem. A ideia que é preciso levá-los a bem tem limites que não podem ser ultrapassados ao ponto de tornar tudo num recreio sem fim. E, sobretudo, sem seriedade, nem gravidade. O problema da educação é dos mais graves, senão o mais grave de todos os problemas. A prática de virtudes como a disciplina, persistência, concentração e coragem são virtudes humanas indispensáveis à formação do carácter.

Na sociedade da imagem, em que estamos transformados, a percepção da heroicidade não transmite aquelas virtudes, só o sucesso. O sucesso dos jogadores de futebol, por exemplo, com que os jovens são confrontados não lhes dá a construção do sucesso, só o resultado. Eles ficam convencidos que o jeito chega e, em rigor, o que os fascina, porque também é isso que os media transmitem, são os símbolos do sucesso: carros desportivos, roupas de marca, penteados exóticos, adereços preciosos, aparência de terem muitas namoradas. O herói que formou outras gerações, e não há assim tanto tempo, era precisamente o contrário: punha a sua disciplina, persistência, concentração e coragem ao serviço dos outros, morria por eles, não procurava louros, perseguia um bem.

Mesmo no centro da complexidade do mundo contemporâneo o recentramento da educação no seu foco primordial é talvez a última experiência, aquela que verdadeiramente se tem adiado. Perceber quais os factores que motivam as crianças e os jovens, que tipo de imaginação é próprio de cada idade, que tipo de responsabilidades lhes devem ser exigidas em cada momento, é essencial para repor as finalidades da educação na primeira linha da organização do ensino.

Educar para quê? Esta a interrogação que deve estar presente em todo o edifício do ensino desde a escola primária até ao fim da universidade. Na disciplina de Desenho do 1.º ano na Faculdade de Arquitectura do Porto aprendia-se que um desenho deve sempre reflectir o tempo que tivemos para o fazer. Os primeiros 10 segundos têm, por isso, que conter o esquema do desenho final, como ao fim de 2 horas o detalhe deve exprimir um conhecimento exacto do objecto desenhado. A tese é: o desenho está sempre feito, o todo está sempre presente e o tempo é o amadurecimento do registo inicial. A finalidade está posta desde início.

Educa-se para a liberdade ou instruímos para o trabalho. Estas parecem ser as posições extremas que balizam os sistemas de ensino. Ou serve para nos conhecermos a nós próprios ou serve para nos familiarizarmos com as técnicas da produção. Ou o ensino é dirigido ao saber e o saber é infinitamente mais do que a preparação para o trabalho, ou o ensino é dirigido ao exercício de técnicas concretas e variadas e ficam coarctados anos de aprendizagem e de amadurecimento de ideias e de pensamento.

Perante a complexidade das sociedades contemporâneas esquecemo-nos, de reforma em reforma, do objectivo primordial de toda a educação que é integrar as crianças e os adolescentes no convívio universal. Essa integração só se faz através do que é universal e não em particularidades que, por definição, apenas contribuem para um todo e não são em si mesmas universais. A identidade que o jovem começa a reconhecer quando pela razão se torna um ser reflexivo é o momento do seu desenvolvimento em que se abre um conflito entre si o mundo onde se vai afirmar singular e único. O reconhecimento da diferença anda a par do reconhecimento da relação com o mundo e com os outros e é, então, que pelo pensamento ainda frágil se vai formando como ser livre, e livre significa aqui capaz de se integrar com originalidade no convívio universal. A liberdade é a finalidade do que se desenvolve para ser aquilo que é, aquilo que vai reconhecendo que é, aquilo em que se vai constituindo como identidade intransmissível ou individual. Assim, se percebe que só aprendendo a pensar, mais do que aprender técnicas que o prendam a um ofício ainda antes de saber pensar, é que cada ser se realiza livremente.

1 comentários:

Sofia Rocha disse...

João Luís, concordo com o que escreve.
A questão que suscita da universalidade vs particularidade atinge o auge no ensino universitário.
Os empregadores acusam as universidades de ministrarem cursos "demasiado teóricos" que insistem não formam para a empregabilidade.
As universidades começam já a estar atentas a essa realidade e tentam adaptar-se, ministrando cursos desenhados especificamente para os empregadores.
Todavia, pelo que me é dado ver, no final disto tudo os jovens nem possuem uma formação académica clássica, sólida, por um lado, nem são bem o que o mercado quer, por outro.
Oxford defendia há pouco tempo um "back to basics", isto é, mais inglês e mais matemática para todos os alunos, quer se trate de cursos de humanísticas ou de ciências.
Parece-me o melhor caminho.