II. Journey to Italy – Rossellini
Qual é o problema deste casal? Ele é o pragmático na aparência. Ela a sonhadora. Mas é mais o que os une que o que os separa. São ambos modernos, e padecem de todas as taras da modernidade. Ele seria hoje o defensor da economia do mercado, ela a altermundialista. Com melhor ar e mais bem vestida, é certo. Mas são dois filões de uma mesma têmpera. Ele irrita-se com a possibilidade da poesia, ela só vê poesia em algo mais espiritual que o espiritual. Ele é bem menos erótico, mas no fundo partilham do mesmo problema: são ambos descarnados, sem corpo.
Ele não deixa de ter duas experiências próprias. É o pragmático mas afinal apenas procura o sentimento. Com uma mulher que vem a saber casada ele procura o sentimento e vê que as portas estão fechadas. Além de casada ela é fiel. De seguida com uma prostituta. Mas por azar dele não encontra na economia de mercado o que seria consolador para ele. Encontra uma mulher que se atreve a ter uma história. Ia-se matar se não fosse a sua intervenção. Ele que procura o sentimento num corpo pago o que lhe diz esse corpo no mercado é que tem sentimentos. Ele que procura o sentimento encontra quem o procura também.
As experiências dela são bem mais ricas. São corpos o que encontra. As estátuas do museu, as caveiras e esqueletos de uma igreja, e sobretudo no final, os corpos incinerados de Pompeia, em que um casal mesmo morto tem mais corpo que o seu matrimónio. E mais duas coisas. Crianças, muitas crianças. E grávidas, grávidas em grande quantidade. Ela, a sentimental na aparência, é destituída de ligação ao corpo. Porque vimos a saber afinal que a hipótese pragmática assassina foi colocada por ela, ela a sonhadora., foi ela que decidiu não ter filhos. É muito mais razoável.
O filme é de 53 e só conheci a Itália 20 anos depois, mas era uma Itália onde ainda muito do que nele se vê ainda existia. Já com a acumulação capitalista amadurecida, mas as mentalidades são mais lentas, bem mais lentas. E o mundo era o mesmo, ou quase. A mesma presença carnal que transbordava para as ruas. E foi isso que o casal encontrou.
As duas experiências de sentimentos, um com porta fechada, outro invasivo, não o desbloquearam. Ela, que teve a percepção do corpo, da omnipresença católica do corpo, percebeu mais depressa que ele onde estava o seu bloqueio. Foi necessário que a maré humana de uma procissão o levasse a perceber que ela tinha corpo, que era frágil, portanto. E que sem corpo não há sentimento.
Uma religião descarnada pelo pragmatismo ou espiritualista são duas vertentes de uma mesma recusa da vida. Ele, que não percebeu que o sentimento não se deseja nem se paga nem se substitui não percebeu que a mediação era o corpo, até ver o corpo da mulher afogando-se numa procissão, no magote de gente. De gente realmente presente, em que cada passo da vida é intenso e atestável. Não é apenas meio, seja de pagamento (como ele pensa), seja de evasão (como ele deseja).
Ele tentou trai-la duas vezes em crise de casamento, ela já o traía em pensamento com um poeta antes sequer do casamento começar, e outra coisa não tinha feito até então. No fundo, caíram ambos na trápola moderna tão superficialmente moderna, em que construímos a nossa vida com base em ideias. E eis que o corpo, seja em estátua, em cinzas, em esqueleto, em gravidez ou em criança se nos impõe. Uma vida sem corpo dá o pragmatismo seco ou uma evasão que se julga poética. De uma forma ou de outra um exílio.
A história acaba bem, embora ele tenha de pôr uma condição. No fundo que ela não o compare nem o critique. Nem tudo é perfeito nesta vida. Se digo "acaba bem" deveria antes dizer “começa bem”. Reconhecendo a presença real do corpo não acaba a história, mas apenas se lançam as premissas para que comece realmente.
Alexandre Brandão da Veiga
Ele não deixa de ter duas experiências próprias. É o pragmático mas afinal apenas procura o sentimento. Com uma mulher que vem a saber casada ele procura o sentimento e vê que as portas estão fechadas. Além de casada ela é fiel. De seguida com uma prostituta. Mas por azar dele não encontra na economia de mercado o que seria consolador para ele. Encontra uma mulher que se atreve a ter uma história. Ia-se matar se não fosse a sua intervenção. Ele que procura o sentimento num corpo pago o que lhe diz esse corpo no mercado é que tem sentimentos. Ele que procura o sentimento encontra quem o procura também.
As experiências dela são bem mais ricas. São corpos o que encontra. As estátuas do museu, as caveiras e esqueletos de uma igreja, e sobretudo no final, os corpos incinerados de Pompeia, em que um casal mesmo morto tem mais corpo que o seu matrimónio. E mais duas coisas. Crianças, muitas crianças. E grávidas, grávidas em grande quantidade. Ela, a sentimental na aparência, é destituída de ligação ao corpo. Porque vimos a saber afinal que a hipótese pragmática assassina foi colocada por ela, ela a sonhadora., foi ela que decidiu não ter filhos. É muito mais razoável.
O filme é de 53 e só conheci a Itália 20 anos depois, mas era uma Itália onde ainda muito do que nele se vê ainda existia. Já com a acumulação capitalista amadurecida, mas as mentalidades são mais lentas, bem mais lentas. E o mundo era o mesmo, ou quase. A mesma presença carnal que transbordava para as ruas. E foi isso que o casal encontrou.
As duas experiências de sentimentos, um com porta fechada, outro invasivo, não o desbloquearam. Ela, que teve a percepção do corpo, da omnipresença católica do corpo, percebeu mais depressa que ele onde estava o seu bloqueio. Foi necessário que a maré humana de uma procissão o levasse a perceber que ela tinha corpo, que era frágil, portanto. E que sem corpo não há sentimento.
Uma religião descarnada pelo pragmatismo ou espiritualista são duas vertentes de uma mesma recusa da vida. Ele, que não percebeu que o sentimento não se deseja nem se paga nem se substitui não percebeu que a mediação era o corpo, até ver o corpo da mulher afogando-se numa procissão, no magote de gente. De gente realmente presente, em que cada passo da vida é intenso e atestável. Não é apenas meio, seja de pagamento (como ele pensa), seja de evasão (como ele deseja).
Ele tentou trai-la duas vezes em crise de casamento, ela já o traía em pensamento com um poeta antes sequer do casamento começar, e outra coisa não tinha feito até então. No fundo, caíram ambos na trápola moderna tão superficialmente moderna, em que construímos a nossa vida com base em ideias. E eis que o corpo, seja em estátua, em cinzas, em esqueleto, em gravidez ou em criança se nos impõe. Uma vida sem corpo dá o pragmatismo seco ou uma evasão que se julga poética. De uma forma ou de outra um exílio.
A história acaba bem, embora ele tenha de pôr uma condição. No fundo que ela não o compare nem o critique. Nem tudo é perfeito nesta vida. Se digo "acaba bem" deveria antes dizer “começa bem”. Reconhecendo a presença real do corpo não acaba a história, mas apenas se lançam as premissas para que comece realmente.
Alexandre Brandão da Veiga
1 comentários:
Com a devida vénia, não vejo como é que uma mulher que recusa a maternidade recuse o corpo.
Será justamente porque tem dele tal consciência e asceticamente o coloca num altar que recusa a transfiguração e a mutilação.
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