terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Um Natal em África

Grandes alegrias trazem lágrimas. Sempre será assim e muito mais assim foi no Natal de 1974. Só vos digo e para vosso sossego: a alegria tem uma ferocidade vaidosa e dramática.
Em 1974, estava em Luanda, cidade sofrida e a caminho da crudelíssima independência. Aos 21 anos sentia-me tão só quanto só se pode estar. A família tinha deixado África e eu, nem pai, nem mãe, estava por minha conta, acompanhado por uma multidão de amigos cujas cabeças, dia a dia, iam rolando à velocidade da guilhotina na Revolução Francesa. Mortos? Nem mortos, nem atropelados. Eram apenas nomes inconsoláveis que, dia a dia, a ponte aérea para Lisboa abatia ao activo. Para nós, e para o que na altura interessava, defuntos irremediáveis e indesculpáveis.
No meio desse caos furioso e obsessivo, no meio do fogo amigo e do fogo inimigo de cuja ontologia duvidávamos, começou a crescer, modesto mas abnegado, o Natal, o meu Natal de 74. Não sei se foi um sussurro, se foi um piscar de olhos, mas esse Natal, que na Europa calha tão bem aparecer de repente no meio do Inverno, surgiu suave, mais tropical do que nunca e foi o meu primeiro e verdadeiro Natal angolano.
O caloroso acolhimento foi duma família africana, comandada por um patriarca como nunca mais encontrei. Entre irmãos, irmãs e meio-irmãos eram uns seis, mais primas e primos, pai e mãe, como só existem nas grandes sagas familiares. Eu, branco, fui recebido como filho. A geleira, como numa família decente se chama a um frigorífico, estava (esteve durantes dois anos) à disposição: “Aqui não se pede, abre-se e tira-se.
Lembro-me de nos organizarmos e traficarmos. Sei que houve vinho, couves e bacalhau a chegar de Portugal. Se algum dia (e peço perdão) o Menino Jesus me tinha parecido anedótico e um pouco tolo, no Verão angolano de 74 tive a impressão de que o Natal era intemporal, robusto e sem caprichos.
Naquela dia, 24 de Dezembro, tive a melhor das ceias. De vez em quando, ou quase sempre, o crepitar das AK ia pondo vírgulas e pontos de interrogação nessa noite de uma estrela. Menos insistentes, com uma delicadeza obsoleta, dois ou três morteiros introduziam a necessária nota de suspense. Coisa pouca e, I promise, nem sequer me estou a fazer interessante. Coisa muita foram as conversas, as promessas, as juras e os choros dessa ceia tão delicada e intensa. Os discursos, meu Deus, o gosto que tínhamos nos nossos discursos, tão vibrantes, tão eufóricos, tão nus. Apontavam-nos uma pistola à cabeça e discursávamos. Mesmo mortos, continuaríamos a discursar, e sempre com alegria feroz, vaidosa e dramática.
Foi, imagino que foi, no meio dos discursos, em pleno Natal de 74, ciciado e susurrante, que dei comigo a pensar: quem sabe se em vez do verdadeiro Cristo ser Marx – como diziam os nossos discursos e a ponta de cada espingarda – quem sabe se, afinal, o verdadeiro Marx não será este Cristo anunciado por uma estrela amarela no céu vermelho de África.
Para ser completamente franco interessa-me bem mais a a pergunta do que qualquer resposta.
Copiado quase integralmente daqui, do Pnet Homem!

2 comentários:

Vasco M. Grilo disse...

Manuel,

Prometa ao Geracao que pelo menos uma vez por mes faz uma visita a Africa dos anos 70. Gostei muito desta.

Abraco

Sofia Rocha disse...

Neste Natal de 74 também em Portugal famílias portuguesas e africanas que recém-chegadas, tinham África no coração.
No forte em Peniche, antes prisão política, aglomeravam-se dezenas de famílias que agora tinham aquela como única morada.
Em Coimbra uma família de nove, Pai, Mãe, 6 filhos menores e uma avó, também passavam o Natal. Tinham deixado todos os pertences e o coração em Lourenço Marques.
A minha sogra diz que foi o Natal mais imaginativo que teve de providenciar.