quinta-feira, 31 de julho de 2008

Os pobres, a direita e a esquerda

Os que dizem que não faz sentido distinguir a Direita da Esquerda, às vezes têm razão. Isso mesmo mostram as disputas (que não cito por preguiça, pedindo desculpas por isso), nos jornais e outros meios, por causa das recentes lutas entre ciganos e negros, algures na periferia de Lisboa.

A direita ex-marxista e a direita não católica escreveram coisas impressionantes, que basicamente se traduzem no seguinte: não ajudem os pobres, pois isso torna-os ineficientes e preguiçosos. Os ex-marxistas da direita continuam a achar que o Mundo pode ser corrigido e só o não é porque os homens maus não querem. Não aprenderam a lição com a queda do muro de Berlim. Os não católicos da direita acham que a busca da eficiência é o valor mais importante à face da Terra. Não aprenderam a lição olhando para as suas próprias vidas, para verem como também elas têm muito de ineficiente.

Ajudar os pobres é ineficiente? - Claro que é. Assim como olhar para o tecto à procura de inspiração. Ou discutir no corredor, longamente, a invenção da água quente.

(A verdade é que nada disso é ineficiente, quando tudo é bem medido, uma dedução impossível de expor a quem usa demais a ideologia.)

Mas a questão não é saber se ajudar os pobres é ineficiente ou não. E é aqui que entra a direita católica, para quem ajudar os pobres é tão natural como rezar. Esta direita está mais perto dos socialistas moles, que acham o mesmo. Sim, porque os socialistas duros são como a direita ex-marxista (et pour cause) e a não católica. Para eles, ajudar os pobres é alimentar o "sistema" e atrasar a revolução.

Meus caros, brinquem aos liberais mas parem quando há pessoas que precisam dos seus problemas resolvidos. De uma forma não malthusiana, de preferência.

Perdoe-se a generalização feita nestas linhas, mas retenha-se o que de válido ela dá.

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quarta-feira, 30 de julho de 2008

A palha

Acerca da questão dos médicos (breves notas).

Pouco tempo depois de ter começado a trabalhar numa institução pública, há vários anos atrás, cedo me convenci de que a situação dos trabalhadores deveria ser rigorosamente definida: ou público ou privado. Anos mais tarde, quando fui trabalhar para o sector privado, tive a certeza absoluta.

O que se passa no sector público é relativamente simples de explicar.

Existe um vínculo ( de nomeação ou contrato)de trabalho dependente. Ao abrigo deste vínculo, a entidade empregadora face ao funcionário ou trabalhador, tem determinados deveres, a que correspondem direitos desses mesmos trabalhadores. Para além da retribuição, a entidade empregadora tem de efectuar os descontos obrigatórios para a segurança social (reforma e doença), tem de pagar catorze retribuições, tem de justificar faltas relativas à maternidade, paternidade e doença, só para falar de alguns que são os que mais pesam no bolso de quem paga.

Ora, sabemos que quando um trabalhador já tem quem lhe pague estes direitos ( reforma, doença, maternidade), torna-se apetecível para o sector privado. E porquê?
Porque nestes casos, a entidade privada recorre a uma prestação de serviço, os chamados "recibos verdes". Paga-se uma determinda quantia, ou seja, as horas que são prestadas. Não há descontos para a segurança social, não há justificação de faltas, muito menos se paga a mulheres que estejam em casa com um filho de meses.

Ora, há duas questões que gostaria de colocar.

A primeira, é se os privados estão dispostos a pagar a integralidade dos deveres de uma entidade empregadora, e não apenas umas horas em prestação de serviços.
E eu até acredito que queiram, todavia quando o fazem, serão exigentes e rigorosos. De uma coisa estou certa, médico que trabalhe exclusivamente para uma entidade privada, não acumula em mais sítio nenhum, não tem tempo!

A segunda é, se nesse caso, os médicos estão interessados. É que a actual situação lhes é benéfica.De um lado, têm um patrão que não é muito exigente, podendo por causa disso, obter um um complemento salarial, nada dispiciendo.

Perante este cenário que deve o Estado fazer? Eu penso que quem paga pode e deve exigir. O princípio só pode ser o da exigência. O Estado tem de se comportar como uma entidade empregadora exigente, sob pena de se poder dizer que " muita palha come o burro, mais burro é quem lha dá".

Sendo que neste caso, burros são os portugueses que com os seus contratos, descontos e impostos sustentam tanta palha.

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segunda-feira, 28 de julho de 2008

Diplomacia Comercial


Um dos mais escandalosos sinais da ineficácia de Portugal hoje, é o desperdício de energia vital, seja intelectual, seja laboral. Sabemos que temos uma dimensão pequena (população e Km2 de território) e que estamos “encurralados” entre a Espanha e o Oceano infinito. Sabemos, também, que não temos petróleo nem outras matérias-primas valiosas. Sabemos que não temos indústrias poderosas e que a agricultura foi sendo inviabilizada pelas cotas europeias (ou francesas). E sabendo isto o que fazemos?

Um país não cresce se apenas produzir internamente para o mercado interno. A não ser que seja muito rico e auto-suficiente para, sem recurso à importação, satisfazer todas as suas necessidades. Não sendo, como mesmo os mais ricos não são, tem de estabelecer um equilíbrio entre as importações e as exportações. Ou seja, se importa e paga o que importa, também tem de exportar para ter dinheiro para comprar. Ora, sendo um país pequeno em população é um país pequeno em mercado interno e as suas actividades, se apenas se dirigirem ao mercado interno, não ganharão dimensão que lhes permita combater ou acompanhar a concorrência dos países estrangeiros que desenvolvam a mesma actividade e vejam no mercado português um destino para expansão do seu mercado-alvo. Pensar na concorrência obriga a ganhar dimensão e para ganhar dimensão é necessário ter os olhos postos não no mercado português mas no mercado mundial. Para concorrer no mercado mundial é preciso ter vantagens competitivas que, primeiro, justifiquem os custos da distância e que, segundo, justifiquem a opção pelos nossos produtos ou serviços. Estas duas vantagens têm de ser criadas, tem de ser pensadas, construídas e depois aplicadas.
Não vamos insistir no que é mais evidente para dar o primeiro grande passo no sentido do mercado internacional e que é obviamente o nível de educação dos portugueses. A educação, que não é só a literacia com que tantos hoje se contentam, deveria desenvolver as qualidades humanas que dão superioridade aos povos: disciplina, conhecimentos (sensibilidade e inteligência) e coragem.
Entretanto, teremos de começar a andar como sabemos, e a necessidade é a principal causa do desenvolvimento de qualidades que no remanso da pacatez conformada e abúlica estão adormecidas. E começar a andar, aqui, significa identificar as actividades que nos podem diferenciar e identificar os mercados a que elas se podem dirigir. Não penso que deva ser o Estado identificar essas actividades nem esses mercados. Essa tarefa cabe aos empresários ou aos empreendedores. Mas penso que o Estado tem uma obrigação fundamental pela capacidade que um Estado tem no diálogo com outros Estados. Ou seja, o Estado não tem de dizer aos empresários ou aos empreendedores o que fazer, mas tem o dever e o alto interesse de proteger ao mais alto nível os seus cidadãos estejam eles onde estiverem.

Era à diplomacia portuguesa que queria chegar. Das diversas funções e justificações para a actividade diplomática, uma deveria ter um forte investimento e uma forte fiscalização: identificação de oportunidades e preparação de terreno para o investimento português, protecção ao mais alto nível dos interesses dos portugueses, empresas ou empresários, que se internacionalizam e captação de investimento estrangeiro para Portugal. A diplomacia comercial é um vector absolutamente fundamental para criar uma corrente de confiança e de apoio à sustentação de uma política económica baseada na força da iniciativa privada e na disponibilidade com que alguns arriscam as suas vidas e os seus negócios gerando, directa ou indirectamente, benefícios para todos. Porque sempre que alguém faz a mala e parte sem garantias e sem rede é, lá fora, um português. É um português que há-de voltar. E é menos um português que aqui fica a lamber feridas enquanto o país precisa de se regenerar e de se arriscar. É um português que vai gerar oportunidades, que vai gerar emprego, que vai representar Portugal, que vai trazer capital, que vai trazer investimento, que vai ser um exemplo para outros e, por isso, demonstra-lhes que é possível.

As Embaixadas têm de estar onde se conseguir um equilíbrio entre o fluxo de portugueses e dos seus interesses e os custos dessa localização. Mas se houver um investimento em que o governo central exija resultados, então, toda a implantação de Embaixadas será dirigida para uma diplomacia comercial que envolve o Estado, mas que acima de tudo desenvolve uma actividade que dá frutos por ser dirigida e focada na identificação de oportunidades nos dois sentidos. Resulta da identificação de um mercado a que os empresários e os empreendedores estão despertos e, por isso, o Estado deve desenvolver iniciativas para se representar até ao ponto de, se não houver, abrir uma Embaixada.

Naturalmente, que essa actividade de diplomacia económica deverá ser acompanhada de uma diplomacia de representação com o desenvolvimento de encontros bilaterais, com fomento de relações geo-estratégicas, de protocolos de cooperação entre Estados, de programas especiais nas áreas da educação, do turismo, programas de geminação de cidades e com actividades de divulgação da cultura portuguesa, sobretudo, na perspectiva em que nos possamos diferenciar de anglo-saxónicos, alemães e holandeses, franceses, italianos e espanhóis.
Muitas das localizações têm já representação portuguesa. Mas essas nós perguntamos: o que têm feito para criar esta corrente comercial? Como justificam o investimento do Estado nas suas Embaixadas e o retorno que delas pode vir mas não vem? Se o Estado somos todos nós, então como é que o nosso dinheiro está a ser gasto se quando precisamos de o investir ele está a ser gasto sem qualquer vantagem para nós?

As embaixadas servem para representar mas também para potenciar, desenvolver e afirmar Portugal. Deve movê-las o estrito interesse nacional e o interesse nacional são os interesses dos portugueses actuais e vindouros. O interesse nacional é determinado por interesses políticos realizado em alianças, desenvolvimento das relações com os parceiros tradicionais, e pelo interesse económico determinado pelas conjunturas que propiciam o reforço ou a abertura de uma nova frente diplomática.
Acresce, no caso português, a relevância que podem ter as nossas características. A não hostilização da diferença, a adaptabilidade a novas condições, uma cultura de proximidade e de convívio bem contrária à tradição anglo-saxónica, são factores que podem diferenciar a presença portuguesa no mercado global e que, no fundo, é um património histórico que nos pertence. Mas ter uma rede é fundamental para ter um respaldo institucional, sobretudo, nos mercados onde as diferenças culturais, políticas e operacionais são muito grandes. É também na construção desse respaldo que a nossa competitividade pode aumentar.

Já que temos a despesa podíamos também ter algum proveito. Se as Embaixadas portuguesas fossem postos avançados, na Ásia, no Médio Oriente, na África, na América Latina e no leste europeu, naqueles lugares onde os nossos produtos e serviços podem ser vantajosos e competitivos, então, as portas do nosso pequeno mercado interno abrir-se-iam ao mundo e a nossa dimensão deixaria de ser um problema que nos atrasa e inibe de pensar na medida da nossa visão. A nossa dimensão será sempre a dimensão da nossa alma. O que queremos ver do outro lado do espelho?

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Zezinho, Huguinho, Eduardinho & outros

As recentes viagens diplomático-comerciais que assolam ambos os países da Península, lembraram-me uma história que me contaram em miúda.

Passava-se num asilo. Estava um grupo de doentes internados que deambulavam de bata de hospital, de cabelos desgrenhados e olhar perdido.
De repente, um deles saca de um pau afiado que havia escondido numa manga e sem aviso desata a correr atrás de outro. Perseguia-o pelo corredor com gritos assustadores, empunhando o pau, qual faca, ameaçador.
À sua frente, gritando de terror, o homem é perseguido até ao fundo do corredor, onde fica encurralado. O perseguidor pára defronte do homem. Empunha a arma, o braço levantado.
De olhar esgazeado, ri para o homem que tinha perseguido.
Diz-lhe então: " - Agora, corres tu atrás de mim!".

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Todos Gostamos de Viajar

O Alexandre pôs o dedo na ferida. O TGV tem de ser apreciado numa perspectiva alargada, que inclui os aspectos culturais. Não muito diferente da que Fontes Pereira de Melo teve para fazer o comboio para o Eça de Queirós ir a Paris. E, mais tarde, também os emigrantes. Mas é sempre preciso fazer algumas contas, pois os recursos são escassos. Como fazer essas contas? Uma forma é contar o número de pessoas de onde se podem retirar potenciais e sedentos viajantes entre Lisboa e Madrid. Esse número é maior em Lisboa, que concorre para ser a segunda cidade da península ibérica, do que em Sevilha, que concorre para ser a quinta, sendo que esta já tem o seu altamente rentável comboio de alta velocidade. O meu contributo com as habituais contas sobre o joelho pode ser visto aqui.

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Apanhando o TGV

Não percebo grande coisa de comboios. E no entanto a democracia exige-nos que formemos opiniões sobre algumas coisas que serão vagamente importantes no futuro e que nos sairão do bolso.

Sob o ponto de vista estratégico sempre fui favorável ao TVG. Numa Europa em que imperam as médias distâncias e em que os comboios funcionam a electricidade, dependendo a montante por isso de fontes energéticas que podem ser variadas e com maior autonomia energética da Europa, sempre pendi a favor do TGV. Isto além de razões estratégicas e ecológicas que me aprecem aceitáveis.

Seja como for, não sou especialista em comboios e por isso gostaria que me esclarecessem um pouco mais sobre o assunto. A verdade é que esta questão tem posto a nu um vício na discussão pública em Portugal, que vai muito para além da questão do TGV.

Quem fala? Economistas. Para dizer o que? Que é caro, não é rentável e não é necessário. Tudo matérias em que pessoas com formação económica são competentes para se pronunciar, é certo. Nem contesto a coisa. Mas serão completamente competentes?

Que sabem os economistas de construção de caminhos-de-ferro? De fontes de alimentação em energia? De saturação de tráfego? De desgaste de materiais? Que estudos fizeram sobre as velocidade médias efectivas dos comboios entre Lisboa e Porto? E Lisboa e Madrid?

Ignoro. E não tenho conhecimento bastante para fazer a crítica disto. Mas noutro dia ouvi pela primeira vez um engenheiro a falar sobre a questão. Fala se bem me lembro de 591 comboios por dia na linha Lisboa Porto e da sua saturação, de uma velocidade média de 40 km por hora nessa linha por força da saturação, e dos atrasos provocados pelos comboios de mercadorias, do desgaste de materiais.

Não sei. Mas pareceu-me de repente que estávamos a falar de linhas de comboio e que um engenheiro saberia mais da matéria que um economista. Que fale o economista sobre o investimento numa biblioteca, mas antes gostaria de ouvir quem lê livros, que fale sobre a construção de uma igreja, mas antes que me fale quem sabe de teologia.

O problema é geral. Em Portugal pede-se ao futebolista que fale de geoestratégia, ao comentador político que fale de cultura e à estrela de telenovela que se pronuncie sobre a crise financeira. Que o economista fale de investimentos, parece-me bem razoável. Mas sobre a utilidade a necessidade e a estrutura da coisa a investir gostaria de ouvir em primeiro lugar quem sabe da coisa. Muitos de nós teremos aprendido a falar sobre muita coisa. O problema é que em perspectivas diversas. Alguém que partiu uma perna é mais bem assistido por um médico que por um economista, mesmo que este seja importante para (ajudar a) determinar os custos da operação.

Continuo sem bases para discutir seriamente esta questão. Mas como serei eu, como contribuinte líquido desde sempre, a pagar esta operação, e como vai influenciar a relação do meu país com a Europa, sou parte interessada na coisa. Gostaria de ouvir pois um pouco menos de economistas e gestores sobre isto e mais quem saiba de comboios. Cada um tem o seu lugar. Já ouvi uns, gostaria de ouvir outros para ter fundamentos na minha opinião.






Alexandre Brandão da Veiga

http://www.ordemengenheiros.pt/altavelocidade/files/Alta%20Velocidade-Portugal%20mais%20pr%C3%B3ximo.pdf
http://www.europeanrailwayreview.com/
http://europa.eu/scadplus/leg/en/lvb/l24013.htm
http://www.railpass.com/
http://www.raileurope.com/us/rail/fares_schedules/
http://www.raileurope.co.uk/Default.aspx?tabid=454

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Pergunta e leitura

A Dra. Manuela Ferreira Leite não deveria deixar de escrever uma coluna de opinião na primeira página do suplemento de economia do "Expresso"? Se sim, porque é que ainda o faz? Por distracção? Porque ainda ninguém teve a coragem de lho lembrar? Ou será que não é importante?

Brilhante a última crónica de Henrique Raposo no "Expresso". É bom ler coisas de que se gosta, mesmo sem se concordar - é aliás muito melhor do que quando se gosta e se concorda. Uma parábola muito bem apanhada.

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domingo, 27 de julho de 2008

Le Corbusier e as Utopias no CCB


Estiveram em simultâneo no CCB duas exposições que se tangeram. Uma é sobre a obra multifacetada daquele que é considerado o principal arquitecto do século XX, Le Corbusier (1987-1965) e a outra é uma exposição de fotografia intitulada — Utopias — e onde se dá por definido que utopia são blocos de apartamentos todos iguais ou em subúrbios ou em contraste com outros contextos urbanos.

Apesar do abuso evidente de identificar as Utopias com blocos de apartamentos em subúrbios, a ligação entre as duas exposições tem uma intenção polemizante pois há obras de Le Corbusier nesse rol de utopias que aparecem como clamorosos falhanços de uma vontade normalizadora versus uma realidade individual, e a comparação deixa o visitante no mínimo de sobreaviso.
A ligação é por muitas razões curiosa. Por uma lado, a exposição de Le Corbusier é fascinante pelo seu lado de artista plástico formado por mestres artesãos, que teve a sua iniciação nas artes plásticas e no design e que prolongou essa sua liberdade conceptual para os domínios da arquitectura sendo o primeiro arquitecto a, em larga escala, revolucionar os princípios até então consensuais da arquitectura criando novas bases para o seu desenvolvimento — planta livre, os pilotis, fachadas de composição livre, janelas corridas e jardins nas coberturas—, por outro, o seu lado normativo e ideológico que se propunha destruir parcialmente o centro de Paris para erguer gigantescas torres cruciformes implantadas num terreno previamente aplanado e ajardinado que deveria conviver (não fosse a falta de visão dos académicos que disseram não!) com outras permanências da cidade como a torre Eiffel ou a Notre Dame. Desta obra devastadora não há senão maquetas, desenhos e desabafos, mas do Bloco de Marselha há fotografias dois pisos abaixo onde se expunham as fotografias das Utopias. Numa exposição mostra-se Le Corbusier a encaixar, como se uma gaveta se tratasse, um módulo de apartamento em duplex, na outra mostram-se edifícios onde as pessoas estavam engavetadas a serem demolidos.

Le Corbusier e inaugurou e pertenceu a um tempo em que as mudanças ideológicas e a sua esperança, posta no adjectivo moderno ou modernista, alteraram a ordem dos factores das relações sociais. Passou a dizer-se com o modernismo e a sua auto-confiança, o que o homem deve ser, o que o homem deve ter, o que o homem deve fazer, o que deve aceitar, em que é que deve confiar, o que o homem deve, o que o homem deve, o que o homem deve. Passou também a haver especialistas para construir um homem à imagem e semelhança de um novo ismo, o racionalismo materialista. Por isso, os homens deixaram de decidir sobre como queriam as suas casas para passarem a viver nas casas que os arautos do Progresso dissessem que eram as casas para eles viverem.

Também nas artes plásticas as novas tendências eram a procura de uma fundamentação científico-ideológica que tornasse a arte não numa revelação de alguma realidade menos concreta, mas pudesse adquirir a limpidez de um corolário científico. Como a ciência evolui mas nunca é definitiva apesar de assim se considerar e, por isso, estabelecer leis que não são metafísicas mas demonstráveis, mas em que o que hoje é verdade amanhã é mentira (ou uma fase da necessária evolução até ao desencobrimento final das opacidades deste mundo), todo o valor da ciência passou a estar datado. Assim, aconteceu com a arte que lhe seguiu modernamente os passos. Entretanto, isto aplicado à arquitectura, esta inconstância feita de aparentes constantes, foi fomentando algumas atrocidades na paisagem e na vida das subjugadas populações que a exposição Utopias bem demonstram.
O homem individual deixou de se interrogar e procurar a verdade ou o que quer que seja. O homem moderno, desassombrado e confiante, faz de professor e explica que há um tempo novo que todos têm de abraçar e aceitar porque tudo está descoberto ou é como se já estivesse. O caminho torna-se, assim, o caminho único.
As liberdades artísticas de uns resultam na infernização da vida de outros. Mas como o mundo, entretanto, se tornou dependente de especialistas para tudo, já quase ninguém consegue decidir sobre os seus destinos, e segundo os seus gostos, porque alguém encartado pelo Estado, ou reconhecido por alguma inteligência, está aí empregado, fazendo até depender a sobrevivência da sua especialidade, de decidir sobre e pelos outros que não o solicitaram.
Mas o arquitecto ditador, é hoje em dia apreciado e até invejado porque faz o que quer. Outros ditadores são pelos mesmos rejeitados mas aí é porque não são eles que ditam.

Esta sequência de exposições deixa esta nota de contraditório: de um lado a entronização de um génio; do outro, o seu lado sombrio. Haverá quem não o reconheça. Mas espero que ainda me seja permitido ter esta opinião.

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Os Amores de Astrea e Celadon


Há aí, pelas salas de cinema, um Rohmer para ver: “Os Amores de Astrea e Celadon”.

Não pude deixar de lembrar Manuel de Oliveira, o centenário realizador português que, como Alain Resnais, de quem comentei há tempos o último filme “Corações”, emprestam à realização uma simplicidade narrativa e um arrojo temático que libertam o cinema da necessidade da verosimilhança com o real e devolvem o cinema ao seu lado mágico ou alquímico. Há quem não goste. Mas eu prefiro esta penetração no mundo do maravilhoso feita por estes autores do que todas as infindáveis sagas de I a V que não têm qualquer suporte filosófico nem lógica narrativa.
N’”Os Amores de Astrea e Celadon” há uma medievalismo edénico e um código de honra que atravessam as personagens e fazem do real um ideal. De algum modo, lembrei-me de outro velho realizador que, mais novo então, Bergman em 1955, fez esta magia de elevar o real ao ideal no seu “Sorrisos numa Noite de Verão”.
Que prazer viver o tempo como se estivéssemos fora dele!

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sábado, 26 de julho de 2008

Joy Division


Depois de Control, surge agora nas salas de cinema um documentário de Grant Gee sobre a banda de Manchester. O filme sugeriu-me três aproximações.

Joy Division I — Vida resolvida

Como nos contratos, a morte de Ian Curtis resolveu os Joy Division. Não sou dos que pensa que se tivessem continuado teriam (com Ian Curtis) os Joy Division teriam sido isto ou aquilo. Só podemos dizer o que foram. Como um livro que se lê do princípio ao fim e no fim temos uma história, completa sobre a qual podemos pensar o que quisermos mas não podemos pretender que a história seJa outra porque se assim pensássemos o que realmente queríamos era outra história e não aquela.
Ao contrário de outras mortes prematuras (Morrison, Joplin, Buckley, Hendrix, por exemplo) que se deveram sobretudo a excessos de drogas numa época de experimentalismos arriscados, a de Ian Curtis foi uma morte que culminou o progresso de uma aporia: a impossibilidade de resolver humanamente um conflito entre o significado profundo dos actos humanos e o nascimento dos sentimentos contraditórios que nos afastam do caminho que sonhámos, construímos e que vimos, por fim, a destruir.
Depois da sua morte, ou com ela, ficou fiel ao que prometeu. Não facilitou. Não pensou, como as vulgares criaturas, que tinha direito a ser feliz. Não pretendeu criar uma nova realidade à medida dos seus interesses.
Depois dele cada um fará o que quiser e poderá até presumir conciliar o inconciliável. Ele acreditava demais no que escrevia, dizia e sentia. E na solenidade das promessas. Não era deste tempo. Por isso saiu de cena. Os que cá ficam vão tentando ser felizes, porém, sem fidelidade aos sonhos e às promessas que eles guardam não há felicidade possível. Só a miserável sociologia.

Joy Division II — Alquimia


Um dos aspectos mais interessantes do documentário de Grant Gee é revelação do modus operandi da banda. Parece que só IC se preocupava com as letras. O cunho depressivo com que estas têm sido marcadas passavam completamente ao lado do resto dos músicos. Porém, toda a música dos Joy Division tem uma unidade absolutamente incindível das letras. Peter Hook, levanta o véu quando diz que ninguém tinha uma consciência calculada do que estava a fazer, o que havia era uma química entre eles que tornava a criação quase instantânea e dá o exemplo de Love Will Tear Us Apart composta e escrita em poucas horas e à pressa.
Química e genialidade acrescentamos nós. O som da JD foi definido quase por um acaso quando alguém mexeu num botão no estúdio e alguém se apercebeu que o som ganhava uma nova dimensão e não deixou desfazer a brincadeira. Estes acasos deixam no ar aquela dose de involuntarismo que nos faz pensar em que medida controlamos o que queremos fazer e em que medida somos apenas mediadores do que através de nós se exprime. Isso é com certeza uma das marcas de génio na música da JD que foi, depois da sua história acabar, a origem de vários estilos ou tendências musicais que nasceram a partir deles.
Eles que tinham nascido das cinzas do Punk foram, como os Velvet Underground no seu tempo, uma banda seminal para o futuro do Pop Rock.

Joy Division III — Something Must Break

A música e as letras da JD invocam um tempo que se perdeu e que nostalgicamente se sonha restaurar. São a expressão no Pop Rock do chamado pós-modernismo que à época estava em voga na arquitectura, nas artes plásticas, na literatura e na filosofia. O homem moderno falhou cantava IC em Failures do primeiro EP da banda An Ideal for Living gravado em 1977.
Como foi próprio do chamado pós-modernismo, as expressões e correntes que se inauguraram não corresponderam a um corpo doutrinário uno como acabou por ser o modernismo. Em geral, o que se pensou e exprimiu foi o insucesso de um certo ideal que, doutrinado e politizado, conduziu a cultura a uma forma sociológica, uma espécie de racionalismo auto-suficiente que se desenvolveu com a filosofia moderna.
Se do pós-modernismo produziu muito lixo, também, gerou um tempo de reflexão e de expressão de valores que deslocaram o centro de gravidade da dicotomia entre o moderno e o tradicional que liderou o confronto entre visões antagónicas. No pós-modernismo, há uma novidade que é a necessidade de exprimir valores fora das balizas doutrinárias estabelecidas. Num certo sentido, é uma reacção espontânea a um espartilho que já não exprimia a maturidade do pensamento contemporâneo o qual aguardava por novas possibilidades e novos paradoxos para se reconhecer e progredir. Os problemas, os enigmas e os mistérios eram, por isso, outros.
Nos artistas, cuja sensibilidade é seminal, o novo tempo surgiu com a força de uma maré que extravasa um dique e inunda os campos. O super-Homem da idade moderna enfraqueceu os seus poderes, o minimalismo ganhou opulência formal, o romantismo reapareceu, os internacionalismos regionalizaram-se, a Grécia foi revisitada, etc.
Mas tudo isso não dissolveu nem apagou as contradições do homem contemporâneo. E Ian Curtis foi uma expressão dessa contradição. A dificuldade de lutar sózinho por um ideal num mundo esvaziado e descolado desses ideais. E raros são os que resistem a viver contra o tempo. O pós-modernismo teve, como dissemos uma expressão nas artes e na filosofia. Mas na sociedade e na vida o materialismo continuou a promover a derrapagem desamparada do homem para o abismo. Hoje já todos se queixam da força inconsciente que parece liderar os destinos do mundo contra a sua própria consciência e, sobretudo, contra o seu pensamento. O homem só será sempre elo mais fraco. Entre a força da consciência individual e a força do mundo, Something Must Break.


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quinta-feira, 24 de julho de 2008

Obama em Berlim
















É interessante ver como a História afinal pode avançar. Parece que afinal há outras formas de lidar com os problemas. O povo tem sempre razão. Mas o que se aprendeu com erros? Será que se podiam ter evitado mortes e desastres? Fica para se saber mais tarde. Mas a História mais uma vez não vai absolver todos.



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quarta-feira, 23 de julho de 2008

Da Visão: O grande Tabu




O Mundo está perigoso e Portugal não está melhor. A crise energética tem razões estruturais, a crise dos bens alimentares tem consequências dramáticas e o fim da crise financeira parece cada vez menos estar ao virar da esquina. A derrocada das bolsas antecipa aliás o prolongar da tempestade e os incidentes na Quinta da Fonte são também, em certo sentido, o reflexo de um profundo mal-estar social que a crise económica agudiza. Já nem o Engenheiro Sócrates ousa refugiar-se no Mundo Virtual da recuperação iminente da economia portuguesa. A coisa está feia. Todos o sabem e, mais grave, todos o sentem.
Acontece que nos países como nas empresas, as crises económicas podem ser vividas de duas formas diametralmente opostas. Com o fatalismo próprio de quem se resigna a sofrer uma provação dos deuses ou com a determinação de quem vê nelas uma oportunidade e uma obrigação de fazer reformas que os tempos menos tormentosos não justificam ou não aconselham. Portugal, ninguém terá dúvidas disso, está à beira desta encruzilhada. E assim sendo, e porque me recuso a acreditar que o país político se decidiu a entregar o destino da pátria aos caprichos inescrutáveis dos deuses do Olimpo, há tabus que tenho dificuldade em explicar. Um deles é esse interdito sagrado da política portuguesa que dá pelo nome de Bloco Central.
É bem verdade que uma coligação ao centro pode ter, a prazo, custos muito importantes para a democracia portuguesa. Ao inviabilizar uma «normal» alternância de poder, uma solução de tipo Bloco Central pode abrir caminho a um realinhamento das forças políticas portuguesas de consequências imprevisíveis. É portanto igualmente bem verdade que uma solução com estas características só pode justificar-se em situações de excepção e em conjunturas de extraordinária gravidade.
Assumido isto, a violentíssima reacção com que, da esquerda à direita, a ideia continua a ser recebida só pode ter um de dois significados. O mais benigno pressupõe que os principais dirigentes políticos, atacados de um surto de candura panglossiano, fazem uma leitura muito mais cor-de-rosa da situação económica e social do que a que vim fazendo (e, seguramente mais significativo, do que a que vêm fazendo o BP, o FMI, entre muitas outras vozes muito mais habilitadas do que a minha). Mas pode haver uma explicação mais prosaica. A de que o Bloco Central não sirva os objectivos mais imediatos dos actuais protagonistas políticos nem seja do agrado das vorazes máquinas partidárias que têm de alimentar. Ou seja, pode bem ser – imagine-se - que a epidérmica rejeição da ideia tenha pouco a ver com a ponderação das suas vantagens para o país e esteja sobretudo condicionada por cálculos de guerrilha partidária caseira.
O Bloco Central não é seguramente uma solução óptima e pode até muito bem não ser a solução mais adequada para fazer face às dificuldades que o país atravessa. Mas que a violência com que a ideia é rejeitada tem, em si mesma, um profundo significado político, disso não tenho quaisquer dúvidas.

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terça-feira, 22 de julho de 2008

A pena e o gládio

Rubens, Aliança entre Terra e Água
Há quem pense que, num homem, talentos poéticos e dotes de escrita indiciam uma clara e preocupante sublimação da sexualidade. É Verão, e não vejo que venha mal ao mundo em discutir-se já a tese.
Haverá, de facto, alguma relação causal entre o uso da pena e o desempenho do gládio? O arrebatamento com que um homem se entrega às elegantes e cursivas expansões da escrita implicará um murcho e recolhido cativeiro da sua potência sexual?
A pergunta é muito mais embaraçosa do que parece. Qualquer tentativa de argumentação – ainda por cima na forma escrita – arrisca-se a mal entendidos e a destruir a mais férrea e viril das reputações.
Opto por oferecer-vos uma lista concludente e irrebatível de histórias de sucesso. Sim, é possível, como vão ver, passar horas a escrever e outras tantas entregue a inconfessáveis apetites. Espero, assim, dar um contributo cultural indelével para que jovens e promissoras vocações não deixem de cumprir-se por venal temor de uma insidiosa e infundada acusação.
Lembro-vos, para começar, o caso famoso de Giacomo Casanova. Escreveu 28 volumes de memórias. Nelas revela 132 casos de sedução ardente. Pormenor saboroso: era, avant la lettre, um homem de e da globalização, já que essas 132 mulheres que lhe concederam favores eram de 99 nacionalidades diferentes. Chamo a atenção para o facto destas memórias serem só a ponta (em todo o caso firme e meritória) do iceberg. Consta que Casanova terá dormido (e, sem ofensa, presumo que nalguns casos tenha sido apenas isso) com cerca de 10 mil angélicas representantes do sexo oposto.
Outro exemplo. Dois escritores franceses de inabalável estirpe, Guy de Maupassant e Georges Simenon, parecem ter-se fixado num número fetiche: as mil mulheres. Com elas gozaram delícias venusianas. Há diferenças que convirá realçar. Maupassant auto-imputava-se o dom de múltiplos orgasmos e músculo para levantar bem alto a bandeira por toda uma noite. Já Simenon, para perfazer a milenar contabilidade, não se eximiu a arredondar a cifra arregimentando prostitutas.
Mais moderado foi Balzac. É verdade que escrevia cerca de 15 horas por dia e que o tempo, mesmo para o autor dos 100 romances da “Comédia Humana”, não estica. Tudo esticado, na carnal matéria em apreço, a ele deu-lhe para mais de 10 e menos de 20 amantes ao longo da vida.
A outro símbolo da bela França, Victor Hugo, louva-se a alvoroçada diligência com que encarou a noite de núpcias, em que terá levado à glória, por 9 vezes, a sua bem amada Adele Foucher. O autor de “Os Miseráveis” foi também, num precursor referendo feito aos bordéis gauleses, considerado o patrono das prostitutas. Quando morreu, o governo autorizou aquelas horizontais eleitoras a acompanharem o funeral. Vieram, cobrindo com lenços negros as partes anatómicas mais sinceramente enlutadas.
Poderia invocar o maldito nome de Sade, os insaciáveis apetites de Robert Louis Stevenson e de Lord Byron, a infidelidade crónica de Kingley Amis, o sexo sem nexo de Henry Miller. Não interessa. Creio ter já provado o meu ponto. Lá fora, está uma fantástica noite de Verão a pedir mais do que argumentos literários. Ou, nas calorosas palavras do mesmo Miller: “I hear not a word because she is beautiful and I love her and now I am happy & willing to die.

Crónica ortodoxa em férias heterodoxas, publicado no Pnet Homem.

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segunda-feira, 21 de julho de 2008

Na morte de Geremek

Uma vez vi-o a ser entrevistado na televisão. Perguntavam-lhe como polaco sobre as relações internacionais da Polónia, se bem me lembro. Estava convidado como historiador. Teve o cuidado de dizer: a minha especialidade é a da Historia medieval da Polónia. Não lhe posso dar uma opinião como especialista. Mas apenas como mero cidadão. Probidade rara hoje em dia. Um grande europeu e um intelectual probo. Tivéramos menos perfis aduncos e mais rectos como este.


http://www.lefigaro.fr/international/2008/07/13/01003-20080713ARTFIG00092-bronislaw-geremek-est-mort-.php
http://en.wikipedia.org/wiki/Bronis%C5%82aw_Geremek
http://en.wikinews.org/wiki/Bronis%C5%82aw_Geremek,_former_Polish_Foreign_Affairs_Minister,_dies_at_age_76
http://www.taurillon.org/Bronislaw-Geremek-s-death-saddens-European-family
http://news.bbc.co.uk/2/hi/europe/7504255.stm
http://www.relatio-europe.eu/une/117-esprit-deurope/3864--bronislaw-geremek-un-qesprit-deuropeq-est-mort?tmpl=component&print=1&page=

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domingo, 20 de julho de 2008

Clay Felker e a sua New York


Vale a pena comprar a revista New York do passado dia 14 (até sexta-feira ainda estava à venda nos Restauradores – na melhor loja de revistas de Lisboa?) dedicada ao seu criador Clay Felker que morreu recentemente. O artigo principal é escrito pelo Tom Wolfe que colaborou nos primeiros números da publicação, tendo ainda comentários interessantes, sobre esta figura lendário do jornalismo americano, por parte de personalidades tais como Gore Vidal ou Gloria Steinem. Inclui ainda um artigo narrado pela sua mulher Gail Sheehy intitulado My New York. Como tantas vezes acontece Clay Felker tinha o perfil larger than life que permite lançar com sucesso um projecto deste tipo. Conta várias histórias, entre elas, as das guerras com a (de há muito estabelecida) New Yorker e uma outra a propósito de um artigo considerado chocante com fotografias de Diane Arbus. Recomendo vivamente. Para um primeiro approach digital é só clicar em http://nymag.com/


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O concerto onde nunca estivemos

Regresso ao concerto do século XX a que não assisti (sou de 1968, dois anos depois desta preciosidade) e a que mais gostaria de ter assistido: "Sinatra at the Sands", com a orquestra de Count Basie e a direcção musical de Quincy Jones, no centro de um ovni colorido que aterrou no deserto do Nevada chamado Las Vegas. Sinatra já não está na melhor voz da sua carreira (os "Capitol years"), mas triunfa ainda a maturidade do seu "swing", a beleza casual do enamoramento com as palavras, o bailado dos agudos a culminar num "staccato" que faz a canção deixar de ser de Porter, Mercer ou Hartman para passar a ser de Francis Albert Sinatra, o príncipe reguila de Yonkers, "the Man".
Também gostava de ter visto Billie Holiday em 1935 no "Pod's and Jerry's". Já agora, como posso pedir o que quiser, não me importava de ter estado na primeira fila quando um Mozart de 6 anos se apresentou em público pela primeira vez à nobreza bávara em Munique, 1762.
Fico curioso: qual é o concerto a que nunca poderiam ter assistido mas que dariam - quase - tudo para ter lá estado?



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sábado, 19 de julho de 2008

Ergo sum


É muito curioso que o último artigo de Rui Ramos – dedicado ao eterno confronto entre pessimistas e optimistas. (vd. Público, 16 de Julho de 2008) – tenha soado a toque de trombeta... Mas o certo é que calou fundo na nossa inteligentsia.

Para só citar dois exemplos, Vasco Pulido Valente, sem surpreender na opção, fixa-se no pessimismo (vd. Público, 19 de Julho de 2008). José Miguel Júdice prefere análise mais ampla, em registo psico-cultural, com um pé em Cunha Leão, embora a pretexto confesso de referências de mais estrangeirada iconografia (vd. Público, 18 de Julho de 2008).

No fundo, um e outro sentiram que Rui Ramos falava deles. Ou também deles. Como, aliás, terão sentido os demais leitores.

Com a lucidez habitual, Rui Ramos revela-nos 'tipos' em que nos reconhecemos e reconhecemos os nossos próximos. Mais do que isso, 'tipos' em que reconhecemos o nosso caminho colectivo. Da descrença arreigada à desconfiança metódica, do entusiasmo emotivo à esperança ingénua, ali estamos nós. Na nossa histórica ciclotimia. Na nossa atávica construção de uma meta-realidade. Na nossa ancestral recusa de desafios concretos.

Seja como for, tal como no fundo da caixa de Pandora, et pour cause, há razões para alento. Ver a nossa inteligentsia tão atenta ao que Rui Ramos vai escrevendo é muito bom augúrio. Mesmo para pessimistas!

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CUT BACK !

Are you trying to cut back on your expenses using a dull knife?

North, south, east or west it’s almost impossible not to have a friend who is finding it difficult to deal with today’s economy-and yes that does mean people from “all works”.



If a person has one car, one house and one job his expenses need to be properly managed, correct? Works the same way for a person who has 2 houses, 2 cars, and 2 jobs-both parties need to have the funds at the end of the week to cover all of the costs. As difficult as it may be for some one to come up with 100€’s, the same virus effects the person who needs to come up with 1000€’s.

The best vaccine-“the cut back on expenses injection”. Has immediate effects and you will be feeling like a bowl of cherries the next day…did I mention no Doc’s prescription needed and that it has zero costs?

How do we begin the medication?

We concentrate on a few small things and train our minds to “budget think before we act”! Spending, consuming energy, cosmetics, pleasures –they work like little blisters- we only feel them after the damage is done !

Don’t make the big things priority when we think of our expenses (car payments, the mortgage due on the house or the huge credit card payments we somehow accumulated over the months).

Concentrate on the small things! Think of David and Goliath-“the small helps to take down the big ”.

Take a cup of espresso for example. If we calculate 4 cups a day-we are spending over 50 euros a month on coffee. If we make 5 “useless phone calls” per day on the cell phone-even considering a low ball expense of 40cents per call, you are spending over 50€ a month-if you’re a smoker, and smoke a pack a day, you are spending over 80€ a month-if you are drinking 2 coca colas/or other “deadly over marketed items” you are spending over 50€ a month.

For all of you “spendaholic’s” here is the perfect spending list-it could save you anywhere from 50€-200€ per month; abuse it all you like !

*Spend less time drying your hair

*Spend less time under the shower-a simple cut back of 5 minutes per day

*Spend less time driving and more time walking

*Spend less time in commercial centers

*Spend less time with the washer/dryer/dishwasher

Lets really see what “David” is worth after 30days. 

Coffee/50€…Cell Phone/50€…Cigs/80€…Soft Drinks/50€…“Spending List”/50€

Grand Total: 280€ per month-and that’s not even including the occasional “it’s on me” when in company.

280€ can really come in handy when paying off one of the “Goliath’s” at the end of the month. Even if you cut back 50% -you will still be ahead 140€ a month-so we don’t have to sacrifice our life’s pleasures completely! Keep in mind the more we add to our “Spending List” the bigger the savings. This helps the bad times go by easier while we await the “balance of economy” to bounce back to normal.

 

Chef Guerrieri

 

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quinta-feira, 17 de julho de 2008

O país do "encosta"

Não há nada mais perigoso nos portugueses, e mais profundamente português, do que o "encosta".
O "encosta" são aqueles tipos (93% da população activa, reformados sem licença de renovação da carta, adolescentes que roubam o o chasso do pai, velhinhas hiper-activas e todos os alcoólicos não-anónimos) que encostam o seu carro a dois nanometros do carro da frente a 140 km/h nas auto-estradas e vias rápidas desta grande nação. Já perguntei a várias pessoas de inteligência consensual sobre o tema, e as que reconheceram fazer o "encosta" - uma apaixonada maioria - deram a mesma extraordinária justificação: "é para pressionar o gajo da frente a deixar-nos passar".
Poupando nos insultos (que me fizeram perder algumas amizades no momento da pouco inocente inquirição), parece-me que o "encosta" é o retrato exacto da desgovernada insubmissão aos romanos, da ruinosa gestão financeira das riquezas do Oriente e das Índias Ocidentais, da expulsão dos judeus, da atrasadíssima - e incipiente - revolução industrial, da insularidade envergonhada do século XX e do desbarato do maná europeu dos últimos 20 e poucos anos, entre outros requintes de visão estratégica e sentido comunitário.
Enquanto os portugueses não souberem governar o seu carro, não conseguirão perceber como devem ser governados. Enquanto não pressentirmos a humanidade dos que vão no carro à nossa frente, e a fragilidade de todos os que circulam no mesmo espaço, não perceberemos o que é essencial para nós próprios.
O condutor "encosta", e o seu peso percentual, são o retrato exacto da nossa arrogância, da nossa incapacidade de entreajuda, do vácuo da nossa natureza individualista. Se não há um rudimentar sentido cívico de Portugal, não há portugueses.
O "encosta", meus senhores, é o princípio do fim.

PS: Qualquer semelhança entre este texto e um desabafo catastrofista é mera coincidência


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Feliz em Cascais

No Paredão que liga Cascais a S. João do Estoril o dia começa cedo. A andar ou a correr inalo – cheiro! – o ar do mar. Ao longe, perto da Baía, vejo um mar caído e descansado apenas ligeiramente ondulado quando o vento sopra mais forte, criando pequenas cristas de espuma: os “carneirinhos”. O vento – esse mesmo vento que se diz dar aos habitantes da zona mais anos de vida do que aqueles a que teriam naturalmente direito – sopra-me na cara. Fresco e limpo traz consigo a sensação de que a vida pode ser boa, melhor, a garantia de que, aqui, a vida é boa.
Nascer nesta terra é nascer ao sol e com os pés dentro de água. Com frio ou com calor não se perde o pequeno grande prazer de sentir a areia húmida nos pés descalços. Qualquer que seja a estação do ano, nunca está frio demais para um mergulho. Na Praia da Conceição, vazia às primeiras horas, qualquer um pode ganhar uma vida nova e senti-la na pele fria de um corpo revitalizado. É o meu caso esta manhã.
De saída da praia subo até à Rua Direita, com a firme intenção de a descer, sentindo no corpo a roupa molhada e nos sapatos a areia que não limpei. Sem stress. Distraído, olho para as montras e vejo passar os outros. Uns outros que, tal como eu, não passam sem estas manhãs. Manhãs de fim-de-semana em que o mundo nos chama para fora e em que ficar em casa é apenas mais uma forma de dormir até tarde.
Depois de almoço, na praia do Guincho, olho para a serra de Sintra à minha direita. Por vezes envolta num capacete de nuvens mas sempre extraordinária. Um lugar sagrado entre lugares sagrados. No mar, surfistas “fazem” ondas, as mesmas ondas que eu, sem prancha, desço em “carreirinha”. Corpo hirto e braços estendidos por cima da cabeça, deslizando, de preferência, até à beira mar. Não estou sozinho. No Guincho as “carreirinhas” assumem-se como desporto (quase) Olímpico. Quando o vento cresce, saímos da água. Aparecem então outros surfistas, wind-surfistas, que aparelham as pranchas e proporcionam um espectáculo como não há outro. Centenas de velas coloridas rasgam o horizonte à medida que o sol se põe. Não quero ir embora, mas vou. Tem que ser. No entanto, levo comigo a certeza de que amanhã é outro dia e a esperança de que seja (mais um…) dia de Guincho.
Viver em Cascais faz-me sentir em férias. È, verdadeiramente, a melhor forma de ir para fora cá dentro. É viver num mundo próprio com sol todo o ano e um sorriso sempre na cara. Apenas a 30 kilómetros de Lisboa e, no entanto, um mundo à parte.
No Monte Estoril, alemães e suecos bebem à saúde de quem um dia lhes apresentou Portugal. Acreditam que aqui a vida anda mais devagar e que os dias são para ser vividos entre amigos. Na Frederico Arouca italianos comem gelados do Santini e confirmam, simplesmente, aquilo que já sabemos há gerações: são os melhores do mundo. Três portas abaixo, um outro italiano, escritor, António Tabuchi de seu nome, entra na sua livraria preferida, a Galileu. No epicentro de Cascais, o Largo Camões, espanhóis que vieram ver as motos ao autódromo sentam-se ao lado de irlandeses, queimados pelo sol, que não perdem todos os anos duas semanas de golfe nestas paragens. Nas mesmas esplanadas, sentam-se ingleses a beber cerveja, a comer marisco e hoje, fruto da modernidade digital, a ver jogos de futebol em ecrãs gigantes. Estão abrigados debaixo de guarda sóis e assistem a jogos que decorrem, exactamente naquele momento, em países onde a chuva nunca pára de cair. Maravilhas do mundo em que vivemos.
Quando o dia começa a chegar ao fim sento-me a jantar ao ar livre, no Lucullus, sentindo ainda na pele o calor de mais um dia de Sol. Não há melhor do que restaurantes onde nos conhecem e nos dão o que gostamos sem ter de pedir nada. Com as pernas estendidas e um copo, na mão deixo a noite correr. Como o vinho.
Mais tarde, um passeio pela Baía; uma espreitadela à Marina. Falo devagar com quem me faz companhia dando tempo ao tempo que demora pensar. Não há pressas e os passos são lentos e ritmados. Como as palavras. Sentamo-nos a olhar para o mar. A lua reflecte-se na água e ilumina os barcos. Ouve-se o som das ondas a morrer, devagarinho, na praia. O ar quente que sopra faz-me querer que o tempo pare. E, aqui, pára mesmo.
É por isso que todos os que por aqui passam cá querem ficar. Mas nem todos ficam. Ficam uns, sortudos como eu, felizes em Cascais.

(Este texto foi publicado no Guia ConVida sobre Cascais e Estoril. Agradeço à Sofia Paiva Raposo, quer o convite para o escrever, quer a autorização para aqui o colocar)

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quarta-feira, 16 de julho de 2008

Autópsia


Existem duas formas de presenciar uma autópsia.


Uma, visceral, com som e cheiro. Vê-se o cadaver. Morto, inchado, nú, amarelo, deitado em cima da mesa onde vai ser esquartejado. A balança para o peso dos orgãos ao fundo.

O primeiro som que se ouve é o do corte frontal, para retirar o escalpe. Ouve-se o esticão, que deixa o crânio à mostra, amarelo, sem pele, como os ovos na canja.

Serra-se, corta-se, abre-se a barriga, o cheiro de podridão solta-se por golfadas. Os orgãos são retirados, pesados, com direito a risota:"- Olha o fígado tem 1 kg, rico menino, não gostava da pinga, não senhor!".

O estômago em convulsão e a jura eterna de não mais comer costoletas, cabidela e iscas.


Há, no entanto, outra forma, muito mais civilizada. Os alunos sentados, compenetrados, enquanto lhe trazem em tabuleiros, o fígado devidamente arranjado, limpo e fatiado para cuidadosa análise: " - O que é que lhe parece?" , " - Que há indícios de que talvez houvesse algum abuso de bebidas alcoólicas, Senhor Professor."


A morte é a mesma, mas os olhos não a vêm. Não vêm o corpo, e por isso abstraiem-se dele. Não lhes é dado ver o corpo, é-lhe apenas servido o orgão, impecavelmente limpo e fatiado. Rigorosamente asséptico.


Que prefiro eu? Ver o corpo esventrado. Primeiro, porque a vontade de comer volta em 15 dias. Depois, porque é coisa que nunca se esquece, sendo que a memória é um bom bordão para avançarmos vida fora.

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PAR

O P-A-R é uma proposta de uma consultora americana de recursos humanos. A consultora propõe para os trabalhadores em geral a seguinte metodologia. Face a um problema (P), devemos encetar uma acção (A), com vista à resolução (R) desse problema:PAR .
O nome é "catchy", e descontado o evidente simplismo da formulação, até pode ser um bom princípio para atacar o problema de frente.
Todos vocês se lembram do jogador do Sporting, o possante Rochemback, que só obteve um corpo de atleta quando se meteu num avião com destino a Inglaterra.
De modo que eu temi o pior quando vi as notícias do seu regresso a Portugal. Sosseguei no entanto, quando vi no jornal que ele regressava, sim senhor, mas tinha casado, e com uma nutricionista!
Fiquei tão feliz, porque finalmente Rochemback, encontrou o seu PAR!

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terça-feira, 15 de julho de 2008

Assimetria de pensamento

Gosto de coisas pirosas. Gosto deste blogue, porque está piroso na medida certa: e a medida do piroso é como tudo na vida – depende. O que dá que pensar: quando o piroso chegou, não era piroso. Era o que era. Cantava-se o We Are The World com a mesma convicção com que hoje se defendem cidades verdes ou se assistem a concertos como o bem português Boom festival, onde a água nacional será reciclada e o lixo português por lá feito decomposto todos os dias. Ou seja, a capacidade humana de se envolver em temas nobres (como era o de Wonder) não termina nunca: ela vai é ajustando a sua medida e o seu entusiasmo a novas circunstâncias. Será piroso daqui a uns anos não fumar nos restaurantes? Estas perguntas singelas empurram o raciocínio para a regulação – que não é pirosa, mas é assunto difícil em Portugal. E pode falar-se da Optimus como da concorrência entre pensamentos – vale tudo. Senão veja-se.

Na semana passada o regulador das telecomunicações – o ponderado Amado da Silva – tornou oficial uma decisão que já tinha anunciado meses antes: baixar as tarifas dos telemóveis entre as redes diferentes. O assunto parece complexo, mas é bem simples: quando um TMN liga para um Vodafone, é mais caro do que quando se liga entre TMN’s. Fácil, claro. Mas menos fácil é perceber que as tarifas cobradas por todos os operadores para essas chamadas entre si fossem em Portugal das mais caras da Europa. São. O regulador quer baixar esses preços. Quer, explicou ele, proteger o consumidor português – que pagará menos quando ligar para outras redes que não a do seu telemóvel. Este é o assunto. Sucede que, nessa decisão, o regulador decidiu proteger a existência de um terceiro operador. Entra a Optimus de que falava o anónimo no seu comentário. E é fácil de novo explicar a virtude do raciocínio do regulador – já lá vamos depois às opiniões pessoas. Quer ele ? coisas: (1) que os consumidores portugueses possam escolher entre três operadoras, e não apenas duas; (2) que se diminua o poder do efeito de rede dos dois grandes operadores (o palavrão efeito de rede significa, em português simples, a pulsão natural de um consumidor para escolher a rede onde, por exemplo, sabe que tem mais amigos) – e assim se assegure o desbalanceamento de tráfego – outro palavrão que mais não significa do que assegurar que a balança se equilibra entre todos os que vendem comunicações móveis. Ou seja, o regulador quis corrigir problemas de mercado nos preços exorbitantes que os três operadores (todos) cobravam pelas tarifas das chamadas entre eles. Depois disso, entendeu que como o efeito de rede era muito grande – e o mais pequeno (a Optimus) estava a perder quota de mercado – fazia sentido corrigir também esse desvio do mercado (uma vez que ele tinha sido provocado por essas tarifas altas demais que geraram uma balança de clientes desiquilibrada). O regulador, portanto, não foi piroso – ele ajustou-se às circunstâncias que tinha.

Agora pode discutir-se se é justo, equitativo e aplicar aqui muitos dos critérios da escolha pública. Eu avanço uma tentativa: quando um regulador intervém no mercado livre é bom que o faça pelas razões certas – isto é, para corrigir desvios a essa liberdade de actuação. Neste caso dos telemóveis, existia um desvio: os consumidores eram arrastados naturalmente para os grandes operadores. Pode dizer-se: mas isso é a lei do mercado – morrem os mais fracos, sobrevivem os mais fortes. É verdade. Sucede que este mercado dos telemóveis se tornou numa verdadeira commodity: as pessoas querem comunicar, precisam de fazê-lo e exigem preços baixos. Mas pode dizer-se também: as pessoas também precisam de comer, e isso não leva o regulador a subsidiar a abertura de novos supermercados ao lado do que já existem para com isso baixar os preços. Não leva? Claro que leva: não só através de incentivos ao investimento estrangeiro, como através da fiscalização da cartelização de preços junto dos produtores e, talvez tão ou mais importante, impedindo que um dos operadores se torne demasiado dominante. Nos telemóveis é igual: o regulador não quer aceitar que o mercado deixe de ter oferta de três redes de telemóvel apenas porque duas delas conseguiram gerar um volume de tráfego tão alto (ainda que baseado em bom serviço e equipamento) que isso impeça a sobrevivência de outros. Um supermercado, por melhor e mais eficaz que seja, não deve estar sozinho no mercado nem ser autorizado a ‘limpar’ os outros do mapa.

O assunto não é simples, e justifica muitas diferenças de opinião. Esse é o universo fascinante da regulação. Tal como ainda há hoje gente que vibra com o Stevie Wonder (e não o acha piroso), também muitos discordam da regulação quando ela é contrária ao que nos interessa ou mesmo aquilo em que acreditamos. Mas essa é a maravilha do mundo: o que uns acham piroso, outros consideram magnífico.

 

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Contra os canhões, procriar, procriar...

O nosso primeiro-ministro disse, há poucos dias, com o à-vontade que apenas se permite à esquerda, que é «de um partido onde era impossível um líder dizer que o principal objectivo da família é a procriação». As pessoas riram-se e a coisa passou. Mas é grave. Porque o senhor primeiro-ministro, que na prática detém os poderes legislativo e executivo no nosso país, confunde casamento e família.
Com efeito, se o senhor primeiro-ministro disser que pode haver família sem casamento e casamento sem família, eu estarei totalmente de acordo. Se disser que o casamento se pode livremente contrair e dissolver, eu estarei completamente de acordo. E se disser que o casamento não deve ter por único nem por principal fim a procriação, eu estarei inteiramente de acordo.
Agora, se o senhor primeiro-ministro confundir casamento e família, afirmando que qualquer tipo de união sexual entre duas pessoas constitui imediatamente uma família, eu discordarei. Se sustentar que a família é algo que se pode construir e destruir, também discordarei. E se pretender que o fim da família se confunde com os do casamento, mais uma vez discordarei.
Porque o fim da família é, de facto, a procriação (do latim procreare, que quer dizer produzir, trazer à existência), isto é, o trazer um novo ser à existência física e social, que justamente começa numa família. Só a partir da existência desse novo ser é que uma família se constitui enquanto tal, devendo essa sociedade familiar cumprir então alguns outros fins, nomeadamente a protecção, a educação e a integração económica e social dessa criança... Nenhum desses fins, porém, se dá antes da existência concreta desse filho.
Devo dizer, por último, que estarei ainda de acordo com o senhor primeiro-ministro se ele disser que na sociedade actual podem e devem considerar-se, avaliar-se e, em muitos casos, permitir-se e promover-se um conjunto de meios artificiais – médicos e legais – que complementem a procriação natural e, nesse sentido, a constituição das famílias. Agora, seja ela natural ou artificial, a procriação é, de facto, o principal fim de qualquer família - e não vejo em que é que a pertença a um partido politico possa mudar isto, pois que, seja qual for a ideologia que abracemos, antes de pertencermos a um partido já fazemos parte de uma família!

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E a nossa música Pimba de qualidade?

Não é preciso ir tão longe, por amor de Deus. Temos aqui tão perto coisas de tanta qualidade. É verdade, é Pimba e é de qualidade. Só não consegui encontrar um vídeo do concerto no Pavilhão Atlântico, que foi uma maravilha (não, não estive lá, mas vi na têvê!).

Abra a página e 1) escolha uma das línguas, pois o gabarito é internacional; 2) clique em "vídeos"; 3) escolha o do canto superior esquerdo que é a música "Mesmo que seja mentira". Se isto não é qualidade musical nacional, então não sei o que é qualidade, nem o que é musical, nem o que é nacional.

"Diz-me que não sais da minha da vida, mesmo que seja mentira, mesmo que seja por dó de mim. Diz-me tudo menos a verdade, talvez um dia mais tarde, mas por enquanto é melhor assim. Por isso mente-me até ao fim." Brilhante!

E, claro, repare ainda na sinceridade dos olhos, nos efeitos especiais e na bailarina (sobretudo quando ela empurra os cabelos para cima).

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segunda-feira, 14 de julho de 2008

Pentimento: "No Country for Old Men"

Só agora, na volta do correio e com meio ano de atraso (tenho um problemazinho com a pontualidade) é que vi o vencedor dos Óscares deste ano, "No Country for Old Men", dos senhores irmãos Coen. Um par de comentários:

- "No Country For Old Men" não é um filme, são três. O problema é que apenas um deles funciona.

a) o filme no osso, de repelões calculados ao milímetro, tenso como uma corda de cowboy, da fuga para a frente de um esperto desgraçado (Josh Brolin, a melhor interpretação do ano a oeste de Pecos) que encontra a oportunidade de uma vida na mala agarrada à mão morta de um mexicano 50 graus à sombra de um Texas sem poços de petróleo, cheerleaders e a ilusão do conforto. Esse filme é quase tão bom como o extraordinário "Charley Varrick" de Don Siegel (nem toda a gente pode ser Siegel, ou Walter Matthau), e é seguramente tão bom como "Bring Me the Head of Alfredo Garcia", de Sam Peckinpah. No luar venenoso, nos rios que aparecem do fundo da terra para nos salvar de um cão de morte, dos motéis insidiosos que abandonam um tipo à sua má sorte, do candeeiro que separa a fuga (e o México, e os sorrisos de uma mulher) dum tiro na cabeça, é do cinema mais excitante e digno das últimas - longas - temporadas.

b) O filme artificioso, demasiado brilhante para não ser tratado com uma minúcia febril às teclas do computador, de objectivos muito precisos (e tão indelevelmente conseguidos que se nota a perfeição da pintura, esquecendo-se a mensagem de Hawks, em que o mais simples é sempre o mais eficaz), a saber: vamos dar a estes gajos o melhor assassino que eles já viram. Quando a fita acabar, o Monsieur Verdoux é uma múmia, o Max von Sydow de "Os Três Dias do Condor" ajuda velhinhas a atravessar a rua e o Hannibal Lecter tirou um curso avançado de nutricionismo.
Javier Bardem, a pior interpretação do filme (porque a mais fácil), é demasiado perfeito nas suas imperfeições, os seus planos são demasiado antecipados, o seu diálogo é "demasiado escrito" para soar verdade (o facto de o filme seguir o essencial da estrutura, e muitas das réplicas, do livro de Cormac McCarthy não iliba o filme destes pecados).

c) o que nos leva ao terceiro filme: o requiem exausto de um xerife (Tommy Lee Jones, que, e concordando com David Thomson, andou uma dúzia de anos a meter dinheiro no banco mas acordou aos 60 para se tornar um dos grandes da sua geração), personagem de desvios infelizes e opções dúbias marcadas no rosto, um xerife que assiste, impotente, ao fim de uma época, a da cortesia, da argamassa familiar, da separação, mesmo que ténue, entre Bem e Mal e de uma compreensão ontológica do mundo. O problema é que a ontologia não é o forte dos Coen.
Quando chegam aos "big issues" (o sentido da vida, a inevitabilidade da morte, o casamento àspero entre acaso e Destino, minudências assim), os Coen fazem-no sempre através das pequenas coisas: o chapéu recorrente na floresta desencantada de "Miller's Crossing", os cigarros - e o belo fumo dos cigarros - em "The Man Who Wasn't There", os insectos na parede do mais obsessivo dos filmes obsessivos, "Barton Fink". Em "No Country for Old Men", entusiasmados pela caução infalível de McCarthy, os Coen seguem o percurso contrário, das grandes coisas (grandes temas, grande mensagem) para os pormenores, invertendo um "modus operandi" que lhes é infinatamente mais familiar, lançando-se pela primeira vez na prosa filosófica - enxuta, breve, muito texana, mas ainda assim prosa filosófica - sobre a América que se afunda, a herança macabra de um país construído - como lembrava Norman Mailer - pelo sangue e pela força das armas, a presumível vanguarda de uma civilização que chega a um beco sem saída (tanto quanto é possível encontrar, plagiando Margarida Rebelo Pinto, um beco sem saída no meio do deserto).

É essa deliberada gravidade ontológica e filosófica que trai o filme, como se as conclusões que as imagens, e as acções desesperadas (no caso de Josh Brolin), desencantadas (no caso de TommyLee Jones) ou terrivelmente niilistas (no caso de Bardem) que as personagens levam a cabo não fossem suficientes, por si, para fazer passar a mensagem: este país - e este mundo - não é para velhos.

A maioria dos críticos norte-americanos, sedenta de auto-estima artística, considerou "No Country for Old Men" um regresso ao grande cinema dos EUA dos anos 70. É um exemplo típico de "wishful thinking". Aconselha-se o visionamento urgente de "The Gambler", de Karel Reisz - Reisz era um estrangeiro que captou a "gravitas" yankee como ninguém.
Pois é: o primeiro filme dentro de "No Country for Old Men" é uma obra-prima. Os outros dois não.

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Somos todos muita pirosos...

Somos todos muita pirosos. Na verdade, qual de nós não ouviu e decorou e acompanhou e cantou e trauteou esta música, que agora nos faz corar?



Proponho, portanto, que, a não ser que o Pedro Norton se declare amante incondicional da Tonicha, o Manuel Fonseca do Duo Ouro Negro, a Sofia Rocha da Cândida Branca Flor e a Sofia Galvão do Trio Odemira, partilhemos este prémio entre nós todos e acabemos rapidamente com isto. Quem sabe onde nos poderá levar?

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domingo, 13 de julho de 2008

Quem pede meças a quem???

Não quero esmagar-vos...




mas, depois disto, reconheçam que a parada subiu muito!



Post Scriptum (1) - Ao tempo, o meu sonho era ter um 'poster' do David Cassidy, igualzinho ao que havia no quarto das minhas primas... Nunca tive.

Post Scriptum (2) - À conta disso, ainda hoje não resisto às 'reprises' da RTP Memória.

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O Rei da Piroseira: Preciosidades

Reajo ao desafio do Pedro e cheira-me que ele vai ter de lutar um bocadinho para conquistar o título (ainda que o “L’oiseau et l’ enfant” dele me tenha rasado os olhos de lágrimas).
Eu alinho. Espero que os outros bloggers não nos deixem ficar mal. Regras: vale tudo desde que se apresente um post (comentários não chegam, ok Sofia?) incluindo pelo menos um vídeo. Júri: será que o Gonçalo, que desistiu à primeira, aceita? Para já, e no “diferendo Pedro / Sofia”, mostrou irrepreensível bom gosto.
Eu, piroso, passo a confessar-me. Escolhi 4 canções.

Esta foi a minha primeira españolita, rubia por supuesto:


Marisol, corre, corre, caballito

Reparem agora no prodigioso vento que levanta as saias das meninas do coro


Françoise Hardy, Tous les garçons et les filles

Acreditem ou não, havia uma Aline, de olhos cinzentos azulados. Linda e ligeiramente míope, em Luanda.

Christophe, Aline

A minha aprendizagem yé-yé do sim e do não...

Michel Polnareff, La Poupée

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O Rei da Piroseira

A Sofia Rocha achou que podia pedir-me meças em piroseira. Está a brincar com o fogo. Fui ao baú das minhas recordações da TV e tirei de lá estas pérolas que são bem a prova viva que a minha adolescência foi um monumento à piroseira:


Gente do Amanhã...


Pequenos Vagabundos...



Espaço 1999 (os pijamas, senhores, reparem naqueles pijamas!)...



E se ainda não se sentir absolutamente derrotada, digo-lhe ainda que em 1977 no Liceu Francês aprendi de cor a letra deste magnífico «L'oiseau et l'enfant» com que, nesse ano, Marie Myriam ganhou o festival Eurovisão da Canção.


Fica aqui um desafio aos restantes bloggers: quem ousa desafiar-me em piroseira? O título está a concurso.

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sábado, 12 de julho de 2008

Blood, Sweat and Tears

Ouçam a música e não vejam, mas não vejam mesmo, o vídeo. A canção é so, so very happy. Do melhor que o chamado jazz-rock deu. Se houve, na pop, uma variante jazz-rock, os Blood Sweat and Tears foram o epítome do género. Dão 5 a 0 aos Chicago.
Era o que eu pensava quando era um miúdo no Liceu Nacional Salvador Corrêa de Sá e Benevides. Tal como era um fã obsessivo e intratável dos Alfa-Romeo contra os BMW.

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Piroso eu?



Piroso o Otis? Pirosos, verdadeira e deliciosamente pirosos eram os Chicago. Uma «festa de dança», uma pequena engraçada (aí 14 ou 15 anitos) e um «slow» (por oposição a um «shake») dos Chicago eram ingredientes suficientes para me deixar apaixonado durante um verão inteiro. Piroso eu?

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Se te apetecer dançar

Dançava-se assim, com Otis Redding, quando eu tinha 15 anos. Primeiro, só nos sábados à noite. As sextas foram uma imensa conquista. Dançávamos muito mais lentamente do que a virtude autorizava. Se ainda te apetecer dançar:





ps - Pode ser que, aos mais críticos, Mr. Otis pareça liricamente decadente e piroso. Mas é deliciosa e civilizadamente piroso. Aos que hoje fazem fine bouche, prometo, amanhã, compensá-los com Franka Zappa.

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sexta-feira, 11 de julho de 2008

Do outro lado do espelho


Há alguns dias, ao lembrar a sua passagem pelo governo e a experiência aí vivida, Luís Campos e Cunha resumia: é como a Alice no País das Maravilhas - quando passa o espelho, a realidade altera-se! (vd. Jornal de Negócios, 4 de Julho de 2008, Weekend, pág. X).
Nem de propósito, o debate do Estado da Nação veio a ocorrer no dia seguinte à divulgação dos novos dados do Eurostat (ver aqui).
E o Primeiro-Ministro lá esteve, igual a ele próprio, do outro lado do espelho. Visivelmente contente consigo e com a obra, fez uns truques.

No fundo, Sócrates transformou a desgraça em trunfo e, sem muito mais elaboração, viu na alta dos preços do petróleo uma oportunidade imperdível para um inesperado aumento de receitas. Depois, distribuiu ‘benesses’ e ainda anunciou um saldo positivo. Simples, quase mágico e de efeito garantido.
É claro que, com este tipo de iniciativas, Sócrates revela bem o que pensa da política, do exercício do poder e, acima de tudo, a conta em que tem os Portugueses. Mas, em abono da verdade, diga-se que sempre terá a seu favor o ar do tempo. Temos andado assim, sem mais exigência, sem mais ambição.

Sucede que, do alto do seu (apesar de tudo) indisfarçável nervosismo, Sócrates ignorou o lado de cá do espelho. O lado da vida real, do dia-a-dia das pessoas concretas, das suas dificuldades e das suas inquietações.
Ora, nesse plano mais prosaico e baço, bem longe da mitomania do Primeiro-Ministro, os Portugueses viram-se confrontados com a dureza dos números. Perceberam que, numa Europa que resiste e cresce, Portugal perde mais e mais terreno. Quer se considere a zona Euro, quer a Europa dos 27, Portugal mostra-se incapaz de acompanhar o desempenho das economias da generalidade dos Estados-membros e, sobretudo, incapaz de qualquer emulação com países como a Eslovénia, a Eslováquia, a Polónia ou a República Checa, para só referir os mais óbvios.

Num contexto de crise global, e sem encontrar aí as desculpas de Sócrates, a UE aguentou e o seu PIB cresceu 0,7% no primeiro trimestre de 2008. Por comparação com o primeiro trimestre de 2007, tal significa um aumento de 2,1% na zona Euro e de 2,3% na Europa a 27.
Apesar da retracção dos mercados financeiros, da subida dos preços do petróleo e dos produtos alimentares, a Eslovénia cresceu 2,2%, a Eslováquia 2,1% e Malta 1,7%. Face à adversidade, o PIB alemão – note-se bem – cresceu 1,5%. Enquanto isso, só quatro Estados-membros revelaram um crescimento negativo: Estónia, Dinamarca, Irlanda e Portugal.
A imprensa internacional deu nota do facto. Os jornais europeus divulgaram os números e identificaram ganhadores e perdedores. Portugal à beira da recessão titularam… Mas, por cá, o Primeiro-Ministro, alheio a tudo, preferiu discorrer sobre as maravilhas do seu país virtual.

O mesmo Primeiro-Ministro que ganhou eleições prometendo atingir um nível de crescimento do PIB susceptível de assegurar a convergência… O mesmo Primeiro-Ministro que ganhou eleições prometendo desenvolver um plano plurianual de redução da despesa corrente em percentagem do PIB capaz de constituir a base de um contrato a celebrar com os diversos serviços da Administração Pública...
Três anos depois, não convergiu e não fez (nem, evidentemente, contratualizou) qualquer plano plurianual de redução de despesa. Antes foi para o Parlamento, anunciar o bodo permitido pelo encaixe das receitas adicionais geradas pela escalada do preço do petróleo.
Na verdade, tudo é diferente do outro lado do espelho.

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quinta-feira, 10 de julho de 2008

E o título, Martim?

A pergunta parece de brincadeira, mas é séria: se uma ideia derrapa, se uma política falha, se um Governo se angana e, por tudo isso, o país não avança, quantas novas oportunidades devem ser ainda dadas antes de se declarar a falência - ou, no mínimo, antes de se desistir de tentar e procurar novos sistemas? A resposta simples parece ser: existem as oportunidades que forem necessárias. Nunca se desiste de tentar. Muito bem: imagine-se agora esta pergunta aplicada às pessoas, uma a uma. Quantas oportunidades se lhes devem dar? Quantas vezes deve a sociedade (através do Governo) ser fraterna e tentar resgatar todos aqueles que repetidademente desperdiçam as oportunidades que lhes são dadas? Um Liberal responderia: algumas oportunidades devem ser dadas, mas tem de existir um limite que gere o incentivo certo. Pois bem, e se isso fosse verdade para um país?.

Se tudo isto fosse verdade para um país, quem pensa a política deveria perder tempo a discutir esta abordagem filosófica. E investindo nesse assunto, teria de reconhecer que quando uma sociedade se empenha em redistribuir recursos aos mais fracos, espera deles pelo menos o esforço e o engenho de os saber aproveitar. Mas Rawls explicou bem: as lotarias genética e social são implacáveis. E é essa complacência que nos justifica novas ajudas: quem desperdiça um subsídio, um passe social barato, um apoio, recebe novo incentivo, nova oportunidade. O Governo criou mesmo um programa a que chamou: Novas Oportunidades. Mas ninguém discute quantas. Discutindo, o problema deveria ser este: se uma vítima da lotaria genética e social de Rawls falhar uma oportunidade aos 15 anos, deve renovar-se aos 19 e, falhando novamente, insistir aos 22 e, correndo mal, repetir aos 27 para, perdendo-se essa derradeira oportuniadade, permitir ainda novo empurrão aos 32 e, porque não, um outro aos 36, seguindo de um penúltimo aos 40 e, claro, um final próximo dos 45 ou 50anos? Deve ou não deve? Porque se a opinião for deve, então os Governos merecem iguais direitos - quando falham, são-lhe renovadas as oportunidades. Mas isso não sucede. Isto é, aquilo que aceitamos para cada um não alargamos àqueles a quem entregámos a tutela do poder comum. Dito de outra forma: penalizamos o Governo por tentar e falhar, mas aceitamos que dê aqueles que, tentando, falham.
Pode dizer-se: mas os liberais, justamente, à esquerda e à direita, consideram que essas oportunidades têm limites. O esforço individual deve ser exigido aos que beneficiam da redistribuição. Pergunta: se Rawls estiver certo, será mesmo de limitar o número de oportunidades que se dão aos mais fracos? Não existirá uma obrigação moral de insistir, ainda que os que se ajudam despercicem tudo em bebedeiras, por exemplo? A resposta, de novom, parece simples: assim dito, sim, devem ter novas oportunidades, desde que se apertem os critérios e as malhas de exigência.
Se a resposta for esta - e não estou a sublinhar que seja - como se deveria aplicar esse pressuposto ao país, aos governos? As oportunidades devem-lhes ser dadas, para mandatos maiores onde o erro é visto como ferramenta de crescimento? Ou quando um Governo falha mais vale retirar-lhe o poder e passá-lo a outro, dizendo-lhe que o mesmo lhe sucederá se falhar alguma medida? A pergunta merece resposta?
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IV. “Carpe diem” e power point

Mas qual a relação entre o diapositivo e o “carpe diem”?

Em suma, a de que as coisas não estão no seu sítio. O orador devia ser a fonte da “auctoritas”. Mas não é. Sabe que a fonte da sua autoridade está fora dele. No boneco. As coisas não estão no seu sítio. Rouba ao boneco a autoridade que sabe não ter ou que pelo menos não tem a certeza de ter. ao remeter para o boneco manifesta a sua impotência para ser o único centro de atenção. Para ele a citação não é raiz, mas galho onde se pendura. Sobretudo, a palavra vale pouco, numa substituída pela acção, noutra pelo boneco.

É significativo que a nossa época tenha travestido desta forma Horácio. Que o use e o distorça de um só golpe. Não era aristocrata, mas era autor aristocrático. Não é este o lugar para o demonstrar: todos os elementos que se consideram elementos de modernidade têm origem aristocrática (o pindárico “torna-te o que és”, a suposta libertação sexual, a libertação das mulheres, o relativismo à Calícles, a obsessão com a natureza). É no entanto significativo que seja um seguidor de Píndaro, que como este lembrava que não era escultor e que portanto era artista da palavra, da palavra que voa e não fica presa à terra, que seja o escolhido pela nossa época.

No reino da incerteza só pode imperar o salteador bem sucedido. O que vai buscar ao pomar alheio frutos que não cultivou e de que sabe ser não legítimo fruidor. Neste reino da angústia em que a excitação é aflita e o prazer fugaz é importante perceber qual é o pano de fundo que une sem o saber o cultor do “carpe diem” e o utente do diapositivo pedagógico de muleta. Do mesmo Horácio : “odi profanum uolgus” (ode III, 1 – odeio a multidão dos profanos). É do ódio que nasce esta incerteza, esta angústia. E a plena noção, salvo quando o ódio seja (raramente) fundado, de que se não é legítimo. Um mundo de bastardos, como era de esperar.

Alexandre Brandão da Veiga

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A ler




O tema é controverso mas o debate pode ser civilizado. Este livro prova-o.




Declaração de interesses: espero que me perdoem o facto do editor ser, igualmente, o meu editor.

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