terça-feira, 15 de julho de 2008

Assimetria de pensamento

Gosto de coisas pirosas. Gosto deste blogue, porque está piroso na medida certa: e a medida do piroso é como tudo na vida – depende. O que dá que pensar: quando o piroso chegou, não era piroso. Era o que era. Cantava-se o We Are The World com a mesma convicção com que hoje se defendem cidades verdes ou se assistem a concertos como o bem português Boom festival, onde a água nacional será reciclada e o lixo português por lá feito decomposto todos os dias. Ou seja, a capacidade humana de se envolver em temas nobres (como era o de Wonder) não termina nunca: ela vai é ajustando a sua medida e o seu entusiasmo a novas circunstâncias. Será piroso daqui a uns anos não fumar nos restaurantes? Estas perguntas singelas empurram o raciocínio para a regulação – que não é pirosa, mas é assunto difícil em Portugal. E pode falar-se da Optimus como da concorrência entre pensamentos – vale tudo. Senão veja-se.

Na semana passada o regulador das telecomunicações – o ponderado Amado da Silva – tornou oficial uma decisão que já tinha anunciado meses antes: baixar as tarifas dos telemóveis entre as redes diferentes. O assunto parece complexo, mas é bem simples: quando um TMN liga para um Vodafone, é mais caro do que quando se liga entre TMN’s. Fácil, claro. Mas menos fácil é perceber que as tarifas cobradas por todos os operadores para essas chamadas entre si fossem em Portugal das mais caras da Europa. São. O regulador quer baixar esses preços. Quer, explicou ele, proteger o consumidor português – que pagará menos quando ligar para outras redes que não a do seu telemóvel. Este é o assunto. Sucede que, nessa decisão, o regulador decidiu proteger a existência de um terceiro operador. Entra a Optimus de que falava o anónimo no seu comentário. E é fácil de novo explicar a virtude do raciocínio do regulador – já lá vamos depois às opiniões pessoas. Quer ele ? coisas: (1) que os consumidores portugueses possam escolher entre três operadoras, e não apenas duas; (2) que se diminua o poder do efeito de rede dos dois grandes operadores (o palavrão efeito de rede significa, em português simples, a pulsão natural de um consumidor para escolher a rede onde, por exemplo, sabe que tem mais amigos) – e assim se assegure o desbalanceamento de tráfego – outro palavrão que mais não significa do que assegurar que a balança se equilibra entre todos os que vendem comunicações móveis. Ou seja, o regulador quis corrigir problemas de mercado nos preços exorbitantes que os três operadores (todos) cobravam pelas tarifas das chamadas entre eles. Depois disso, entendeu que como o efeito de rede era muito grande – e o mais pequeno (a Optimus) estava a perder quota de mercado – fazia sentido corrigir também esse desvio do mercado (uma vez que ele tinha sido provocado por essas tarifas altas demais que geraram uma balança de clientes desiquilibrada). O regulador, portanto, não foi piroso – ele ajustou-se às circunstâncias que tinha.

Agora pode discutir-se se é justo, equitativo e aplicar aqui muitos dos critérios da escolha pública. Eu avanço uma tentativa: quando um regulador intervém no mercado livre é bom que o faça pelas razões certas – isto é, para corrigir desvios a essa liberdade de actuação. Neste caso dos telemóveis, existia um desvio: os consumidores eram arrastados naturalmente para os grandes operadores. Pode dizer-se: mas isso é a lei do mercado – morrem os mais fracos, sobrevivem os mais fortes. É verdade. Sucede que este mercado dos telemóveis se tornou numa verdadeira commodity: as pessoas querem comunicar, precisam de fazê-lo e exigem preços baixos. Mas pode dizer-se também: as pessoas também precisam de comer, e isso não leva o regulador a subsidiar a abertura de novos supermercados ao lado do que já existem para com isso baixar os preços. Não leva? Claro que leva: não só através de incentivos ao investimento estrangeiro, como através da fiscalização da cartelização de preços junto dos produtores e, talvez tão ou mais importante, impedindo que um dos operadores se torne demasiado dominante. Nos telemóveis é igual: o regulador não quer aceitar que o mercado deixe de ter oferta de três redes de telemóvel apenas porque duas delas conseguiram gerar um volume de tráfego tão alto (ainda que baseado em bom serviço e equipamento) que isso impeça a sobrevivência de outros. Um supermercado, por melhor e mais eficaz que seja, não deve estar sozinho no mercado nem ser autorizado a ‘limpar’ os outros do mapa.

O assunto não é simples, e justifica muitas diferenças de opinião. Esse é o universo fascinante da regulação. Tal como ainda há hoje gente que vibra com o Stevie Wonder (e não o acha piroso), também muitos discordam da regulação quando ela é contrária ao que nos interessa ou mesmo aquilo em que acreditamos. Mas essa é a maravilha do mundo: o que uns acham piroso, outros consideram magnífico.

 

2 comentários:

Sofia Rocha disse...

Martim, a regulação é um tema difícil em portugal, é sim senhor. Aliás, eu já tinha brincado com o assunto,aqui há umas semanas. Não sei se leu, mas referi-me ao facto de que não teriam sido bem recebidas as palvras do Prof. Abel Mateus ( em Julho de 2006), dizendo que a Autoridade da Concorrência aplicava sanções que eram sistematicamente objecto de recurso com efeito suspensivo. As duas únicas entidades de que conheço as leis orgânicas, e por iso a natureza das sanções aplicadas, são a Autoridade da concorrência e a ERC. Na primeira, todas as decisões são passíveis de recurso, com efeito suspensivo, para o Tribunal de Comércio de Lisboa ( a lei vai ser alterada, como sabemos). Na segunda, as decisões podem ser objecto de medidas cautelares, ficando por isso suspensas. Ou seja, tanto num caso como noutro, as decisões dessas entidades acabam nos nossos tribunais. Ora, sabendo nós todos qual o estado actual da justiça, pergunto-me o que é que se quer, do ponto de vista político, verdadeiramente para as entidades reguladoras. Duma coisa estou certa, a economia não tem ficado à espera do ritmo da nossa justiça.

Gonçalo Pistacchini Moita disse...

Martim, entre testes e posts entrados uns abaixo e outros acima, ora aí está uma verdadeira assimetria de pensamento.