Joy Division
Depois de Control, surge agora nas salas de cinema um documentário de Grant Gee sobre a banda de Manchester. O filme sugeriu-me três aproximações.
Joy Division I — Vida resolvida
Como nos contratos, a morte de Ian Curtis resolveu os Joy Division. Não sou dos que pensa que se tivessem continuado teriam (com Ian Curtis) os Joy Division teriam sido isto ou aquilo. Só podemos dizer o que foram. Como um livro que se lê do princípio ao fim e no fim temos uma história, completa sobre a qual podemos pensar o que quisermos mas não podemos pretender que a história seJa outra porque se assim pensássemos o que realmente queríamos era outra história e não aquela.
Ao contrário de outras mortes prematuras (Morrison, Joplin, Buckley, Hendrix, por exemplo) que se deveram sobretudo a excessos de drogas numa época de experimentalismos arriscados, a de Ian Curtis foi uma morte que culminou o progresso de uma aporia: a impossibilidade de resolver humanamente um conflito entre o significado profundo dos actos humanos e o nascimento dos sentimentos contraditórios que nos afastam do caminho que sonhámos, construímos e que vimos, por fim, a destruir.
Depois da sua morte, ou com ela, ficou fiel ao que prometeu. Não facilitou. Não pensou, como as vulgares criaturas, que tinha direito a ser feliz. Não pretendeu criar uma nova realidade à medida dos seus interesses.
Depois dele cada um fará o que quiser e poderá até presumir conciliar o inconciliável. Ele acreditava demais no que escrevia, dizia e sentia. E na solenidade das promessas. Não era deste tempo. Por isso saiu de cena. Os que cá ficam vão tentando ser felizes, porém, sem fidelidade aos sonhos e às promessas que eles guardam não há felicidade possível. Só a miserável sociologia.
Joy Division II — Alquimia
Um dos aspectos mais interessantes do documentário de Grant Gee é revelação do modus operandi da banda. Parece que só IC se preocupava com as letras. O cunho depressivo com que estas têm sido marcadas passavam completamente ao lado do resto dos músicos. Porém, toda a música dos Joy Division tem uma unidade absolutamente incindível das letras. Peter Hook, levanta o véu quando diz que ninguém tinha uma consciência calculada do que estava a fazer, o que havia era uma química entre eles que tornava a criação quase instantânea e dá o exemplo de Love Will Tear Us Apart composta e escrita em poucas horas e à pressa.
Química e genialidade acrescentamos nós. O som da JD foi definido quase por um acaso quando alguém mexeu num botão no estúdio e alguém se apercebeu que o som ganhava uma nova dimensão e não deixou desfazer a brincadeira. Estes acasos deixam no ar aquela dose de involuntarismo que nos faz pensar em que medida controlamos o que queremos fazer e em que medida somos apenas mediadores do que através de nós se exprime. Isso é com certeza uma das marcas de génio na música da JD que foi, depois da sua história acabar, a origem de vários estilos ou tendências musicais que nasceram a partir deles.
Eles que tinham nascido das cinzas do Punk foram, como os Velvet Underground no seu tempo, uma banda seminal para o futuro do Pop Rock.
Joy Division III — Something Must Break
A música e as letras da JD invocam um tempo que se perdeu e que nostalgicamente se sonha restaurar. São a expressão no Pop Rock do chamado pós-modernismo que à época estava em voga na arquitectura, nas artes plásticas, na literatura e na filosofia. O homem moderno falhou cantava IC em Failures do primeiro EP da banda An Ideal for Living gravado em 1977.
Como foi próprio do chamado pós-modernismo, as expressões e correntes que se inauguraram não corresponderam a um corpo doutrinário uno como acabou por ser o modernismo. Em geral, o que se pensou e exprimiu foi o insucesso de um certo ideal que, doutrinado e politizado, conduziu a cultura a uma forma sociológica, uma espécie de racionalismo auto-suficiente que se desenvolveu com a filosofia moderna.
Se do pós-modernismo produziu muito lixo, também, gerou um tempo de reflexão e de expressão de valores que deslocaram o centro de gravidade da dicotomia entre o moderno e o tradicional que liderou o confronto entre visões antagónicas. No pós-modernismo, há uma novidade que é a necessidade de exprimir valores fora das balizas doutrinárias estabelecidas. Num certo sentido, é uma reacção espontânea a um espartilho que já não exprimia a maturidade do pensamento contemporâneo o qual aguardava por novas possibilidades e novos paradoxos para se reconhecer e progredir. Os problemas, os enigmas e os mistérios eram, por isso, outros.
Nos artistas, cuja sensibilidade é seminal, o novo tempo surgiu com a força de uma maré que extravasa um dique e inunda os campos. O super-Homem da idade moderna enfraqueceu os seus poderes, o minimalismo ganhou opulência formal, o romantismo reapareceu, os internacionalismos regionalizaram-se, a Grécia foi revisitada, etc.
Mas tudo isso não dissolveu nem apagou as contradições do homem contemporâneo. E Ian Curtis foi uma expressão dessa contradição. A dificuldade de lutar sózinho por um ideal num mundo esvaziado e descolado desses ideais. E raros são os que resistem a viver contra o tempo. O pós-modernismo teve, como dissemos uma expressão nas artes e na filosofia. Mas na sociedade e na vida o materialismo continuou a promover a derrapagem desamparada do homem para o abismo. Hoje já todos se queixam da força inconsciente que parece liderar os destinos do mundo contra a sua própria consciência e, sobretudo, contra o seu pensamento. O homem só será sempre elo mais fraco. Entre a força da consciência individual e a força do mundo, Something Must Break.
1 comentários:
João Luís, também só sei o que foram. E o que foram para mim naquele tempo e naquele lugar. Foram fora de tempo, porque apenas os aproveitei em pleno em 1990, no primeiro ano da faculdade em Coimbra. Foram a banda sonora desse ano da minha vida. Batiam-me em cheio quando entrava na discoteca "States" à Cruz de Celas, mesmo ao lado da casa de petiscos "Arco Bar", que aviava moelas e tripas a estudantes e a caminonistas. A "States" era assim a puxar para a rapaziada mais culta e literária. Ou seja, não entrava o pessoal de calças encarnadas, camisas às riscas e sapato vela. Entendia-se então que este som tinha tudo a ver. Joy Division também dava para gravações pirata a rodar no carro até à Zambujeira do Mar. Como o tempo era aquele nem me ocorria que um dia haveria blogs, no qual escreveria sobre isto. Nem que o dia chegasse em que a simples ideia de comer um pratinho de moelas, mais um pratinho de tripas, mais uns tremoços, me deixaria infinitamente mal-disposta pela antevisão da indisgestão.
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