quinta-feira, 30 de outubro de 2008

135 vigilantes e recepcionistas

Mereceu uma seta ascendente esta notícia de ontem no jornal Público.

O Instituto dos Museus e da Conservação, já conseguiu autorização para contratar 135 vigilantes e recepcionistas para minorar a crise de falta de pessoal nos museus. Por enquanto serão contratos precários, parece que lá para Janeiro passarão a definitivos.

Segundo o mesmo jornal, continuarão os problemas relativos à falta de pessoal nas áreas de conservação e restauro, que continuarão "(...) sem data de solução à vista. (...)".

Compreendo a alegria do jornal, sempre são 135 postos de trabalho, que em tempo de desemprego, não parece coisa pouca e compreendo a natural satisfação das pessoas que conseguirem esses postos de trabalho.

Todavia, metodologicamente, acho o procedimento completamente errado.

Em primeiro lugar, não faz sentido a administração pública insistir em contratar pessoas para desempenhar este tipo de funções. O recurso a empresas privadas de segurança, por exemplo, é já prática corrente em hospitais e universidades públicas.

Em segundo lugar, se, na administração, serviços como a segurança, limpeza e jardinagem, como manda a lei, forem executados por empresas privadas, abre-se a possibilidade de nascerem mais empresas para prestar estes serviços que, por sua vez, podem empregar mais pessoas.

Em terceiro, encaremos a realidade, quem entra para a administração, não sai. Assim, se chegar o dia em que um museu tem de fechar, teremos um maior número de pessoas com escassas habilitações, na situação de supra numerários, ou em situação de aposentação precoce.

Em quarto lugar, e mais importante, não se contratam técnicos especializados em conservação e restauro, ou seja quadros altamente qualificados.

Em suma, fez-se uma opção. Contrata-se a eito trabalhadores para exercerem funções de vigilância e recepção, mas não há dinheiro para trabalhadores qualificados, absolutamente necessários na actividade em causa.

A solução parece-me ser só uma. Publicitar a oferta a empresas do ramo que providenciem os melhores serviços ao melhor preço, obrigá-las a concorrer entre si. Consequentemente, canalizar os recursos disponíveis para os trabalhadores qualificados.

Como sempre, privilegia-se o imediatismo, o óbvio e o facilitismo, ao mesmo tempo que se persiste no emprego público de baixas qualificações.

Corremos porém um risco. Termos quem abra a porta e venda o bilhete. Resta saber se valerá a pena lá ir, é que sem cuidados técnicos, não haverá nada para ver.

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IV. Islão e cristianismo

Em quarto lugar a relação com o texto sagrado. O Islão fala árabe no alcorão. Ponto final. É evidente que houve polémicas históricas que se perguntavam se o texto do alcorão era criado ou incriado (em evidente transposição de idênticas questões tratadas em sede cristológica). Mas o corão foi escrito em árabe e a língua sagrada do Islão é o árabe. No paraíso fala-se árabe. Mais, a tese tradicional é a de que o árabe mais puro é o escrito no corão.

O paradigma cristão é bem diverso. Cristo falaria arameu. Mas não em lembro de autor que dissesse que o arameu seria a língua sagrada do paraíso. Seria mais depressa o hebreu, língua do Antigo Testamento. Mas entra uma terceira língua em jogo. O grego. O Novo Testamento é-nos dado em grego. Ora nunca ninguém aceitou sequer que a palavra literal de Cristo seria grega. Mas eis que entra uma quarta língua em jogo: o latim. O cristianismo latino vive da vulgata de São Jerónimo escrita em latim. Uma tradução sobre uma tradução. As palavras de Deus não são lidas na sua versão literal original.

Não menos grave que isto. Estando escrito em grego o novo testamento ninguém algum dia se atreveu a dizer que eram o paradigma do mais puro grego. A prosa platónica e as poesias épicas eram bem mais consideradas paradigmas do bem escrever. Bem pelo contrário, constrangeu alguns dos padres da Igreja o que sabiam ser um grego menos elegante. E depois entram outras línguas em jogo. O alemão de Lutero. O inglês do rei Jaime. O checo, o francês, e tantas outras traduções da bíblia tornam-se canónicas. Por isso quando um cristão se cola à letra, algo de estreiteza teológica e inépcia filológica se passa na sua cabeça. O fundamentalista americano cita a palavra de Deus em inglês como boa. Como se Cristo tivesse falado em inglês.

A relação do cristão com a palavra divina corre por isso menos risco de cair no fetichismo. O livro sagrado é tradução. Sempre. Seja em versão grega, por maioria de razão latina, em eslavão antigo, russo, inglês, alemão, ou checo. Ninguém pode dizer que Deus se pronunciou em aoristo grego e menos ainda que foi por essa Sua expressão que se formou o epítome da língua grega. A letra é tradução. Por isso carece da mediação do concílio.

O passeio que fiz foi rápido e sumário. Mas cada espaço na Europa nos lembra (ou lembra quem não é cego) da infinitamente maior riqueza da cultura cristã. Não há um Beethoven Persa, um Bach marroquino, um Miguel Ângelo cairota, um Dante turco, um Gauss líbio, um Leibniz argelino. Não há nem nunca houve. O Islão foi sobretudo cultura de transmissão, mais que de criação infinita. O que já não é mau, mas é bem diverso da Europa.

Em época em que o discurso amansador da fera externa (porque é quem tem discurso amansador que vê o estrangeiro como fera, não o vendo eu dessa maneira não careço dele) nos manda dizer maravilhas de tudo o que existe só porque anda postado na praça, convém lembrar aos europeus a infinita riqueza da sua cultura, maior que alguma vez na História se viu. E que fonte dessa riqueza é o cristianismo por vias tão estranhas e ao mesmo tempo tão simples e evidentes, que escapam à maioria.

Toda a cultura tem base religiosa. Só o anestesista e a assepsia podem achar o contrário. Lembrar quais são as diferenças é a primeira base para o diálogo, diz-se. Mas não sou cultor da conversa desdentada, e diálogo é algo que se deve ter, senão entre iguais pelo menos entre comparáveis. Gostaria de lembrar que a primeira regra do diálogo é a de se perceberem as diferenças. De tanto se fictarem semelhanças acabamos por ter em comum apenas respirar e defecar. O que em si não é mau, mas cheira-me a pouco... e mal.







Alexandre Brandão da Veiga

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The Brave Lovejoy


Em “O Meu Diário com Sofia” o Manuel (Fonseca) declara ser capaz de “oferecer o peito às balas” na defesa de uma Geração de 60 assente no princípio original da liberdade lúdica.

Esta posição, que não me espanta no Manuel, bem entendido, fez-me lembrar um ensaio sobre o heroísmo do (Ralph Waldo) Emerson no qual este escreve:

“It is but the other day that the brave Lovejoy gave his breast to the bullets of the mob, for the rights of free speech and opinion, and chose to die when it was better not to live”.

Este Lovejoy (não confundir com o herói de uma série inglesa com o mesmo nome, protagonizado pelo excelente Ian McShane), Elijah Parish Lovejoy mais precisamente, foi um pastor (no sentido clerical do termo), jornalista e editor de jornais (St. Louis Observer, Alton Observer) assassinado por uma turba desbragada, no Estado do Illinois, devido à sua intransigente defesa de uma política abolicionista.

As forças que se lhe opunham procuraram calá-lo, por três vezes, através da destruição das gráficas nas quais imprimia os seus jornais. Mas sem qualquer efeito. Os ataques não lhe faziam tremer a mão na altura de escrever, nem lhe roubavam a voz com que falava ao seu rebanho.

No entanto, a verdade é que num desses ataques, a 7 de Novembro de 1837, precisamente há 171 anos atrás, e enquanto um grupo de amigos procurava salvar uma impressora recentemente oferecida pela Sociedade Anti-Esclavagista do Ohio, o nosso herói foi baleado. No peito.

Pela sua coragem Elijah Lovejoy é considerado o primeiro jornalista mártir da América e o defensor original da liberdade de imprensa nesse país.

Mais tarde, já em 1952, foi estabelecido um galardão atribuído anualmente a um representante dos media que se considere ser um digno herdeiro desta nobre tradição de defesa da coragem e da liberdade de informação.

Finalmente, e a despropósito, confesso que sempre achei interessante que um homem da Igreja se chamasse Love Joy.

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quarta-feira, 29 de outubro de 2008

III. Islão e cristianismo

Em terceiro lugar, a Incarnação. As implicações da Incarnação vão muito além das teológicas. Já essas bastariam. Mas as restantes são bem mais ignoradas e por isso têm de ser salientadas agora.

Para simplificar, são quatro: a sacralidade da história, Deus como Amor, a ciência experimental, o paradigma da inércia.

Todos os povos têm histórias sagradas. A questão é que estas em geral se recolhem em certos momentos históricos, em que o profeta, o deus Saturno ou outra entidade de fundo mais ou menos religioso viveu na Terra. Mas a Incarnação é algo mais que um avatar como Krishna. Deus fez-se carne e ascende em carne aos céus. O espaço divino é habitado por um homem-Deus. E o espaço terreno não é profano, porque a condição de homem foi plenamente partilhada por Deus enquanto se fez homem. Não há uma distância infinita entre Deus e o homem não transposta. O Deus dos cristãos é um Deus que transpôs esse espaço.

Que Deus seja Amor é algo que não faz muito sentido para um muçulmano. Pode mesmo ser blasfémia para um islamita, porque é pretensão de limitar Deus. Aliás a santíssima trindade é igualmente uma das manifestações desse facto. As três pessoas divinas que se amam eternamente de um amor absoluto e sem fim são a garantia (algo estranha numa perspectiva de bom senso) de que Deus é amor. A Incarnação é a prova do amor infinito de Deus pelo homem. O homem cristão sabe-se infinitamente amado por Deus até ao sacrifício último, o Deus sem associados do Islão manda profetas. Já não é mau, mas dá uma muito menor dignidade ao homem. O cristão é o que se sabe amado, ou aprende a sabê-lo. Amado infinitamente. As consequências psicológicas são múltiplas. E nesse aspecto os ortodoxos orientais têm-nas mais conscientes que os outros ao salientarem a divinização do homem. Tudo ideias improváveis, improbabilidade que é sempre a marca do génio, senão de algo maior.

Que vem fazer a ciência experimental quando se fala de Incarnação? Muito simplesmente. Para um grego era inconcebível uma ciência do perecível. Ou mais justamente, porque havia ciência sobre o perecível (a geração e corrupção, o movimento em geral), uma ciência que se instalasse no perecível. Não é por acaso que só os cristãos criaram ciência experimental. O espaço do perecível é espaço que faz parte da economia da salvação. Cristo fez parte desse espaço. O argumento pode parecer algo exagerado. Seja. Mas a criação científica depende de obstáculos psicológicos que levam séculos a perceber. A dificuldade de aceitar o zero, e os números imaginários ou alternativas ao postulado das paralelas mostram como a ciência é feita por cientistas, ou seja, seres humanos integrados numa cultura.

Se o grego não criou ciência experimental, embora tenha feito experimentos, se o muçulmano não criou essa ciência, se foram padres franciscanos de Paris, ou um Bacon a lançar esse movimento, também não é por acaso. A ordem mais carnal de todas, em que o santo fundador teve comunhão carnal com Cristo pelos estigmas, era a mais habilitada a começar esse impulso. Mas em geral o cristão vê mais facilmente o mundo carnal como signo da eternidade, porque Cristo comungou plenamente desse mundo. E poude fazê-lo reconhecendo aquilo que Leibniz chamava da certeza moral da ciência. Ou seja, sabendo que a ciência não daria nunca certezas necessárias. Foi preciso o movimento de descristianização para que surgissem determinismos, e são hoje em dia os filhos dessas descristianização que lutam em edipiano extremo contra esse determinismo. Mas uns e outros apenas se afligem com ou contra a certeza porque uns e outros sofrem de um mal que o cientista cristão nunca conheceu: o de procurar que a ciência nos dê certezas existenciais. Hoje em dia, em que por várias vias se tenta usar a ciência para legitimar religiões, e nisso o budismo e a Islão são peritos, a maioria das pessoas esquece um facto muito simples: a grande ciência – foi criação da Europa cristã. Não há realmente coincidência.

O paradigma da inércia resulta do fim do “falsus circulus”, que tanto atacava Santo Agostinho. É um Hapax. Há um antes e um depois da Incarnação. Os nossos computadores quando indicam a data em todo o mundo indicam esse facto, por mais convencional que seja esse número. Um grego, e por maior de razão um muçulmano, que foi sempre menos criativo que os helenos, não seria capaz de conceber o movimento rectilíneo como o “natural”. Se o princípio da inércia surge na Europa sobre a forma rectilínea (geometricamente a coisa tem posteriormente outros desenvolvimentos, que não interessa aqui desenvolver) é por causa do cristianismo. Lembro que o cristianismo não é uma teoria da História, e por isso ainda menos uma teoria do progresso. A ideia de progresso é uma caricatura do Hapax cristão. Mas a verdade é que a capacidade de afirmar que existe um antes e um depois substantivamente diferentes, que existe um novelo que se pode desfiar (desenvolver, literalmente) é cristã.

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terça-feira, 28 de outubro de 2008

II. Islão e cristianismo

Segunda diferença inelutável, a complexidade. O profeta insistiu sobre o facto de Deus não ter associados. Essa insistência só se compreende perante a doutrina cristã. É evidente que nisto o Islão não inovou. Toda a espécie de heresias do arianismo extremo à sua versão moderada da “homoiousia” já o tinham dito. A verdade é que desde muito cedo (um mistério não só da economia da salvação mas também histórico) tanto a santíssima trindade como a dupla natureza de Cristo foram enunciadas de modo mais ou menos expresso pelo cristianismo.

A santíssima trindade e a dupla natureza de Cristo levantam problemas de toda a espécie: lógicos, matemáticos, metafísicos, retóricos. Falar num Deus único sem associados é no fim de contas reduzir à sua forma mais simples o problema da existência. O problema do Uno foi desenvolvido até à exaustão sobretudo pelo neoplatonismo, de que o cristianismo é herdeiro. Mas o cristão tem outros problemas com que lidar. A complexidade do dois e do três na divindade permitiu uma elaboração não apenas filosófica, mas igualmente teológica, matemática e lógica infinitamente complexas. Ao longo de toda a história do pensamento cristão se vê uma importância do ternário que não se encontra no Islão. Hegel é o exemplo popularmente mais conhecido, mas São Boaventura seria outro bom exemplo (no Oriente Gregório Palamas, mas esse fica para outras núpcias).

O cristão defronta-se com um problema: a identidade do Um, do Dois e do Três. Não é por acaso que a matemática europeia é infinitamente mais complexa e rica que a islâmica desde há cerca de mil anos. É que o problema do uno não é a sua enunciação, mas a sua relação com o múltiplo. Enunciar o uno sem mais é exercício de rotina depois de Platão.

Embora o desconforto dos números imaginários e complexos tenha sido sentido por força do paradigma clássico dos números naturais e pitagóricos, embora matemáticos árabes e persas se tenham defrontado com passagens de cálculo com números que hoje em dia chamamos de complexos, não é por acaso que são europeus que transcendem estes problemas, que acolhem estes números. Não é por acaso que é o católico Cauchy que desenvolve a teoria das funções complexas, que é um cristão Cantor que desenvolve a teoria dos transfinitos. O seu espaço mental foi elaborado durante séculos para os preparar para uma complexidade, também numérica, que um Deus sem associados nunca obrigou a pensar.

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segunda-feira, 27 de outubro de 2008

I. Islão e cristianismo

Há muitas e imensas diferenças entre o islão e o cristianismo. As mais visíveis são importantes, relevam dados históricos e civilizacionais profundos de diferenciação. É certo que a invasão paulatina de sub-proletariado na Europa torna muito de moda um discurso paliativo, mole, desdentado. São diferenças de valores, de culturas, substantivos e muito importantes. A capacidade de gerar democracia, a situação da mulher, a criação científica, artística são apenas alguns destes motes. Todos eles importantes, saliento. Todos eles diferenças irrevogáveis eventualmente.

Algumas não serão irrevogáveis, mas são tendências fortes. Por exemplo, a arte representativa, rara salvo no Islão turcófono ou em certa arte médio-oriental paleo-islâmica, e mesmo nele menos desenvolvida, tem paralelo na iconoclastia cristã, embora de modo mais fraco (dizem que os palácios bizantinos durante a iconoclastia estavam pintados de luxuriantes cenas de caça).

Mas não é essa a perspectiva que agora me preocupa. O que me interessa neste momento é ver o que é inequivocamente irrevogável no que respeita à diferença entre estas duas civilizações, estas duas religiões. Sintetizam-se em quatro aspectos: antiguidade, complexidade incarnação e relação com o texto sagrado.

Antiguidade em primeiro lugar. O cristianismo é mais antigo que o Islão. Nada poderá mudar isso. Os europeus que em classe média se fascinam com a antiguidade desse mítico Oriente, de que são mais legítimos herdeiros do que julgam e menos usurpadores do que pensam, costumam olhar para esses países de antiga civilização como se fossem de cultura mais antiga que a deles. O problema é que quando olhamos à volta da Europa encontramos um mundo marcado por uma herança bem mais recente que a europeia. Esse mundo começou seis séculos depois do cristianismo, o mundo do Islão. O Egipto que hoje é conhecido é-o por obra de europeus. Foi Heródoto e sobretudo Champollion quem nos deram esse mundo. Para o “felah” que atravessava os campos apenas se postavam pedras à sua volta. O xeque árabe elogia o arqueólogo alemão que no século XIX descobre sob a areia a civilização da mesopotâmia dizendo: durante gerações os nossos homens passaram por aqui e só viram areia e eis que chega o europeu e diz: é aqui. E desenterra um passado de que nunca suspeitáramos.

Quando surge o Islão o mundo cristão já é antigo e rico. Tivera acabado o cristianismo em 625 já haveria trabalho a dar a muitos historiadores durante séculos. Tertuliano e Santo Agostinho, Orígenes, o Pseudo-Dionísio o Areopagita Gregório Magno Leão Magno, Boécio, Ausónio, Cassiodoro já tinham existido. As belezas de Ravena, Roma e Constantinopla já estavam construídas. O Código de Justiniano já estava há muito publicado. Duas grandes culturas eram cristas, no ocidente e no oriente, a Arménia, a Geórgia já eram cristãs. Em três continentes o cristianismo já existia e já produzia grandes obras de arte, literárias, filosóficas, uma administração, formas de governo.

O Islão é herdeiro do cristianismo e não o contrário. Isso deve-se não apenas a uma relação da antiguidade, mas cede perante ela. Issa (Jesus) a Virgem Maria são personagens do corão, Maomé não o é do evangelho.

Quando se discutem por isso dívidas, se as houver, temos de começar pelas dívidas que tem o Islão em relação ao cristianismo e não o contrário. A noção de “Umma”, da comunidade dos fiéis, escora-se na de Ecclesia, fortemente elaborada pelo cristianismo. Niceia-Constantinopla já estava elaborada plenamente quando surgiu o islão. Tanto sob o ponto de vista religioso, como institucional e civilizacional o cristianismo já era cultura bem antiga quando surgiu o Islão. Foi às suas estruturas (e em parte às persas) que o islão foi buscar os seus conceitos teóricos, as suas formas de governo, as suas escoras civilizacionais.

Nada poderá mudar isso. O muçulmano, quando olha o cristão, apenas pode ver quem o ensinou a fazer do Islão a possibilidade de uma cultura.

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domingo, 26 de outubro de 2008

O nosso problema

O debate entre a Sofia e o Manuel deixa-nos num impasse. Como poderão ambos ter razão se entre eles parece estabelecer-se uma oposição ainda que metodológica? A Sofia expôs uma tese: a de que o governo actual manipula e condiciona a televisão pública. O Manuel relativiza a tese afirmando com exemplos e interrogações afirmativas que se trata de disputa política e que a denúncia sempre surge de quem está na oposição. A Sofia tem razão. O Manuel também. É aí que surge o nosso problema. Agirmos dentro do quadro e das regras políticas actuais é corrermos o risco de, mesmo sendo justos a criticar, sermos unilaterais ou, não criticando porque não queremos ser unilaterais tornarmo-nos coniventes e acomodados ao status quo. Porém, hoje só há status quo. Então, o que é que nos resta?

O nosso problema é este: a mentalidade do nosso tempo não corresponde já ao modelo político que se pratica. Vivemos num estilo político do passado, com as suas jogadas e truques, esquemas e montagens, mas verdadeiramente já ninguém, que pense com autenticidade, está nesse registo. A classe política e a cidadania começam a ser de órbitas diferentes e desfasadas. E a ética começa a superar a simples legalidade.

A ética, que se opõe à moral no sentido em que a consciência dos indivíduos não pode esconder-se indefinida e indistintamente em regras estáticas ou sem progresso mental, é a expressão da superioridade do género humano e a garantia do seu aperfeiçoamento. A ética, ou educação, supera o que está, em nome do que há-de vir e afirma-se com coragem e determinação sobre a massa informe e retrógrada das morais inertes, imóveis e anquilosadas.

O que fazem os políticos?, agarram-se à lei ou à moral e reduzem-na à sua expressão mais literal para justificarem os seus actos e, com isso, condicionam a vida dos indivíduos e garantem a sua perpetuação no poder. O que fazem as pessoas livres?, denunciam os políticos e os seus esquemas e insurgem-se contra a evidente ausência de ética nas diversas práticas seja no governo seja na oposição.

A armadilha dos políticos é a autolegitimação que se funda através de uma aparente e pretensa pluralidade social representada por partidos políticos. O que estamos sempre a criticar, ora de um lado, ora do outro, é aquilo que nos tiraniza e é só uma coisa: a classe política. A classe política é uma organização de pessoas e grupos com interesses cruzados e que se baseia numa espécie de alternâncias e alianças que garantem a sua perpetuação.

Os que pensam livremente têm dificuldade em entrar e pulverizar esta selva complexa. Os meios de que dispõem são poucos e frágeis frente aos meios de que a classe política dispõe e valida. Mas é da consciência das pessoas que pensam livremente que sempre surge a necessidade de introduzir novos valores, ou novas formas de compreender os valores, porque se apercebem do paradoxo que é a situação das sociedades em que uma classe política autista comanda uma sociedade que já não se revê nela.

A Sofia e o Manuel, à sua maneira, representam essa superação ética da moral politiqueira. Seja na indignação pelas suas manipulações, seja pela verificação de que uns e outros são o mesmo e não vale a pena estar de um dos lados se os dois lados são iguais ou parecidos, ou, pelo menos aceitam as regras de um mesmo jogo. Verificamos, assim, estarmos perante um mundo exaurido, cansado e infecundo que aguarda um novo alento que os indivíduos mais capazes possam trazer à consciência geral a partir das suas consciências individuais, quer dizer, da ética, ou educação. O resto cairá por si mesmo.

Porém, para que caia de podre, é preciso que as vozes se façam ouvir e um novo paradigma seja proposto. Não podemos ficar só na interminável denúncia e na interminável análise dos problemas. Para superar é preciso fazer. As sociedades contemporâneas ocidentais criaram pelo pensamento, pela arte, pela religião e pela ciência um modelo de convívio que se baseia na liberdade dos indivíduos. É essa a fonte da sua prosperidade (mesmo em tempos de crises financeiras). Uma teoria da inveja, minou nos últimos dois séculos as raízes desse modelo de prosperidade civilizacional que não prosperidade simplesmente económica. A cruzada da igualdade económica precaveu-se na fundamentação errónea e funesta da igualdade dos indivíduos. Essa inversão fez da igualdade dos indivíduos a antecâmara de uma pretensa nova ordem de prosperidade económica que não de liberdade.

Porém, a prosperidade civilizacional é também política, filosófica e artística. Diz respeito ao saber e à evolução espiritual dos homens. A teoria da inveja, que tem como característica principal reduzir os homens (as massas) a um igualitarismo informe e dócil ás mãos de uma qualquer tirania que se lhe queira impor, tem sido responsável pelas maiores guerras que eclodiram no mundo ocidental quando já nada o faria supor. Foram guerras sobretudo contra o individualismo perpetradas por ignóbeis instintos totalitários de matriz socialista. Perdidas as guerras, os mesmos autores perceberam que a forma de prolongar essas guerras era tomando conta da cultura e das universidades, o totalitarismo político foi então substituído pelo totalitarismo do pensamento único, ou politicamente correcto, como agora se diz. Depois do totalitarismo do internacionalismo comunista, veio o totalitarismo nacional-socialista e por fim o totalitarismo do pensamento único que nos chegou por via da cultura e da universidade.

Mesmo assim, a ideia de liberdade foi perdurando como valor essencial do mundo ocidental: é o seu motor. E, por isso, foi também sobrevivendo às atrocidades que o socialismo nas suas diversas formas e transmutações foi assumindo. Actualmente, o pensamento único é de certa forma a causa do nosso problema. O pensamento único torna-se numa moral, é ensinado em todas as escolas e em toda as universidades e vai formatando sucessivas gerações até reduzir a humanidade à unanimidade e em que qualquer oposição exige a igualdade dos opostos!...

Ora é este cenário de pensamento único que torna a política tão opressivamente monótona e desencorajante. Monótona, porque não há verdadeiramente alternativas vindas de dentro; desencorajante, porque a dimensão planetária do pensamento único vai pulverizando e relativizando toda e qualquer manifestação, organização ou simples tomada de posição. O nosso problema é esse mesmo: intervindo, não temos capacidade, por agora, de mudar nada. Instala-se, por isso, a descrença, parece não valer a pena lutar e os que permanecem na luta serão, mais tarde ou mais cedo, condicionados e integrados no sistema.

Mas, como acontece a tudo o que se torna insuportável, um momento virá em que a ruptura se há-de dar. Quem a fará, quando a fará e como a fará não sabemos dizer. Será de onde menos se espera, porque a história não se faz de previsões mas de choques. O desinteresse dos jovens pela política pode ser um bom sinal. Quando forem chamados a intervir, quando for a sua vez, talvez tragam uma nova visão e uma nova prática. Aos que, por enquanto, não têm nem meios nem disponibilidade para arriscar tudo, que produzam ao menos a literatura que outros irão por em acto. Não terá sido sempre assim?

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O refeitório

De manhã, quando mulheres e homens entravam no refeitório, eles já lá estavam.
O refeitório era um rectângulo baixo, alimentado por uma luz crua, que chamava as moscas.
Das janelas do refeitório, viradas a sul, via-se a rede e o arame farpado, os grandes portões por onde circulavam os camiões e os mastros das bandeiras:do país, da comunidade, do grupo.
De manhã, enquanto se fazia uma fila única para o café, ou pequeno-almoço, de administrativos, quadros, comerciais, muitos já sentavam nas mesas do fundo.
Vestidos de calças e blusão acolchoados e impermeabilizados verdes, grossos muito grossos, de forma a permitir trabalhar nas câmaras frigoríficas suportando as temperaturas negativas, almoçavam às 9.00 da manhã.
Às 9.00, comiam, bebiam cerveja, riam, soltavam impropérios, risadas soltas olhando de frente as mulheres que, ao contrário deles, sabiam de computadores. Falavam em mau português, conversas regadas de palavrões e de frases feitas ouvidas na tv e do futebol visto no café da aldeia, aceleradas em cantilena ribatejana, enquanto se batiam as cartas em jogos violentos de pobres.
Misturados na fila única, eram observados de soslaio. Precocemente envelhecidos todos. As mulheres de 20, pareciam ter 40. A pele grossa e baça. Buracos onde antes haviam estado dentes. Olhos raiados de sangue, da insónia e do alcool. Mãos desfeitas de empacotar, embalar, preparar.
Eram os preparadores, a base, daquela imensa cadeia humana e comercial.
Ali já havia famílias inteiras, pais que levavam filhos. Aqueles mais submissos do que estes. Os filhos regateavam as horas extraordinárias, as únicas capazes de consertar o ordenado mínimo nacional que todos recebiam, diziam que em Paços de Ferreira é que era, que lá o sindicato não deixava barato tanto abuso.
Por vezes um deles desaparecia. Nesses dias, a notícia corria célere, procurava as máquinas de café, os sítios onde se fumava e abatia-se à boca pequena no refeitório. Calavam-se os impropérios, negavam-se as cartas e os únicos olhares percebidos eram de ódio. Um deles, um preparardor, tinha sido despedido.
Nesses dias de peçonha ouviam-se as moscas a fritar num delírio de azul.
Eram os únicos dias em que um ou outro chefe por lá aparecia. Era gente de acrescida responsabilidade. Os destinos do grupo repousavam sobre os seus ombros, a vida e o trabalho de milhares de trabalhadores dependiam da sua capacidade. Entravam como reis, majestáticos e firmes, possantes, derramando a autoridade que um ordenado de 50.000 euros mês permite, e que anualmente, com prémios e louvores chega, por cabeça, ao milhão de euros.
Nesse dia, chegava solícito o advogado, que cumpriria os trâmites legais de despedir o trabalhador. Numa sala dos fundos chamariam o larápio e juntos, explicar-lhe-íam da gravidade e ilegalidade daquilo tudo. Que não se furta, que a sanção para o furto é o despedimento, com efeitos imediatissimos. Assim obriga a moderna gestão de recursos humanos.
Nos blusões grandes daqueles homens aninhavam-se por vezes, um cacho de bananas, ou noutro caso quatro yougurtes fora de prazo, ou ainda um pacote de dodots.

Diz o povo que tantas vezes vai um cântaro à fonte que ás vezes parte-se a asa. Ou dispara-se um revólver pela calada da noite, digo eu.

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sábado, 25 de outubro de 2008

O meu diário com Sofia

Lancei uma provocação à Sofia Galvão e o resultado foi catastrófico. Para mim, claro. Saio ferido e triturado, com sessões de fisioterapia já marcadas no precário e duvidoso serviço nacional de saúde.
Para ser prático comento por pontos o essencial desta veemente, e tão bem argumentada, declaração da Sofia, Não sem um preâmbulo cavalheiresco: se, para que a Sofia pudesse falar livremente, eu tivesse que me calar, fâ-lo-ia. Seria, aliás, uma “win-win situation”: todos ficaríamos a ganhar. A sua voz, Sofia, para além de ser musical, é de participação e idealismo, a minha é a de um aflautado auto-denegrimento, que desemboca na nulidade.
Vamos, então, aos pontos:
1. Regista a Sofia, com agrado, que eu mudei de opinião em 24 horas. De dia dizia que “os elefantes corriam livres na pradaria”, à noite já eu anunciava “que o país está péssimo e as liberdades estremecem, arrepiadas”. Reconheço agora que a mediocridade de estilo não autoriza que se perceba a ironia de ambas as declarações. A partir de agora é pão, pão, queijo, queijo, por que quem não tem competência não se estabelece. Quando eu disser que o pecado cobre o mundo como um manto de opróbio e que sucumbiremos a ferro e enxofre, quero que me levem a sério.
2. Diz a Sofia que já toda a gente percebeu os nossos respectivos argumentos. Reitero só um ponto técnico inultrapassável: não se pode (ou não se deve) construir uma argumentação com premissas erradas. Insisto, para ver se levo a bicicleta: é o caso dos dois casos de que ab ovo surgiu a nossa “metodológica” discórdia.
3. A Sofia defende com exuberância a individualidade dos seus pontos de vista. Mas a verdade é que falamos sempre de algum lugar e “somos” também esse lugar. O meu lugar, por exemplo, é o de um cidadão desconfiado dos aparelhos partidários e descrente, por traumatismos vários, dos méritos da intervenção política. Absurdo e demissionista, mas é o meu lugar. O seu lugar, Sofia, é bem mais construtivo, participante e cívico. Acho legítimo, nada ofensivo e muito menos ainda condicionante que, atendendo ao tema, eu me dirija à integralidade da sua “fala”. Quem sou eu para fraccionar o “eu” público e soberano da minha opositora? O que a Sofia viu como uma tentativa de silenciamento é apenas o reflexo das altas expectativas que tenho no seu discurso, esperando que nunca se reduza à rotina dos “jogos de linguagem” políticos o que, porventura erradamente, me pareceu ser a tentação.
4. Estamos juntos, indestrutivelmente juntos, na defesa da liberdade lúdica (L-L) do “Geração de 60”. Por uma “Geração de 60, L-L” estou capaz de oferecer o peito às balas. E com isto encerro o “meu diário” com Sofia.

Permito-me, agora, alargar o debate. Como todas as discussões, também esta começou por um não-dito. Confesso o meu. Tive de ouvir de muitos amigos de esquerda, durante anos, a cada medida legislativa, a cada privatização de um jornal, a cada licença para rádios e televisão, que o fascismo, como um lobo, estava de volta. Esses gritos de aviso eram manifestamente exagerados e intelectualmente demagógicos.
Agora, os brados de pavor à direita soam-me, mutatis mutandis, a um pouco imaginativo déjà vu. A Imprensa portuguesa está hoje nas mãos de privados. Os diários mais lidos, o semanário e revista mais lidos, a televisão mais vista são privados. A rádio mais ouvida é da Igreja Católica.
Há a RTP e a rádio estatal? Há. Depois de anos de intrumentalização, chegou-se a um modelo construído pela mão direita e pela mão esquerda do Bloco Central. E desde aí quase nada mudou. Quando o PS é oposição queixa-se com amargura do torniquete com que o PSD estrangula a liberdade da RTP, e o PSD quando arredado do poder oferece o mesmo espectáculo: a mesma amargura, os mesmo olhos em alvo. Nomes como os de Marques Mendes e de Arons de Carvalho, para dar só dois exemplos, foram arrastados pela lama, acusados de fazerem alinhamentos de telejornais. A conversa é a mesma e eu declaro que estou farto.
Prefiria que atacassem outros temas. Por exemplo, mandem às urtigas a degradada economia portuguesa e a atitude de um patronato a que, hoje, no “Expresso”, Miguel Sousa Tavares chamou, e cito, ‘chicos espertos’, especialistas em fugir ao Fisco e malbarartar ajudas Europeias. Mostrem-me lá, agora que o Greenspan, depois dos lobos terem papado as ovelhinhas todas, clama em alvoroço que o livre mercado não pode regular-se a si próprio sem a supervisão da Administração (Alan dixit), mostrem-me como é que se constrói o capitalismo rico e farfalhudo, com explosões de produtividade e consumo, que inunda os meus sonhos mais freudianos. Digam-me o que vão ou se deve fazer, não me digam só o que está mal.
Mas há ainda, se quiserem, e para voltar às liberdades informativas em Portugal, um ponto para meditação. Porque é que, não sendo a RTP a estação líder de audiências, a sua informação é hoje a mais vista e consumida pelos portugueses?

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Resposta a Sofia

A democracia acorrentada?
Sacha Dean Byian
Sofia, discordamos mesmo, no que não há mal nenhum e talvez possa haver algum bem. Li aqui e reli mais abaixo - com gosto, aliás - e confesso que não me anima muito rebater as ilações a que a Sofia chega. Ilações que noutro contexto poderia mesmo aplaudir. O que me custa, por uma simples questão de rigor, é que chegue a essas ilações (no essencial, que o PS controla a a RTP e que, de forma premeditada, está a calar conteúdos incómodos) usando como bandeira dois casos cujos contornos materiais estão nos antípodas do que lhes é atribuído.
Poderia vir aqui espantar-me com o facto de PS ou PSD – os dois partidos que legislaram, controlaram, nomearam, e fizeram trinta por uma linha – conseguirem acusar com seriedade senatorial a outra parte como culpada, única culpada e merecedora do fogo do inferno, pelas variadas trapalhadas em que o país está emitido e das quais a RTP não é, certamente, a maior.
Mas não, só me interessa uma coisa pequenina e prosaica – é que o ponto de partida está, na minha pessoalíssima opinião, errado. Se tudo o que a Sofia tem para sustentar a sua tese é a saída dos Gato e a alteração de programação do Contra, então o seu casus belli não tem razão de ser. Atrevo-me a dizer: não há nesses dois “incidentes” nenhuma acção política concertada; não há nesses “acidentes” nenhuma directiva em que a administração da RTP ou o seu actual director tenham feito o triste papel de factótuns. Declaração de interesses: conheço os directores de programas das estações de televisão e sei que, se têm um problema, o problemas deles é conquistar públicos e gerir orçamentos. Posso admirá-los obscenamente ou invejá-los com ressentimento, mas não lhes discuto o profissionalismo.
Não me vou repetir, ou melhor vou: os Gato foram para a SIC com o director de programas que, tendo-os contratado para a RTP, transitou da estação pública para a privada. Julgo mesmo terem feito uma declaração nesse sentido, manifestando empatia (e até gratidão) por quem os tratou bem e lhes proporcionou condições dignas. Mérito desse director.
Para o caso do Contra, a Sofia dá a melhor das explicações, ao mencionar o Daily Show do Jon Stewart. É um sucesso? Sim, no cabo e num canal orientado para um nicho de mercado. Nenhuma estação americana “major” exibe o estimável e irreverente Stewart. Por razões de mercado. No actual quadro em que a RTP opera (do qual o PSD e o PS são responsáveis) e com os objectivos que lhe são definidos, essa é uma das razões (gerar receita para amortizar a dívida, o que julgo vir do ministro Morais Sarmento). A outra é a renovação de conteúdos, reciclando os modelos esgotados, sobretudo quando não chegam longe, nem calam fundo, para usar a contrario expressões da Sofia.
Tire, Sofia, estes casos concretos de cima da mesa e eu nem discuto. Mais, desde que não tenha de ser “engagé”, ofereço-me para estar de acordo: o país está péssimo e as liberdades estremecem, arrepiadas.
Talvez até já nem vivamos em democracia. Só pedia era às tecnocracias partidárias que não nos usurpem a alegria de sermos nós, os que nem o direito de voto nos arrogamos, os primeiros a dizer isto. Caso contrário, ficamos com uma sensação de feira: a do PSD e PS terem o poder de tomar as medidas que nos arruínam e ainda a de terem o privilégio de serem os primeiros a queixar-se delas. Está bem, atirem os foguetes. Mas deixem ao menos sermos nós a apanhar as canas.

Seja como for, e mérito da Sofia, o tema, saboroso e sumarento, gerou enorme adesão. O Joshua, por exemplo, regressou ao nosso convívio. Admirador de ontem, detractor de hoje, está revoltado comigo. Mágoa que exprimiu com alguns sobressaltos gramaticais. Aconselhando-o a reler (para não tresler) os motivos da nossa discórdia, agradeço-lhe os mimos e calo-me já para não lhe coarctar a indignação.

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sexta-feira, 24 de outubro de 2008

A chegada do Magalhães

Investigadores portugueses da Universidade Independente descobriram recentemente que o primeiro lugar do continente americano visitado por Magalhães, o famoso navegador português que realizou a primeira vagem de circunavegação do globo terrestre, não foi, como até aqui se pensava, o Rio de Janeiro, mas a Venezuela. O Geração de 60 teve acesso a uma gravura da época, que aqui se reproduz.

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Blue Memories


Em 1982, no Parque Palmela no Estoril, assisti ao meu primeiro concerto de jazz. Não recordo o “line-up” (tinha 13 ou 14 anos e penso que ouvia menos jazz e mais Ramones) mas recordo bem a excitação do momento, a música de uma linha decididamente não linear e o facto de os músicos serem todos negros. O ambiente em 82 era seguramente diferente daquele de forte contestação que caracterizara o Cascais Jazz nos anos 70. Pelas densas nuvens de fumo que recordo no ar, o publico parecia mais interessado na qualidade da marijuana e menos em levantar o punho para protestar contra as garras da opressão (e’ famoso o episodio em que o baixista Charlie Haden teria sido preso pela PIDE-DGS depois de dedicar um dos seus temas ao movimento de independência de Angola durante a edição de 1971 do dito festival).

Uns anos mais tarde, em 87, recordo um notável concerto de Jan Garbarek com Nana de Vasconcelos e Eberhard Weber no auditório ao ar livre da Gulbenkian, num muito quente mês de Agosto. Recordo os frios ecos nórdicos do sax alto de Garbarek fundirem-se nos ritmos mirabolantes de Nana de Vasconcelos, tudo temperado pelo grave e celestial violoncelo de Weber (um grande elfo, vestido e iluminado de branco). Um pormenor: Ao longo do concerto, Nana de Vasconcelos foi combinando com intenção e humor o som dos seus vários instrumentos de percussão com o ruído do passar dos aviões sobre a Praça de Espanha (saudando estes últimos possivelmente em rota para o Brasil).

Em 91 fui ver, ouvir e prestar vassalagem ao grande Miles Davis no velho Coliseu dos Recreios poucos meses antes de este ultimo grande maestro se retirar definitivamente para “Birdheaven” (e um dos últimos concertos que vi em Portugal). Recordo a surdina penetrante e expressiva de Miles acompanhado por uma jovem secção rítmica absolutamente estonteante. Recordo o recorte luminoso do seu vulto, vestindo um colete lilás “glam” a tocar curvado e de costas para o público. Recordo também que não proferiu mais de duas ou três palavras durante as duas horas de concerto, apresentando os músicos levantando ele mesmo cartazes com os seus nomes escritos. Recordo que saiu sem agradecer.

Tudo isto para poder assinalar que em Marco do próximo ano, “Kind of Blue” comemora meio século de idade. Gravado numa igreja desconsagrada de Nova Iorque por um Miles em plena fase de metamorfose, e na companhia de uma extraordinária banda composta por músicos como Coltrane, Cannonball Adderley, Bill Evans (o único branco da banda que Miles ironicamente apelidava de Rosto Pálido), Paul Chamber, Billy Cobb e Wynton Kelly, “Kind of Blue” e’ hoje, para além do mais vendido disco de Jazz (10 milhões de copias), talvez o mais importante e determinante jamais feito. Abandonando a ja’ por si radical característica modal do Jazz clássico, em “Kind of Blue”, Miles e Coltrane abrem definitivamente as portas para a livre improvisação e para o despoletar daquilo que viria a ser uma nova ordem musical, infinitamente rica, livre e primitiva. Para celebrar o aniversario, a Columbia Legacy publica um cofre com um cd duplo, um dvd, um poster e um livro de 60 páginas com um texto sobre a história do disco e da sua gravação. Recomenda-se seguramente.

PS: Este fim-de-semana estou em Nova Iorque e tentarei passar no “Smalls”, tão famoso como minúsculo antro de Jazz onde músicos anónimos (ou não) se encontram e improvisam na tradição dos grandes mitos de “Kind of Blue”.

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quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Um país sem elefantes




Certeiro o post da Sofia. E o que acontece a um país em que os elefantes não se podem reproduzir livremente? Vão até aqui e descubram

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Se um elefante incomoda muita gente…


Sempre entendi a política como coisa séria. Para ser levada a sério. E tratada com seriedade.

Mas foi vingando a ideia de que o sério é chato. E, na busca de uma política apelativa, a modernidade mediática trouxe soluções: o debate vestiu a cor do circo e a crítica acantonou-se no humor.

É claro que não vinha mal ao mundo da existência de tais produtos – aliás, em voga aquém e além-fronteiras.. O problema sempre foi – como sempre seria – o exclusivo. Houvesse outros meios de aceder à discussão, de aprofundar argumentos e de desenvolver o contraditório e nada de mais grave ocorreria.

Sucedeu, no entanto, que a graça feita para ser ligeira e inconsequente acabou por, à falta de registo sério, passar a ser o seu contrário. A inconsequência tornou-se profundamente consequente e promoveu uma efectiva corrosão no espaço público.

O efeito foi exponencial. Tipicamente, não seria possível resistir: não há regras, não há armas, não há defesa. Um boneco menos simpático, uma graçola mais pesada e o destino fica escrito.

Para o poder, o jogo é tentador. Mas arriscado. Num primeiro momento, pode ser muito eficaz. No que diz, no que não diz, no que distrai. Porém, com o tempo, é muito provavelmente devastador.

O fim de carreira do “Gato Fedorento” na RTP foi sinal eloquente dessa percepção. Aliás, como tal não escapando aos mais desatentos. Por isso, muito mais subtil e certeiro, foi o discreto desaparecimento do “Contra-Informação”. De um dia para o outro, sem aviso, sem alarde. Vítimas do seu sucesso: qual bobos da corte que exorbitaram. Agastando o poder, tornaram-se incómodos - logo, dispensáveis.

Poder avisado, este que temos. E perigoso, cada vez mais perigoso.

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quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Islândia

Rui Ramos, um colunista que sem dúvida vale a pena ler - e comentar - de vez em quando, tem hoje no "Público" um artigo sobre o que aconteceu recentemente na Islândia com um argumento interessante e curioso. Não posso fazer um link porque o texto não é acessível a não assinantes (fica aqui o apelo para acabar com essa limitação de acesso que não deve ser vantajosa para ninguém, nem sequer para as contas do jornal em causa). Ainda não li nada com atenção que explicasse bem o que se passou na Islândia mas, pelo pouco que percebi, parece que, fundamentalmente, atraíram capital a mais que agora saiu. Esse capital foi absorvido pelos islandeses por dívidas cujos juros não conseguem agora pagar na totalidade. Para Ramos tratou-se de uma participação intensa nos fluxos económicos e financeiros internacionais. Uma conclusão sem dúvida correcta. Só que ele conclui ainda o seguinte: o episódio acabou mal mas o que interessa é que tenha acontecido. Ou seja, o que interessa é o "modelo" seguido, independentemente dos resultados. Um argumento curioso, mas seguramente interessante.

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Outra história triste


Aos pés da cama

Ela pediu-lhe para pôr um disco. KD Lang.
Ele também queria música. Qualquer coisa para abafar os gritos dados por um coração que nada sentia sem amor.
- “É o máximo não achas?”
- “Acho”, respondeu sem sentir.
Foi uma noite bêbada em que o álcool mandou às urtigas a repugnância que lhe dava o seu riso ordinário.
Mais tarde, sóbrio, a repugnância abraçou-se à vergonha.
Hoje o disco lembra-lhe uma promessa que fez e não cumpriu. Uma promessa de amor.
Naquela noite, a solidão passou-lhe à frente. Beijou-a e, triste, descalçou o amor aos pés da cama.

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Uma história triste




Sou um vagabundo sem cão.
À noite não tenho o pêlo quente de um qualquer rafeiro doente
(para me aquecer).
Bato o dente e tenho medo de toda esta gente que passa ao pé de mim.
Tremo as pernas tremendas de varizes de rondas infinitas pela cidade onde morro.
Estou em vias de extinção – e o não ter cão só me alarga a solidão que me faz minguar a alma.
Não acordo amanhã.

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terça-feira, 21 de outubro de 2008

A Apatia Sexual dos Factos

Jorg Immendorf, Solo

Tinha de escrever a crónica habitual para o Pnet Homem e não tinha tema. O tempo, implacável, escasseava.
Consolei-me com o facto de não ser o primeiro a quem isso acontece. Há quem me diga, e eu também já tenho dito, que a melhor fonte de inspiração é a realidade. Acredito e até dou exemplos:
Thomas Mann só escreveu “Morte em Veneza” porque o compositor Gustav Mahler lhe serviu de modelo para o ascético herói do seu romance. A mulher de Mann não desmente, mas sempre acrescenta que a impressão causada por um rapazinho de 13 anos – “era tremendamente atractivo e o meu marido não deixava de olhar para ele”, comentou – poderá ter sido outra realíssima razão.
Já leram, está claro, o “Last Tycoon”, de Scott Fitzgerald. Não julguem que o personagem saiu armado da cabeça demiúrgica do romancista. Em boa verdade, Monroe Stahr é a literária cara chapada de Irving Thalberg, o mais poderoso dos produtores de Hollywood dos anos 20 e 30, casado com a actriz Norma Shearer. Aliás, bem casado, quanto mais não seja porque a morte de Thalberg, por pneumonia, aos 37 anos, evitou as canónicas trapalhadas domésticas que o meio cinéfilo, volátil e tão rotativo, em geral proporciona.
Por vezes, a realidade é até mais imaginativa do que o seu espelho ficcional. O Capitão Ahab, do genial “Moby Dick” de Melville, foi decalcado dos infortúnios e tormentos de um marinheiro de carne e osso, Owen Chase de sua graça. O barco de Owen foi afundado por uma baleia. O marinheiro andou à deriva 91 dias num bote e sobreviveu alimentando-se (ahrrggg!) do cadáver de um companheiro.
E já que estou com um pé na água, recordo que Robinson Crusoe é a reprodução ficcional de uma outro marinheiro despejado numa ilha deserta do Pacífico, depois de contestar as condições do seu navio. Alexander Selkirk, o marujo recalcitrante, passou quatro anos e quatro meses solitários na ilha. Contou as suas agruras comportamentais, e consequentes delícias espirituais, a Daniel Defoe e o resultado foi uma das mais exaltantes e lendárias aventuras que nos foi dado ler. Sobretudo se tivermos em conta que, em boa verdade, não há mulheres na história e que a apatia sexual do herói não se recomenda a ninguém.
Pois, pois. Eu bem olhei para a realidade circundante. Para a cara mumificada da crise bolsista. Para a vulcânica erupção eleitoral dos Açores. Para a enxurrada obsoleta de Sete Rios. A crueza dos citados eventos é inapelável e indesmentível. Mas não me inspira: a apatia sexual destes factos ultrapassa a do eremítico Crusoe.
Não fossem os livros e eu não tinha crónica. Quando a jovem realidade não ajuda, valha-nos a velha literatura.

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segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Flash Gordon ?




A revista Time desta semana chama à capa a importância do temperamento dos políticos no momento da sua eleição e, depois, na acção concreta. Distingue temperamento de carácter - o que não é mau - mas reforça o clima de «sensações efémeras que determinam» que se vive na política, como no consumo, no século XXI Ocidental.
No mesmo sentido, intitula o artigo sobre o Primeiro-Ministro britânico com «Flash Gordon», como se um instante inspirador e/ou milaculoso tivesse ditado o plano de Gordon Browm.
O texto começa com a máxima de Churchill «Everyone has his day, and some days last longer than others» reforçando novamente a ideia de «um acaso consequente».
Ora agradecemos ao Senhor Brown apenas o facto de ter salvo a economia global. Não por estar na hora certa, no lugar certo. Mas por ser o homem certo que muitos tardaram em reconhecer.

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Avaliar a avaliação?


Sempre fui favorável a mais e melhor avaliação na administração pública. Em principio, avaliar permite diferenciar e premiar os melhores. Avaliar permite, igualmente, estabelecer prioridades no trabalho da administração pública ao identificar os objectivos desejados e pela cuja prossecução os funcionários serão premiados. Por estas razões foi com interesse e alguma simpatia que ouvi falar do novo sistema de avaliação da administração pública.

Não conheço o sistema em detalhe mas, infelizmente, o primeiro exemplo da sua aplicação de que acabo de tomar conhecimento é um exemplo de como a avaliação pode ser negativa se as prioridades não são bem definidas. Um dos objectivos que é estabelecido para, pelo menos, algumas das entidades administrativas (no caso concreto, consulados) é a redução dos custos de telecomunicações (presumo que os directores ou cônsules que o serão "premiados" na avaliação). À primeira vista tal pode parecer natural e mesmo desejável. O problema, é que o incentivo promovido por este critério de avaliação contraria uma outra prioridade política definida pelo Estado: a desmaterialização da administração e a prestação de serviços ao cidadão e entre administrações através da internet. No caso dos consulados (foi aquele que me chegou aos ouvidos) tem existido uma política muito positiva de aumento dos serviços prestados por via electrónica: certidões, registos, passaportes e o futuro cartão do cidadão podem crescentemente ser obtidos nos consulados através de plataformas electrónicas que contactam directamente com as bases de dados em Portugal. Sucede que a oferta crescente destes serviços depende das comunicações electrónicas. A largura de banda necessária para um consulado ter um email não é a mesma que é exigida para poder prestar estes serviços… Quanto maior o número de serviços a prestar por via electrónica maior o custo em telecomunicações que o Estado terá de suportar (e que se poupa na redução dos serviços fixos).

O Estado promove assim duas políticas contraditórias: se os funcionários quiserem ser bem avaliados têm de agir de forma a reduzir as condições necessárias a prestar os novos serviços pretendidos pelo Estado… Isto não é avaliação mas sim descoordenação! .

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Processar Deus

Alguém se lembrou de processar Deus. A acção foi considerada inadmissível por não ser possível garantir os direitos de defesa (Deus não tem morada conhecida…, ver aqui). Não foi a primeira vez que tal sucedeu: já houve até quem invocasse uma violação de contrato (oração em troca de vantagens materiais…). Não parece é que Deus alguma vez tenha processado algum ser humano por danos à sua imagem… e ocasiões não faltam!
Já agora, para aqueles que acham que o mundo do Direito não pode ser divertido aproveito para vos aconselhar a leitura deste artigo no Times sobre 20 dos mais estranhos processos jurídicos… Se conhecerem outros digam.

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LIBERO NELL'ARIA

Seguindo as pistas musicais de M.S. Fonseca mas desta vez directamente do país de origem de tantos desses velhos (e novos) mitos, aqui deixo um tema de Sergio Cammariere.

Suficientemente “jazzistico” para se poder descrever como um verdadeiro Compositor, introduz no entanto na sua musica “un pizzico” de tonalidades festivaleiras e uma voz quente e redonda que fazem de Cammariere um musico muitíssimo original e um dos meus favoritos em Itália. Ao trompete e já colaborador de Cammariere em vários dos seus projectos, Fabrizio Bosso, um talento emergente do Jazz italiano e um musico que conheci o ano passado em concerto, sobre o palco do discreto mas mitológico Conservatório Giuseppe Verdi em Milão.

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domingo, 19 de outubro de 2008

Pentimento: "A Pianista" e a reprodução da violência

Andava há anos para o ver mas, por alguma razão, nunca calhou. Arrumei a questão como sempre faço quando estou desesperado: comprei-o em Espanha (dvdgo-com, aconselho sonoramente).
"A Pianista" é o mais célebre capítulo do austríaco Michael Haneke - tinha visto todos os seus filmes, mesmo os obscuros como "O Sétimo Continente" e "Benny's Video", excepto este - na abordagem de um tema central à melhor compreensão da natureza humana: o papel da animalidade no tecido biológico, mental e social da espécie.


O ponto de vista de Haneke é claro, e a forma como o repete, diversificando, em cada filme é tremendamente eficaz: a fronteira entre civilização e barbárie depende, apenas e só, das circunstâncias, e essas circunstâncias não são excepcionais. Pelo contrário: nas suas diversas modulações, surgem com frequência no quotidiano.
Em "A Pianista", a linha ténue rompe-se quando uma professora de piano vienense (interpretada por Isabelle Huppert na sua habitual palidez assombratória), quarenta anos atormentados por uma mãe possessiva, hiper-controladora, no limite da intromissão sexual (uma repelente e extraordinária Annie Girardot) conhece um wunderkind musical (Benoit Magimel com melenas de nazi), apaixonando-se. Num tabuleiro de desiquilíbrio entre "nature" e "nurture", a pianista é uma sado-masoquista nos intervalos das aulas, capaz de cheirar Kleenexes usados em peep-shows e auto-mutilar-se no sexo com uma lâmina de barbear.
Parece um filme de terror, e é, mas pelos sinais interiores de "normalidade", não pelos efeitos exteriores de "anormalidade": Huppert, à sua maneira, quer ser amada por Magimel, mas este não compreende (é natural...) uma mulher que vomita quando tenta fazer amor com ele no vestiário masculino de um ringue de gelo, e a resposta do amante à solicitação de violência é infligir mais violência do que mesmo o sado-masoquismo da pianista pode suportar.
Michael Haneke é desde há muito, na minha opinião, um dos raros cineastas do futuro (não os chamo de "modernos" porque estaria a acusá-los de antiguidade, e não os chamo de "pós-modernos" porque seria frivolizar a sua importância), capaz de pensar o que está por trás da cortina do nosso complexo descontentamento. Cronenberg ocupa-se da relação entre mente, corpo e tecnologia, David Lynch da luta - muitas vezes sangrenta - entre consciente e inconsciente, Chris Marker dos eternos reequilíbrios entre tempo e memória, Claire Denis da batalha ritualista entre o mundo físico e a carapaça cultural. Haneke tem passado os últimos 20 anos a construir um monumento pessimista, por vezes inclemente, à ilusão do tecido sócio-cultural como uniforme protector dos mais ferozes instintos, não apenas de sobrevivência, mas de destruição. O homem é o mais violento bicho de todos porque é o mais eficaz a dissimular essa violência, diz Haneke, numa gramática que não exclui, por vezes, uma poesia que corre riscos sérios de se tornar niilista (o que nos levaria a outro texto).
Mas há uma questão formal que Haneke sempre compreendeu, do vício apocalíptico de "O Tempo do Lobo" à psicopatia de "Funny Games", do desespero comunicacional de "Code Inconnu" à obra-prima "Caché", onde o voyeurismo ganha a urgência de todas as cicatrizes infantis: a melhor forma de reproduzir a realidade da violência é evitar o jogo rítmico e simulatório da montagem.
Assim como o grande - e subestimado - John Boorman compreendeu que a melhor forma de traçar a distância emocional entre duas personagens é separá-las fisicamente no mesmo plano (daí Boorman, de "Deliverance" a "A Floresta Esmeralda", recorrer tanto ao Cinemascope), Haneke percebeu que a forma mais justa de retratar a violência é não cortar o plano onde ela ocorre. É também o que faz, em certa medida, Cronenberg em "Uma História de Violência" e "Promessas Perigosas". Olhe-se para a cena da sauna neste último: a força - e honestidade - da sequência decorre duma utilização cuidadoamente austera da montagem. Cronenberg leva os planos-chave ao limite, entregando-nos uma percepção da violência próxima do tempo real, onde as pessoas realmente sangram, e onde esse sangue pode levá-las à morte lenta.
Claro que Hawks já o tinha percebido, mas há quem o faça, paradoxalmente, para criar efeito: Tarantino, por exemplo, fá-lo repetidamente (vejam-se as famosas cenas do corte da orelha de "Cães Danados" e da violação em "Pulp Fiction"). Haneke não: ele assume as consequências morais de não de recorrer à montagem, de não desviar o olhar, de aguentar o plano. É uma opção terrível, e aflitiva nas mãos erradas. Tem pelo menos uma vantagem: não dessensibiliza a violência aos olhos do espectador, transformando a agressividade e o sofrimento (veja-se "Armageddon" e as milhares de fita com vigilantes invencíveis) no último jogo de plataformas para a "Playstation Portable".
Para além das questões existenciais, é essa a grande importância contemporânea de realizadores como Haneke. Há quem lhe chame perigoso.

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Small Town America




A «small town America» de Capra é feita de valores simples mas saudáveis, de um populismo básico mas inofensivo, de Deuses e de anjos de rosto humano (não há anjo mais humano do que o Clarence de «It's a wonderful life»), de gente excepcional por força de ser tão normal.

A «small town America» de Sarah Palin é feita de arrogância intolerante, de valores inquestionáveis, de uma religiosidade fanática, de Deuses e de anjos castigadores, de gente de uma «normalidade» perigosa de tão medíocre.

Não sei se foi a América que mudou, se a America de Palin é o reverso da America de Capra, se a diferença é a que sempre existiu entre a realidade e a ficção.
Seja como for, acordei com saudades de Capra.

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sábado, 18 de outubro de 2008

Petição patriótica

Visto e ouvido o que tenho visto e ouvido, julgo que estão reunidas as condições para uma reabilitação da Dona Branca. Proponho que se lance uma petição patriótica.

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Era Uma Vez Uma Canção, parte 3

O meu grau de incumprimento de promessas já vai demasiado pesado para que não pague pelo menos uma, aqui e agora. Prometi lá mais abaixo, e continuei logo acima, uma série de 3 posts sobre uma canção. Falta um, omissão de que já fui simpaticamente acusado noutro lugar. Vamos lá, então, ao clímax.
A única versão contemporânea de “Sway” a que me rendo sem reservas é a de Peter Cincotti. Século XXI puro, muito longe já da simplicidade do mambo original, o saudoso “Quien Será”, escrito por Pedro Beltrán Ruiz, este “Sway” de Cincotti, mesmo sendo cantado por um americano com a mesma ascendência italiana de Dean Martin (Dino Paul Crocetti era a sua graça baptismal), já não tem os ecos latinos que deambulavam pela versão dos anos 50.
Gosto do tempo que Cincotti, um nova-iorquino de 25 anos, encontrou. Há, nesse tempo, uma certa resignação zen à lentidão. E ainda gosto mais do silêncios a que Cincotti se entrega com a serenidade de uma carmelita.
Muito mais jazzy do que cha-cha-cha, o “Sway” de Cincotti é muito diferente do “Sway” de Dean Martin. O “Sway” de Cincotti quase ignora os violinos do velho crooner dos anos 50. Agora, no século XXI, piano e contrabaixo levam-nos e deixam-se levar. Livres, muito livres, até encontrarem a linha melódica que denuncia as origens. É, e continuará a ser, uma canção de desejo, a canção que qualquer homem quer cantar à única mulher que não é uma mulher qualquer. Mas o desejo do “Sway” de Cincotti já não é o desejo do “Sway” de Dean Martin. Sim, são as mesmas palavras, mas é outro, e tão, tão diferente, sotaque. Recapitulemos.



O sotaque de Cincotti


Os ecos latinos de Dean Martin



O saudoso "Quien Será" de Beltrán

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sexta-feira, 17 de outubro de 2008

They can't censor the gleam in my eye

Gee, that's swell, honey.
Resposta a desafio lançado aqui!

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O drama e abjecção do capitalismo

Eu acho o capitalismo uma coisa abjecta, dramática mesmo, essa coisa de uma economia de mercado, de haver empresas, de sítios para trabalhar, e tudo o mais.

Então, nos idos de sessenta, as pessoas saíam de Portugal aos milhares, de aldeias sem água canalizada, sem electricidade, sem esgotos, onde andavam descalças, onde passavam fome, e desembarcavam no Canadá, nos EUA, e íam viver para casas com casa de banho, com electricidade e aquecimento, onde o salário de uma mulher a fazer limpezas sustentava uma família inteira, enquanto o salário maior, o do marido, vinha incólome para Portugal?
É abjecto, porque uns foram e os outros não, não houve igualdade nenhuma. Para mais, muitos dos que foram enriqueceram, fazendo limpezas, trabalhando na construção civil, ou seja, enriqueceram com o produto do seu trabalho.

Então, mas não se está mesmo a ver que é errado? Que aquilo não servia, que é moralmente injusto? E que dizer quando hoje uma mulher nos EUA, com escassa instrução, ganha a arranjar unhas e a dar aulas de substituição, mais do que um doutor em Portugal? Eu tendo a achar dramático.

Se toda esta gente fosse um bocadinho mais politizada, teria percebido que o que era correcto era terem ido daqui para Moscovo, que era assim mais parecido com Portugal, mas ligeiramente pior e em versão gelada.

Penso que teria valido a pena alguém lhes explicar que aquilo parecia pior do que era, porque o pensamento de Marx estava todo lá, algo adulterado, mas estava lá, o que era moralmente muito reconfortante.

Mas não, desataram todos a emigrar para países profundamente capitalistas, por consequência, valorizam a iniciativa privada, a capacidade de trabalho e a possibilidade de sustentar uma família, deve ser por isso que nunca conheci um emigrante português comunista.

E para conforto moral, parece-me que lhes chega uns dias de Agosto em Portugal.

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Contra factos, espero argumentos



Lisboa merece que abram espaços verdes ao público como os 43 ha da Quinta das Conchas e dos Lilases no Lumiar e no Arco do Cego (onde estava um terminal rodoviário); Lisboa precisa de reabilitar o edificado, como na Rua da Madalena e em São Bento, exemplos da inversão da tendência um pouco por toda a cidade - da nova contrução para a recuperação do edificado antigo; Lisboa pede bairros históricos fechados ao trânsito como Bairro Alto, Alfama, Santa Catarina e Bica; os nossos monumentos ganham em ser restaurados como as igrejas de Santa Catarina, Menino de Deus, Mártires, São Nicolau, Encarnação e Conceição ou a Sinagoga do Rato; Lisboa requer parques de estacionamento para os moradores no centro como Santos, Calçada do Combro, Portas do Sol, São Bento, Praça de Londres etc; Monsanto é entregue às famílias como um espaço seguro e equipado para desporto e recreio; os grandes arquitectos internacionais, como Norman Foster, Jean Nouvel e Frank Ghery, podem assinar obras em Lisboa atraindo à Capital o cosmopolitismo para que está vocacionada; os ciganos do gueto do Vale do Forno também têm direito a casas; o Tribunal de Contas recocnhece a recuperação das contas da CML (entre 2002-05)apesar na Lei das Finanças Locais de 2002 impedir novos empréstimos, apesar dos imperativos que excluem Lisboa e Vale do Tejo de benefícios europeus e, ainda, apesar do rombo deixado pela governação socialista na dívida da CML à Expo; Lisboa deve conduzir a união das cidades capitais que falam português com obras significativas que construam no terreno um novo universalismo lusófono; Lisboa pode receber com competência eventos internacionais como o Paris Dakar, o Rock in Rio, o Euro 2004, a Experimenta Design etc; Lisboa é obrigada a desenvolver uma vida de bairro com carrinhas LX-porta-a-porta para os que menos podem andar, com sete novas piscinas municipais e quatro mercados integralmente recuperados; Lisboa precisa de ver desenhados com qualidade os espaços imensos de Alcântara e do aterro da Belavista.
Tudo isto - e mais, que em cima da hora não consigo lembrar-me - foi feito em apenas 3 anos por Pedro Santana Lopes. Digam o que disserem, tudo isto foi mesmo feito com uma determinação, visão e consequência a que Carmona e Costa não corresponderam.
Contra estes factos, espero argumentos.

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Marx voltou a estar na moda

O meu último post, a propósito da crise, acabava assim: «Já ninguém deve ter ilusões: o século XXI será de novo um século de crises, de história e de ideologias. Para o bem e para o mal. Ora, o mal já aí está (nomeadamente a associação totalitária entre políticos e capitalistas). Cabe-nos agora preparar o bem.»
Pois ontem atiraram-me para dentro do carro um jornal, onde, a páginas tantas (Global, 16 de Outubro de 2008, pág. 15), podia ler-se um artigo intitulado: «Karl Marx voltou a estar na moda».

Reza assim: «As vendas de “O Capital”, a obra maior de Karl Marx, estão “claramente a aumentar”, disse Jörn Schütrumpf, da editora Karl-Dietz-Verlag, informou a AFP. “Marx está de novo na moda e a procura das suas obras em alta”, explicou Schütrumpf ao jornal Neue Ruhr Neue Rheinzeitung. Segundo a editora, o primeiro tomo de “O Capital” já vendeu este ano 1500 exemplares, contra 500 em 2005, e as vendas vão continuar a aumentar, assegurou o editor. Os leitores pertencem a “uma nova geração de eruditos que reconheceu que as promessas neo-liberais não se realizaram”, sublinhou. O próprio ministro alemão das Finanças, Peer Steinbrück, fez uma referência a Marx: “Certas partes da teoria não são assim tão falsas”, como a que se refere à autodestruição do capitalismo por causa da sua avidez, disse ao Der Spiegel

Não concordo com esta interpretação supostamente transmitida pelo ministro das Finanças alemão, como com muitas outras que certamente se vão seguir. A releitura de Marx, também por isso, será hoje muito importante. Sem ela não se poderá distinguir o trigo do joio na doutrina marxista, crítica que o século XX nos deixou para fazer. É, assim, uma das primeiras boas notícias que decorre da actual crise: não a queda final do capitalismo, como alguns imprudentemente quererão sustentar, mas o regresso da diferença ideológica ao pensamento e à prática política, indispensável, no nosso mundo, para a existência da democracia.

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quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Elogio dos blogues

O Dr.Pinto Balsemão fez hoje um elogio público aos blogues - foi na conferência da ERC sobre Regulação na Gulbenkian, nas barbas do Dr. Azeredo Lopes.

Pela parte que me toca, muito obrigada.

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Xavi, o anti-Ronaldo


Sem querer insistir muito no mundo da bola, depois de uma breve (e recente) análise às características de Carlos Queiroz, intitulada “Um outro Mamede” (na mouche, como se provou no jogo com a Albânia), não resisto a mais uma, também breve e certamente pessoal, sobre a estrela maior do nosso firmamento, o prodígio Ronaldo.



“Não estou muito preocupado (com ser candidato ao troféu de melhor jogador do mundo). Para mim é um privilégio estar entre estes nomes de grandes jogadores, mas sempre defendi que o futebol é um jogo colectivo e este tipo de prémios são secundários”.

O autor destas palavras é Xavi, médio do Barcelona e da selecção espanhola, que no último europeu foi justamente considerado o melhor jogador. Um europeu no qual, recorde-se, também a Espanha foi uma justíssima vencedora.

O mesmo Xavi diz ainda que o mais importante este ano é fazer “uma grande época no Barcelona e que a selecção se qualifique para o campeonato do mundo. A partir daí os prémios individuais vão aparecendo. Não estávamos a falar de espanhóis (vários deles candidatos ao titulo de melhor do mundo) se não tivéssemos conquistado o título europeu”.

É interessante ver como Xavi parte da importância prioritária do sucesso colectivo para chegar aos títulos individuais (que considera secundários). Interessante e elucidativo, especialmente quando comparado com o nosso Cristiano.

Para o CR7 ser o nomeado Bola de Ouro parece ser o objectivo número 1 e a glória que verdadeiramente prossegue.

Enquanto Ronaldo quer ser eleito o melhor do mundo, Xavi quer ser campeão do mundo. “It’s a world apart” e uma forma totalmente oposta de viver o desporto (e a vida).

Um trabalha para ser um one man show; o outro para integrar um dream team. Um desenvolve a técnica individual como forma de se exibir e maravilhar (sempre em nome próprio), o outro trabalha a táctica como forma de melhor servir o colectivo (e elevar o nome do seu país).

Não percebo a braçadeira de capitão no braço de Cristiano.







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Yearbook Myself - JP Ramone


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Da Visão: o sacrifício de Lisboa

Who wants you?

No meio da crise financeira que abala o Mundo o mais provável é que a anunciada candidatura de Santana Lopes à Câmara Municipal de Lisboa, não comova nem o menino Jesus. E convenhamos que há, de facto, assuntos mais urgentes para nos ocupar a todos. Não obstante, vale a pena tirar deste facto algumas ilações sobre o estado do PSD.
Primeira ilação: o PSD aposta na falta de memória do eleitorado de Lisboa. Recordemos os factos: num gesto bem elucidativo da sua dedicação à cidade, Pedro Santana Lopes abandonou a Câmara em 2004 para dirigir, senão o pior, seguramente um dos piores governos que os portugueses conheceram no pós-25 de Abril. «Dispensado» pelas razões que se conhecem, recusou-se a encarar a realidade e foi esmagado nas urnas nas eleições legislativas, voltando a ocupar fugazmente o cargo de Presidente da Câmara numa penosa demonstração de apego ao poder que só muito dificilmente alguém poderá ter esquecido.
Não há mortes em política e Pedro Santana Lopes tem todo o direito a querer renascer das cinzas. Mas o facto do PSD o propor para «atacar» a Câmara de Lisboa não pode ter duas interpretações: o partido passou um atestado de menoridade aos cidadãos de Lisboa. Esperemos pela volta do correio.
Segunda ilação: o PSD «borrifa-se» na cidade de Lisboa. Ninguém de bom senso acreditará que a Dr.ª Ferreira Leite acordou subitamente para os méritos governativos de Pedro Santana Lopes. Ninguém acreditará que, generosa, esqueceu a sua passagem desastrosa pelo governo e a sua liderança errática da Câmara de Lisboa. Muito menos alguém acreditará que a Dr.ª Ferreira Leite está verdadeiramente convencida de que, para Santana Lopes, a Câmara é um fim em si mesmo, por oposição a um trampolim para mais e maiores voos políticos.
Não há anjinhos em política. E a Dr.ª Ferreira Leite tem todo o direito de decidir sacrificar Lisboa para tirar o incómodo Dr. Lopes do seu caminho. Mas mais uma vez não há aqui duas leituras possíveis: para o PSD a corrida por Lisboa é um instrumento de política interna. Esperemos, repito, pela volta do correio.
Terceira e última ilação: no PSD, por muito que se tente, não se vislumbra a sombra de uma verdadeira liderança. Pode até fazer-se, como sugeri acima, uma leitura perversa do processo de escolha do candidato do partido à Câmara Municipal de Lisboa. É bem possível que a direcção do partido veja em Santana Lopes uma opção que reputa de duplamente cómoda: se ganhar Lisboa, ganha o PSD; se perder Lisboa, perde Santana. Mas por muito sofisticadas que sejam as leituras, por muito maquiavélicas que sejam as jogadas, não vale a pena tapar o sol com uma peneira: a candidatura de Santana é uma tremenda cedência de Ferreira Leite à sua oposição interna. De tal forma tremenda, de tal forma estrondosa que, mais uma vez, não abre espaço a interpretações diversas: quem não consegue pôr ordem em sua própria casa não pode esperar que nela confiem para pôr ordem no país.
PS: escrevo ainda antes da reunião da Comissão Política do PSD que supostamente confirmará a candidatura de Santana Lopes. Pode portanto ainda acontecer que o bom senso prevaleça. Se tal suceder, é com gosto que engolirei as minhas próprias palavras.

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quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Amor ao Liberalismo

Há duas formas de mandar um filho estudar na Universidade, quando a Universidade fica a 130 km de casa.

Uma, é, em 1990, chamar uma filha, com 18 anos, que nunca viveu fora de casa e perguntar-lhe: " - Quanto é que queres por mês?"
" - Casa X, alimentação Y, livros, deslocações, passe,60 contos".
" - Muito bem, serão 60 contos. Não me interessa se vives num palácio, ou debaixo da ponte, se gastas tudo numa semana ou num mês."

Quando se dá uma mensalidade a um jovem, para gerir com total liberdade, e em troca se pede uma licenciatura tirada com brio, muitas coisas podem suceder.

Para começar, o mais certo é fazer umas quantas asneiras. Gastar o dinheiro todo na primeira metade do mês, por exemplo. Em consequência, andar de trólei sem pagar, sem picar bilhete. Estragar cabines telefónicas a empurrar os cartões que já não têm crédito. Levantar a janela do quarto e entrar furtivamente na arrumação do restaurante do r/c para roubar umas garrafas de Grão Vasco que ficavam mesmo bem com a panela de feijoada para a malta.

Com o tempo, arte e engenho, também pode dar-se o caso de começarmos a pensar que já que a mesada não vai mesmo aumentar e que aconteça o que acontecer vai permanecer a mesma, sempre poderíamos pensar na melhor maneira de poupar uns tostões. Primeira medida, escolher uma casa mais barata. Vender livros usados, vender apontamentos, dar explicações, andar a pé, dividir contas até ao tostão, comprar roupa nos saldos da Zara. No final do mês ainda pode ser que sobre algum dinheiro para uma extravagância, ou para guardar para uma viagem.

A outra modalidade é diferente: espartilham-se as despesas. Casa, tanto. Alimentação, outro tanto, transportes, o mesmo, e outro tanto ainda para os livros. " - Oh pai, a casa está mais cara. É mês de livros, agora foi o passe que aumentou. "

Pois foi, pois é. E vai ser sempre.

Acredito em bom rigor que nesta modalidade, mais controlada e supervisionada, não se chegue ao extremo de tanta imprudência e asneira, ilícitos até, da primeira modalidade. Nem há necessidade disso, porque tudo está pensado, previsto e devidamente acautelado. Presumo, pelo muito que vi, que estas pessoas achem que os pais tinham a obrigação de lhes dar aquilo tudo, achando simplesmente que tinham esse direito.

Parece-me até que vão passar o resto da vida a fazer exigências, sem perceber que o tempo da faculdade já passou. E quando as coisas lhes correrem mal, até clamarão, por tudo e por nada, pelo sacrossanto princípio da igualdade.

Por mim, só concebo a vida de uma forma: a maior liberdade, com a maior responsabilidade. Ser livre de actuar e ser severamente responsabilizado, julgado e punido pelos meus actos, se for o caso.

Seja como for, espero que o dono do restaurante "Safari", na Rua dos Combatentes em Coimbra, não leia blogs. Mas se ler, sim senhor fomos mesmo nós, as quatro estudantes daquele T1, quarto e sala com 50 m2.

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Palin as President

A sugestão é do Táxi. E vale a pena.

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Santana Lopes

Há algum papel que eu possa assinar para pedir que Santana Lopes não seja o candidato do PSD à presidência da Câmara de Lisboa? Ou há algo que eu possa fazer? Se for preciso disponho-me a ser presidente do PSD por um dia (ou dois, no máximo). É que há o risco de ele vencer o inepto António Costa que está lá visivelmente por frete, sem paciência para aturar aquilo. Porque é que não pomos lá o triunvirato da Quadratura do Círculo? Não seria a primeira vez que somos governados por um triunvirato e matavam-se dois coelhos de uma cajadada (pois...). Desculpem a agrura, mas é que ele há limites. E o problema do governo da Câmara de Lisboa nunca mais se resolve. Aquilo é ingovernável e quem sabe não quer, quem vai por obrigação e sabe desiste, e quem não sabe quer. Quando é que mudam a lei autárquica que vem do tempo do PREC?

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segunda-feira, 13 de outubro de 2008

O Ódio ao Liberalismo

É impressionante como perante uma crise de escala ocidental, Europa e EEUU, os jogos das velhas ideologias — socialismo e capitalismo — mantêm uma peleja como se entre si houvesse uma diferença radical. Não há. Tanto o capitalismo como o socialismo se caracterizam pela abolição da propriedade, pela manipulação do mercado e pela convencionalismo do dinheiro. Os socialistas fazem-no pela intervenção directa do Estado, os capitalistas pela intervenção directa dos Plutocratas. Ou seja, tanto o Estado forma um monopólio como as Corporações. O que o socialismo e o capitalismo não respeitam, e com esse desrespeito destroem, é a liberdade dos indivíduos.

O Liberalismo não é um sistema económico apenas. Deverá até começar pelo reconhecimento na Constituição de que o destino dos homens responsáveis é serem livres. Deve ter o seu desenvolvimento no Direito e na Educação e, por fim, terá o seu enquadramento na Economia. Na Constituição estão os seus princípios, no Direito a procura da Justiça, na Educação iniciação na Ética e na Economia a gestão dos interesses. Um Liberalismo que não recorra para esta organização do Estado, não é Liberalismo.

Os que do lado socialista atacam a Liberdade fazem-no dizendo que a defendem, mas em rigor não a defendem porque a Liberdade não é uma fórmula empacotada e embrulhada na moral socialista para quem todos os homens são iguais, para quem lucro é sinonimo de ganância e para quem o homem entregue a si próprio é mau. Noutras matérias, os socialistas entendem que as liberdades devem ser ilimitadas e na sociedade não devem conhecer fronteiras se essa for a incontrariável vontade dos homens.

Os que do lado capitalista atacam a Liberdade fazem-no sem dizerem que o fazem, mas em rigor desenvolvem-se numa lógica que conduz ao mesmo unanimismo dos socialistas. Para eles, o homem em vez de ser um trabalhador (ou um escravo) é um consumidor que para saciar a incessante produção do industrialismo capitalista dá o que tem e o que não tem até ficar reduzido não já ao salário mas ás dívidas que o capitalismo, ou os plutocratas lhe há-de cobrar para o resto das suas vidas.

E o que é impressionante é a desfaçatez com que se digladiam socialistas e capitalistas reduzindo à sua dicotomia as únicas formas possíveis de organização da sociedade. Como é evidente, a crise é a crise do intervencionismo do intervencionismo arbitrário. O intervencionismo é a política baseada na interferência na acção dos homens, com a finalidade de a condicionar e subjugar a interesses que nada têm com a simples actividade dos homens em liberdade. Falam uns e outros como se nada mais houvesse. Para eles talvez até nem exista, mas a agressividade e sofreguidão com que fazem sair as veias nos seus pescoços revela uma incomodidade quase infantil e que custa presumir que não é intencional nem manipuladora.

Não há regimes liberais no mundo actual. Como podemos então estar perante uma crise do Liberalismo? É que pouco importa que o Estado ou as Corporações, enfim, os monopólios, dêem mais ou menos fio às marionetas. O que importa é que não possam dar mais ou menos fio. Não há liberdade condicionada. Se não acreditam nas pessoas, nem nas leis, e por isso as querem controlar as primeiras e mudar à discrição as segundas, porque é que acreditam naqueles que vão exercer o controlo, quando esse controlo é sempre exercido por um Estado, discricionário, burocrático e poderoso?

O que, por outro lado, é patético é que diagnósticos e vaticínios não têm faltado, mas ninguém deve saber o que diz porque tudo acontece ao contrário do que se espera, por razões subitamente diferentes, e ninguém consegue sequer apontar um caminho de saída. Mas no final Estado e Plutocratas não terão saído a perder. Os activos tóxicos ainda vão dar muita saúde às reservas federais americanas e ás reservas dos bancos centrais europeus.

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