O refeitório
De manhã, quando mulheres e homens entravam no refeitório, eles já lá estavam.
O refeitório era um rectângulo baixo, alimentado por uma luz crua, que chamava as moscas.
Das janelas do refeitório, viradas a sul, via-se a rede e o arame farpado, os grandes portões por onde circulavam os camiões e os mastros das bandeiras:do país, da comunidade, do grupo.
De manhã, enquanto se fazia uma fila única para o café, ou pequeno-almoço, de administrativos, quadros, comerciais, muitos já sentavam nas mesas do fundo.
Vestidos de calças e blusão acolchoados e impermeabilizados verdes, grossos muito grossos, de forma a permitir trabalhar nas câmaras frigoríficas suportando as temperaturas negativas, almoçavam às 9.00 da manhã.
Às 9.00, comiam, bebiam cerveja, riam, soltavam impropérios, risadas soltas olhando de frente as mulheres que, ao contrário deles, sabiam de computadores. Falavam em mau português, conversas regadas de palavrões e de frases feitas ouvidas na tv e do futebol visto no café da aldeia, aceleradas em cantilena ribatejana, enquanto se batiam as cartas em jogos violentos de pobres.
Misturados na fila única, eram observados de soslaio. Precocemente envelhecidos todos. As mulheres de 20, pareciam ter 40. A pele grossa e baça. Buracos onde antes haviam estado dentes. Olhos raiados de sangue, da insónia e do alcool. Mãos desfeitas de empacotar, embalar, preparar.
Eram os preparadores, a base, daquela imensa cadeia humana e comercial.
Ali já havia famílias inteiras, pais que levavam filhos. Aqueles mais submissos do que estes. Os filhos regateavam as horas extraordinárias, as únicas capazes de consertar o ordenado mínimo nacional que todos recebiam, diziam que em Paços de Ferreira é que era, que lá o sindicato não deixava barato tanto abuso.
Por vezes um deles desaparecia. Nesses dias, a notícia corria célere, procurava as máquinas de café, os sítios onde se fumava e abatia-se à boca pequena no refeitório. Calavam-se os impropérios, negavam-se as cartas e os únicos olhares percebidos eram de ódio. Um deles, um preparardor, tinha sido despedido.
Nesses dias de peçonha ouviam-se as moscas a fritar num delírio de azul.
Eram os únicos dias em que um ou outro chefe por lá aparecia. Era gente de acrescida responsabilidade. Os destinos do grupo repousavam sobre os seus ombros, a vida e o trabalho de milhares de trabalhadores dependiam da sua capacidade. Entravam como reis, majestáticos e firmes, possantes, derramando a autoridade que um ordenado de 50.000 euros mês permite, e que anualmente, com prémios e louvores chega, por cabeça, ao milhão de euros.
Nesse dia, chegava solícito o advogado, que cumpriria os trâmites legais de despedir o trabalhador. Numa sala dos fundos chamariam o larápio e juntos, explicar-lhe-íam da gravidade e ilegalidade daquilo tudo. Que não se furta, que a sanção para o furto é o despedimento, com efeitos imediatissimos. Assim obriga a moderna gestão de recursos humanos.
Nos blusões grandes daqueles homens aninhavam-se por vezes, um cacho de bananas, ou noutro caso quatro yougurtes fora de prazo, ou ainda um pacote de dodots.
Diz o povo que tantas vezes vai um cântaro à fonte que ás vezes parte-se a asa. Ou dispara-se um revólver pela calada da noite, digo eu.
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