Pentimento: "A Pianista" e a reprodução da violência
Andava há anos para o ver mas, por alguma razão, nunca calhou. Arrumei a questão como sempre faço quando estou desesperado: comprei-o em Espanha (dvdgo-com, aconselho sonoramente).
"A Pianista" é o mais célebre capítulo do austríaco Michael Haneke - tinha visto todos os seus filmes, mesmo os obscuros como "O Sétimo Continente" e "Benny's Video", excepto este - na abordagem de um tema central à melhor compreensão da natureza humana: o papel da animalidade no tecido biológico, mental e social da espécie.
O ponto de vista de Haneke é claro, e a forma como o repete, diversificando, em cada filme é tremendamente eficaz: a fronteira entre civilização e barbárie depende, apenas e só, das circunstâncias, e essas circunstâncias não são excepcionais. Pelo contrário: nas suas diversas modulações, surgem com frequência no quotidiano.
Em "A Pianista", a linha ténue rompe-se quando uma professora de piano vienense (interpretada por Isabelle Huppert na sua habitual palidez assombratória), quarenta anos atormentados por uma mãe possessiva, hiper-controladora, no limite da intromissão sexual (uma repelente e extraordinária Annie Girardot) conhece um wunderkind musical (Benoit Magimel com melenas de nazi), apaixonando-se. Num tabuleiro de desiquilíbrio entre "nature" e "nurture", a pianista é uma sado-masoquista nos intervalos das aulas, capaz de cheirar Kleenexes usados em peep-shows e auto-mutilar-se no sexo com uma lâmina de barbear.
Parece um filme de terror, e é, mas pelos sinais interiores de "normalidade", não pelos efeitos exteriores de "anormalidade": Huppert, à sua maneira, quer ser amada por Magimel, mas este não compreende (é natural...) uma mulher que vomita quando tenta fazer amor com ele no vestiário masculino de um ringue de gelo, e a resposta do amante à solicitação de violência é infligir mais violência do que mesmo o sado-masoquismo da pianista pode suportar.
Michael Haneke é desde há muito, na minha opinião, um dos raros cineastas do futuro (não os chamo de "modernos" porque estaria a acusá-los de antiguidade, e não os chamo de "pós-modernos" porque seria frivolizar a sua importância), capaz de pensar o que está por trás da cortina do nosso complexo descontentamento. Cronenberg ocupa-se da relação entre mente, corpo e tecnologia, David Lynch da luta - muitas vezes sangrenta - entre consciente e inconsciente, Chris Marker dos eternos reequilíbrios entre tempo e memória, Claire Denis da batalha ritualista entre o mundo físico e a carapaça cultural. Haneke tem passado os últimos 20 anos a construir um monumento pessimista, por vezes inclemente, à ilusão do tecido sócio-cultural como uniforme protector dos mais ferozes instintos, não apenas de sobrevivência, mas de destruição. O homem é o mais violento bicho de todos porque é o mais eficaz a dissimular essa violência, diz Haneke, numa gramática que não exclui, por vezes, uma poesia que corre riscos sérios de se tornar niilista (o que nos levaria a outro texto).
Mas há uma questão formal que Haneke sempre compreendeu, do vício apocalíptico de "O Tempo do Lobo" à psicopatia de "Funny Games", do desespero comunicacional de "Code Inconnu" à obra-prima "Caché", onde o voyeurismo ganha a urgência de todas as cicatrizes infantis: a melhor forma de reproduzir a realidade da violência é evitar o jogo rítmico e simulatório da montagem.
Assim como o grande - e subestimado - John Boorman compreendeu que a melhor forma de traçar a distância emocional entre duas personagens é separá-las fisicamente no mesmo plano (daí Boorman, de "Deliverance" a "A Floresta Esmeralda", recorrer tanto ao Cinemascope), Haneke percebeu que a forma mais justa de retratar a violência é não cortar o plano onde ela ocorre. É também o que faz, em certa medida, Cronenberg em "Uma História de Violência" e "Promessas Perigosas". Olhe-se para a cena da sauna neste último: a força - e honestidade - da sequência decorre duma utilização cuidadoamente austera da montagem. Cronenberg leva os planos-chave ao limite, entregando-nos uma percepção da violência próxima do tempo real, onde as pessoas realmente sangram, e onde esse sangue pode levá-las à morte lenta.
Claro que Hawks já o tinha percebido, mas há quem o faça, paradoxalmente, para criar efeito: Tarantino, por exemplo, fá-lo repetidamente (vejam-se as famosas cenas do corte da orelha de "Cães Danados" e da violação em "Pulp Fiction"). Haneke não: ele assume as consequências morais de não de recorrer à montagem, de não desviar o olhar, de aguentar o plano. É uma opção terrível, e aflitiva nas mãos erradas. Tem pelo menos uma vantagem: não dessensibiliza a violência aos olhos do espectador, transformando a agressividade e o sofrimento (veja-se "Armageddon" e as milhares de fita com vigilantes invencíveis) no último jogo de plataformas para a "Playstation Portable".
Para além das questões existenciais, é essa a grande importância contemporânea de realizadores como Haneke. Há quem lhe chame perigoso.
"A Pianista" é o mais célebre capítulo do austríaco Michael Haneke - tinha visto todos os seus filmes, mesmo os obscuros como "O Sétimo Continente" e "Benny's Video", excepto este - na abordagem de um tema central à melhor compreensão da natureza humana: o papel da animalidade no tecido biológico, mental e social da espécie.
O ponto de vista de Haneke é claro, e a forma como o repete, diversificando, em cada filme é tremendamente eficaz: a fronteira entre civilização e barbárie depende, apenas e só, das circunstâncias, e essas circunstâncias não são excepcionais. Pelo contrário: nas suas diversas modulações, surgem com frequência no quotidiano.
Em "A Pianista", a linha ténue rompe-se quando uma professora de piano vienense (interpretada por Isabelle Huppert na sua habitual palidez assombratória), quarenta anos atormentados por uma mãe possessiva, hiper-controladora, no limite da intromissão sexual (uma repelente e extraordinária Annie Girardot) conhece um wunderkind musical (Benoit Magimel com melenas de nazi), apaixonando-se. Num tabuleiro de desiquilíbrio entre "nature" e "nurture", a pianista é uma sado-masoquista nos intervalos das aulas, capaz de cheirar Kleenexes usados em peep-shows e auto-mutilar-se no sexo com uma lâmina de barbear.
Parece um filme de terror, e é, mas pelos sinais interiores de "normalidade", não pelos efeitos exteriores de "anormalidade": Huppert, à sua maneira, quer ser amada por Magimel, mas este não compreende (é natural...) uma mulher que vomita quando tenta fazer amor com ele no vestiário masculino de um ringue de gelo, e a resposta do amante à solicitação de violência é infligir mais violência do que mesmo o sado-masoquismo da pianista pode suportar.
Michael Haneke é desde há muito, na minha opinião, um dos raros cineastas do futuro (não os chamo de "modernos" porque estaria a acusá-los de antiguidade, e não os chamo de "pós-modernos" porque seria frivolizar a sua importância), capaz de pensar o que está por trás da cortina do nosso complexo descontentamento. Cronenberg ocupa-se da relação entre mente, corpo e tecnologia, David Lynch da luta - muitas vezes sangrenta - entre consciente e inconsciente, Chris Marker dos eternos reequilíbrios entre tempo e memória, Claire Denis da batalha ritualista entre o mundo físico e a carapaça cultural. Haneke tem passado os últimos 20 anos a construir um monumento pessimista, por vezes inclemente, à ilusão do tecido sócio-cultural como uniforme protector dos mais ferozes instintos, não apenas de sobrevivência, mas de destruição. O homem é o mais violento bicho de todos porque é o mais eficaz a dissimular essa violência, diz Haneke, numa gramática que não exclui, por vezes, uma poesia que corre riscos sérios de se tornar niilista (o que nos levaria a outro texto).
Mas há uma questão formal que Haneke sempre compreendeu, do vício apocalíptico de "O Tempo do Lobo" à psicopatia de "Funny Games", do desespero comunicacional de "Code Inconnu" à obra-prima "Caché", onde o voyeurismo ganha a urgência de todas as cicatrizes infantis: a melhor forma de reproduzir a realidade da violência é evitar o jogo rítmico e simulatório da montagem.
Assim como o grande - e subestimado - John Boorman compreendeu que a melhor forma de traçar a distância emocional entre duas personagens é separá-las fisicamente no mesmo plano (daí Boorman, de "Deliverance" a "A Floresta Esmeralda", recorrer tanto ao Cinemascope), Haneke percebeu que a forma mais justa de retratar a violência é não cortar o plano onde ela ocorre. É também o que faz, em certa medida, Cronenberg em "Uma História de Violência" e "Promessas Perigosas". Olhe-se para a cena da sauna neste último: a força - e honestidade - da sequência decorre duma utilização cuidadoamente austera da montagem. Cronenberg leva os planos-chave ao limite, entregando-nos uma percepção da violência próxima do tempo real, onde as pessoas realmente sangram, e onde esse sangue pode levá-las à morte lenta.
Claro que Hawks já o tinha percebido, mas há quem o faça, paradoxalmente, para criar efeito: Tarantino, por exemplo, fá-lo repetidamente (vejam-se as famosas cenas do corte da orelha de "Cães Danados" e da violação em "Pulp Fiction"). Haneke não: ele assume as consequências morais de não de recorrer à montagem, de não desviar o olhar, de aguentar o plano. É uma opção terrível, e aflitiva nas mãos erradas. Tem pelo menos uma vantagem: não dessensibiliza a violência aos olhos do espectador, transformando a agressividade e o sofrimento (veja-se "Armageddon" e as milhares de fita com vigilantes invencíveis) no último jogo de plataformas para a "Playstation Portable".
Para além das questões existenciais, é essa a grande importância contemporânea de realizadores como Haneke. Há quem lhe chame perigoso.
1 comentários:
Excelente análise!
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