terça-feira, 21 de outubro de 2008

A Apatia Sexual dos Factos

Jorg Immendorf, Solo

Tinha de escrever a crónica habitual para o Pnet Homem e não tinha tema. O tempo, implacável, escasseava.
Consolei-me com o facto de não ser o primeiro a quem isso acontece. Há quem me diga, e eu também já tenho dito, que a melhor fonte de inspiração é a realidade. Acredito e até dou exemplos:
Thomas Mann só escreveu “Morte em Veneza” porque o compositor Gustav Mahler lhe serviu de modelo para o ascético herói do seu romance. A mulher de Mann não desmente, mas sempre acrescenta que a impressão causada por um rapazinho de 13 anos – “era tremendamente atractivo e o meu marido não deixava de olhar para ele”, comentou – poderá ter sido outra realíssima razão.
Já leram, está claro, o “Last Tycoon”, de Scott Fitzgerald. Não julguem que o personagem saiu armado da cabeça demiúrgica do romancista. Em boa verdade, Monroe Stahr é a literária cara chapada de Irving Thalberg, o mais poderoso dos produtores de Hollywood dos anos 20 e 30, casado com a actriz Norma Shearer. Aliás, bem casado, quanto mais não seja porque a morte de Thalberg, por pneumonia, aos 37 anos, evitou as canónicas trapalhadas domésticas que o meio cinéfilo, volátil e tão rotativo, em geral proporciona.
Por vezes, a realidade é até mais imaginativa do que o seu espelho ficcional. O Capitão Ahab, do genial “Moby Dick” de Melville, foi decalcado dos infortúnios e tormentos de um marinheiro de carne e osso, Owen Chase de sua graça. O barco de Owen foi afundado por uma baleia. O marinheiro andou à deriva 91 dias num bote e sobreviveu alimentando-se (ahrrggg!) do cadáver de um companheiro.
E já que estou com um pé na água, recordo que Robinson Crusoe é a reprodução ficcional de uma outro marinheiro despejado numa ilha deserta do Pacífico, depois de contestar as condições do seu navio. Alexander Selkirk, o marujo recalcitrante, passou quatro anos e quatro meses solitários na ilha. Contou as suas agruras comportamentais, e consequentes delícias espirituais, a Daniel Defoe e o resultado foi uma das mais exaltantes e lendárias aventuras que nos foi dado ler. Sobretudo se tivermos em conta que, em boa verdade, não há mulheres na história e que a apatia sexual do herói não se recomenda a ninguém.
Pois, pois. Eu bem olhei para a realidade circundante. Para a cara mumificada da crise bolsista. Para a vulcânica erupção eleitoral dos Açores. Para a enxurrada obsoleta de Sete Rios. A crueza dos citados eventos é inapelável e indesmentível. Mas não me inspira: a apatia sexual destes factos ultrapassa a do eremítico Crusoe.
Não fossem os livros e eu não tinha crónica. Quando a jovem realidade não ajuda, valha-nos a velha literatura.

1 comentários:

Miguel Poiares Maduro disse...

Caro Manuel,

Tem razão: com esta realidade quem é que pode fazer boa ficção? Há muitas fontes de inspiração para histórias interessantes. O problema é que não basta uma boa história para escrever um bom livro ou fazer um bom filme, os personagens são fundamentais. E esta realidade não oferece personagens interessantes...
abraço
Miguel