sexta-feira, 8 de abril de 2011

Para que serve a arte?

Confesso que nunca concordei com a pudicícia que leva a traduzir “Israel” como aquele que lutou contra um anjo. Se “el” significa recorrentemente Deus, é estranho que só com Israel a tradução seja diversa. Daniel é “Deus é o meu juiz”, Miguel é “Deus é o meu rei”, Manuel o “enviado por Deus”, Parente do “ili” babilónio (Babel, Bab-ili, é a “porta de Deus”) e do Alá árabe (são todos semitas afinal) seria natural que a tradução corrente fosse a de “aquele que lutou com Deus”. Não é para todos, mas nem sempre é pecaminoso. Sendo dos episódios mais estranhos do Antigo Testamento, ainda não teve a mesma profunda análise psicológica que Job teve com Jung.

O que têm estes considerandos a ver com a arte?, pergunta o leitor mais apressado. O que tem a ver com o espaço público?, insiste o que preza as coisas directas.

Já antes o tinha confrontado com algo de muito simples, o facto de a arte ter como papel o tornar presentes as coisas. Essa a sua razão de ser e essa a sua bitola. Nesta perspectiva a arte é guerreira, invasiva. A arte é por definição bélica. Hesíodo n’”Os Trabalhos e os Dias” insiste na ideia de que a vida é luta. Camponês e guerreiro são parte da alma fundamental da Europa. São os seus símbolos perenes. A arte impõe-se-nos, luta connosco. Uma arte que não dê luta é uma arte fracota.

No entanto, qual é o discurso da arte e sobre a arte a que assistimos desde a segunda metade do século XX sobretudo? O espectador queixa-se de que não compreende ou que os outros não compreendem. O crítico fica satisfeito ou agastado pela incompreensão do vulgo. O artista sente-se incompreendido. A arte deixa de ter de ser centro de luta para ser centro de compreensão. A arte tem agora de ser compreendida, esse o centro da apreciação estética.

Quantas vezes não viu o leitor alguém sair de um filme, de uma exposição, da leitura de um livro e dizer: “não compreendi”, julgando que esse era o centro da questão. As pessoas postam-se perante a arte procurando compreendê-la. E a arte busca compreensão. A imagem antropomórfica da arte actual é a do adolescente, que procura ser compreendido. Perante uma arte com borbulhas considera-se que a postura adequada é a do assistente social. Uma arte púbere e em crise existencial atrai assistentes sociais. O curioso é que o que é problema, reconhecidamente problema, torna-se de repente mérito.

O segundo comentário a que assistimos é “gostei, não gostei”. Esse o discurso que gira à volta da arte. Nada mais. Como se a arte estivesse para ali postada para dar prazer ou não, e esse fosse o critério de apreciação último. Para o espectador comum, a arte, além de adolescente, é uma espécie de menina que é apreciada segundo um concurso de beleza. “Acho esta mais bonita, esta menos bonita”. A arte dá ao fruidor a vantagem de se sentir consumidor com poder, podendo escolher entre este sabor do gelado ou outro, entre esta cachopa ou outra. A arte não o põe em causa, a arte apenas confirma o seu poder. A teoria da escolha do consumidor invade o campo da apreciação estética.

O terceiro nível de análise do fruidor é o “este filme é melhor que outro, este escritor pior que outro, ah este disco é muito melhor que o anterior”. E por aqui se queda. A terceira postura do fruidor é a do júri de um concurso não fundamentado. O paradigma é agora desportivo. O pódio a sua maneira de hierarquizar. “E o vencedor é...”. E está tudo decidido. Nada mais há que dizer. A arte é um campo onde se encerra de vez um concurso. Quando muito pode-se esperar que reabra no ano seguinte.

O leitor mais avisado já compreendeu. Adolescentes, apreciações sumárias e não fundamentadas, poder do julgador...O paradigma da arte contemporânea é... o concurso de misses. A arte pode ser assim um percurso turístico, inessencial, em que se espera algum choro, mas em suma em nada determinante.

Isto para não falar no mercado da arte. O mecenas escolhe para o bem e para o mal como ser humano. O mercado de arte é um mecenas sem alma, apenas com licitações, em que se cria um produto vindo não se sabe de onde para dar valor não se sabe bem ao quê, com motivações que são a única coisa efectivamente palpável e cognoscível no meio desta imensa Babel.

Convenhamos: há mais dialéctica nos sorrisos de Sant’Ana, mais percurso de conhecimento, que nas infantilidades de Pollock. Há mais complexidade em Mondriaan que nas infantilidades de Andy Wharol.

Qual a alternativa que Hesíodo nos ensina? A arte é luta, como a vida. Fruto do superávite de energia que é concedido a alguns, sinal do privilégio dada à raça humana, a arte é um campo de batalha. Logo, de conhecimento. De sentimento, sem dúvida. Mas de emoção, apenas lateralmente.

Para enfrentarmos uma obra de arte temos de nos preparar como o guerreiro ou como o camponês. Juntarmos as armas e o arado e estar prontos para umas vezes ganharmos ou perdermos. O que faz a grande arte não é a maior fruição, mas a maior luta. Quando se vence facilmente é arte menor. Quando se lavra o campo sem dificuldade é mero passatempo. Pessoas sensíveis fazem massagens, não arte.

Retornemos ao espaço público, fazendo de conta que antes não falávamos dele. Que relevância têm estes considerandos para o espaço público?

É evidente que a arte tem (também) por mecenas os Estados. E os vários Estados europeus patrocinam a arte e certa arte, ou certas artes, por critérios e razões que são elas políticas. O nosso dinheiro de contribuintes é gasto em propaganda que tenta demonstrar que umas tantas culturas são europeias, ou pior ainda que não há cultura europeia, que tudo é difuso e afinal europeu é o que alguns homens querem. Resta saber quais.

Mas a relação da arte com o espaço público é bem mais profunda que a anedota do servo e o novo-rico a querer-se fazer de mecenas. É que – e isto é tanto mais verdadeiro quanto menos conhecimento de arte tem o homem no espaço público – a arte define o nosso espaço, para o bem e para o mal. A capacidade de tornar presente, a confiança na efectividade é muito determinada pela imagem da arte que nos é transmitida. Uma política cubista pode ser imaginativa, mas deixa-nos sem perspectiva. E quando o surrealismo invade a prática e o discurso político podemos começar-nos a assustar, porque o mundo de pesadelos deixa de estar contido na tela, para nos invadir a vida quotidiana.

Esta concepção da arte atravessa o discurso político. Perde-se um referendo? É simples. Os políticos foram incompreendidos. Têm de explicar a obra de arte que construíram. Construir a Europa? É uma questão de gosto. Uns gostam da Europa outros não. Assim como uns gostam de um partido outros não. E no final, no concurso de misses escolhe-se a mais bela, seja ela um partido político, seja um país asiático com presunções europeias.

Desde que explicada a arte é legítima. Contaram-me outro dia que numa exposição em Londres alguém expôs bosta de elefante, tel quel, como obra de arte. A obra é de magnitude e acredito que o autor se reveja na obra. Sou mesmo um fervoroso adepto que o faça ao ponto de nela viver. Da mesma forma que, desde que bem explicado, qualquer bosta de mamute se pode tornar em país europeu, desde que se manipule o valor da obra no mercado da arte. Faz-se propaganda, folhetos bem coloridos, e tudo se transforma no seu contrário. A contestação do contexto ficou bem a Duchamps. Era novo, fez pensar. Hoje em dia temo bem que apenas enfade... e cheire mal.

“Pai, afasta de mim esse cálice” remete para um mundo onde a arte é desnecessária. A presença é efectiva e plena. O facto de haver arte cristã é uma contradicção nos termos caso o plano divino estivesse plenamente realizado. O facto de existir é a demonstração de que é cristã na sua finalidade, mas careceu de um substrato não cristão onde assentar. Isso mesmo: o paganismo indo-europeu. Porque o cristianismo tem a maturidade de se saber um projecto. E hoje em dia qual é oficialmente? Os critérios de Copenhaga. Os tais que inspiram epopeias, alimentam dípticos e foram musas para um sem número de sinfonias. Não as incompletas, mas as desconhecidas. Instrumentos úteis, mas que, transformados em obras de arte, nos remetem para um mundo sem luta, e por isso de submissão, sem projecto substantivo, para o puro pesadelo, para o embuste e para a bosta.




Alexandre Brandão da Veiga

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quinta-feira, 7 de abril de 2011

Topo de Gama!

«É caso para o Presidente da Assembleia da República dizer ao Deputado Jaime Gama: Senhor Deputado, terminou o seu tempo». Foi assim que, esta semana, Jaime Gama se despediu da Assembleia da República como Presidente e como Deputado. Custa-me aceitar que este «peixe de águas profundas», como um dia o definiu Mário Soares, saia da cena política. O tempo de Jaime Gama não acabou porque não começou. As suas capacidades políticas e pessoais são de primeira linha mas o casuísmo da partidocracia, mal casado com a oportunidade mediática, nunca o apurou para o topo. Na única vez que Jaime Gama se perfilou para a liderança do PS desistiu por ponderáveis razões familiares. Portugal perde com este desencontro. Por enquanto. Porque o seu tempo não terminou.

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terça-feira, 22 de março de 2011

Ciência e cristianismo


Quando produzo uma afirmação assumo na íntegra o ónus da prova. Precisamente o contrário dos que pretendem dissolver a Europa num amálgama de fontes mais ou menos indeterminadas para melhor lhe poderem manipular a identidade. Vejamos por isso até que ponto o cristianismo marcou de forma profunda a própria ciência. Para isso temos de ouvir de novo o que dizem as crianças.

As crianças dizem basicamente o seguinte: o cristianismo destruiu a ciência grega, a ciência é neutra em relação à religião, o cristianismo (sobretudo o catolicismo) opôs-se à formação da ciência contemporânea. As crianças odeiam a complexidade na formulação, o que lhes quadra bem, mas como não falo para crianças, nem as acho competentes para perorar no espaço público, vejamos até que ponto esta argumentação é pura e simplesmente desprovida.

Começando com questões prévias: a ciência contemporânea nasceu em terra cristã, não em terra budista ou muçulmana. E foi obra igualmente de eclesiásticos. Argumento contrário: é evidente, nessa altura toda a Europa era cristã, e eram os eclesiásticos a única classe intelectual. Admitamos. Então afinal a Europa é terra cristã e afinal nem sempre os eclesiásticos foram contra a cultura e a ciência. Algo lhes devemos. Isto porque não conheço muitos imãs que tenham feito obra científica.

Falemos pois de coisas mais sérias. O cristianismo destruiu a ciência grega? A verdade é que o século II e I a.C. já tinham visto uma profunda decadência da ciência grega. E estes séculos têm o ligeiro inconveniente... de serem anteriores ao nascimento do próprio Cristo. Maravilhoso cristianismo que já prejudica antes de ter nascido. O próprio pensamento pagão desde o fim da antiguidade tendeu mais para a doutrinação moral, a retórica e mais tarde a religião (Possidónio, Séneca, Aulo Gélio, Quintiliano; mais tarde Plotino, Jâmblico, Porfírio) que o pensamento científico. O império do pensamento religioso sobre o científico é feito da própria cultura pagã e não do cristianismo. E das últimas marcas da cultura científica que nos sobraram do fim da antiguidade são de um autor cristão, Boécio.

Vejamos a segunda frente de ataque: a ciência é neutra em relação à religião e à ideologia. É curioso que sejam os mesmos que proferem esta afirmação que depois, em toques pós-modernos, neoconstrutivistas, neoestruturalistas (seja lá o que signifiquem estes palavrões), vêm dizer que a ciência é mera construção ritual, pura relatividade, fruto da sociedade e da sua ideologia. Entendam-se por favor, e que não se mude a argumentação consoante o destinatário. É que a própria tese de que o cristianismo destruiu a ciência vem de movimento anticristão francês e inglês da segunda metade do século XIX (não de Nietzsche mas mais de Berthelot e Renan – que pouco sabia de ciência, embora fosse um mestre de estilo, e de físicos menores ingleses). Parte não da física mas de ciências recentes em crise de menoridade, como a química e a biologia, e das ciências humanas, em busca de parasitar o prestígio da física e da matemática. Teve bases e efeitos tipicamente ideológicos, com a formação de manuais escolares que apagaram o cristianismo como fonte de ciência e geraram movimentos persecutórios (Berthelot, aliás um grande químico, e a sua clique, não tão relevante quanto o primeiro, perseguiram cientistas da dimensão de um Duhem ou de um Tannery porque eram católicos, o que toda a gente sabe que torna incompetente para a ciência, como os casos de Pascal e Pasteur demonstram).

O terceiro argumento é bem conhecido. O cristianismo opôs-se à formação da ciência moderna. Basta ver a perseguição a Galileu e a Darwin. A História é bem mais complexa. Darwin foi muito mais perseguido pelos protestantes e só bem mais tarde posto no Index. E as reacções contra o heliocentrismo foram tão acesas entre protestantes quanto entre católicos. E a relação entre Galileu e o papa é bem menos linear que o mito simplista de Brecht (que por sinal nada sabia de física) dá a entender.

Vejamos só alguns exemplos que mostram como o cristianismo contribuiu para a ciência.

O principio da inércia e a ideia de um movimento inercial rectilíneo, por exemplo. Matéria tão relevante quando Mach achou que era central no pensamento da física. E sabemos que Mach influenciou profundamente Einstein. Para os gregos (simplifiquemos um pouco) o movimento perfeito era o circular. Velho padrão de Mandala, de circulo mágico bem conhecido. O cristianismo, e sobretudo Santo Agostinho, denuncia o falsus circulus. Inaugura o pensamento de um movimento rectilíneo com base não apenas da ideia de Criação, mas de...Hapax. Da ideia do evento único da Incarnação de que instaura a História. Newton não poderia ter concebido o princípio da inércia como o fez, se as condições intelectuais não tivessem preparado a evidência da sua natureza fundamental.

São cientistas medievais, como Buridan e Oresme e Nomariarus, clérigos católicos, que estabelecem uma ideia revolucionária: os corpos celestes não têm de ser movidos por inteligências espíritos ou instâncias angelicais. Deus quando criou o mundo deixou postas as leis do movimento, que actuam por si mesmas. A própria possibilidade da existência de leis da física precisou de mais este passo, passo que foi dado no âmbito do pensamento cristão e por clérigos. Damos este facto como evidência, mas precisava de ser estabelecido. Não falamos como os pitagóricos de uma música celestial, mas de leis da física.

Etienne Tempier, esse grande reaccionário, bispo de Paris no século XIII, impede que se ensine o averroísmo em Paris. Curiosa versão da História. O grande movimento revolucionário que impede é o que gera a escolástica, que para os mesmos ideólogos é apenas reaccionário em si mesmo quando lhes dá jeito. Mas porque não gosta Tempier das novas correntes? A questão é sempre mais complexa, mas em síntese, porque é contrário ao cristianismo na sua perspectiva. Porquê? Porque impede, pelo retorno da ideia de inteligências que governam os movimentos celestes, a ideia de lei física imposta por Deus.

A grande revolução científica tem o seu impulso sobretudo no século XVII. Já não falando das influências da escola (clerical) da física de Paris e Oxford em Leonardo da Vinci e Galileu, se pensarmos em todos os grandes criadores de ciência estamos a falar de convictos cristãos, que pensam na ciência numa perspectiva religiosa. Leibniz inventa o cálculo infinitesimal a tentar perscrutar o pensamento divino e daí retira consequências na sua teodiceia, Pascal, Newton, entre tantos outros são bons exemplos disso. Sem o Padre Mersenne não se teria formado o modo dialogante de fazer ciência. Sem os jesuítas muita da ciência moderna não se teria estendido até à Rússia. Ainda no século XX o abbé Lemaître, um padre belga, é o primeiro a retirar a teoria do Big Bang da teoria da relatividade generalizada. Na altura foi vilipendiado por misturar teologia com ciência, quando mais tarde se demonstra ter razão, mas apenas para ser apagado o seu mérito nessa descoberta. Isto para já não falar num célebre monge austríaco que cria a ciência da genética clássica (Mendel), de um cristianíssimo matemático que cria a álgebra dos transfinitos e a teoria dos conjuntos (Cantor), ou de um padre Fourier (peculiar, é certo) que de um só golpe inova na teoria do calor e na matemática. Os exemplos poderiam ser desenvolvidos até ao infinito.

Tentando sintetizar algo que é realmente complexo, apenas podemos dizer que foram cristãos e enquanto cristãos quem criou a ciência moderna. Que foi o cristianismo que fundou não apenas o modo, mas igualmente muitas das possibilidades da ciência moderna. Que foi numa civilização cristã que nasceu a dita ciência. Que se diga que a ciência é meramente ideologia ou ritual apenas mostra desconhecer o que seja ciência. Que se diga que esta é inerte em relação ao ambiente em que nasce é igualmente dislate. A ciência não nasce como libertação em relação ao cristianismo e se se desenvolve muitas vezes nesse sentido isso apenas mostra que quem a faz desconhece com frequência as bases do que pratica. Não é consequência da ciência, mas em geral instinto de novo-rico, de menorizado (Comte que me lembre contribuiu menos para a ciência que Leibniz, Pascal ou Cantor – ou mesmo Einstein, que era crente em Deus, ou ainda Maxwell).

Resta um argumento. Pode-se aceitar que a ciência europeia é construção cristã e que tanto os cristãos como o cristianismo contribuíram para o seu desenvolvimento, mas isso é afinal apenas História. O “apenas” quando é usado diz geralmente algo mais sobre quem o usa que sobre o que fala. Quando Hegel fala do “apenas psicológico”, diz mais sobre ele que sobre a psicologia. Mas ainda aqui temos de reconhecer dois factos: em primeiro lugar, não seria então necessário desacreditar tanto as origens cristãs da ciência europeia, caso elas fossem tão irrelevantes hoje em dia; em segundo lugar, resta saber que revoluções científicas estamos a preparar e o que elas preparam hoje em dia. Se concluirmos que estamos apenas a desenvolver sem revolucionar (no que a segunda metade do século XX tem sido mais useira e vezeira, salvo tecnologicamente falando), talvez seja necessário perguntar o que deixou de alimentar a ciência. Se acreditamos que estamos a preparar novas revoluções científicas, é preciso demonstrar em quê elas saltam fora do paradigma da ciência europeia e se isso vale a pena.
Lembro a frase de Heisenberg: quem disser que sou cristão exagera, quem disser que não sou exagera igualmente. Frase de alguém que esteve sempre bem longe das religiões institucionais. Mas é evidente que Heisenberg é menos relevante para a ciência que tecnocratas da política que decidiram definir o que é Europa. ^



Alexandre Brandão da Veiga

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quarta-feira, 9 de março de 2011

A economia de mercado

Os idólatras de uma construção meramente técnica da Europa dizem que a Europa é economia de mercado. Um dos miraculosos critérios de Copenhaga. A copulativa é aqui assustadora. É? Ou tem como condição? Trata-se de duas coisas bem distintas.

Tenho tido o cuidado de salientar que não faço análise económica e nem sequer política, mas trabalho apenas no subterrâneo da política, no que a fundamenta. Não venho pois aqui fazer laudas ou diatribes sobre a economia do mercado. O que me preocupa é saber o que sustenta este discurso e o que significa sob o ponto de vista civilizacional.

Toda a economia no limite é de mercado. Em muitos aspectos é inevitável que o seja. Por mais planificada que seja uma economia, se não houver pão, este não pode ser distribuindo em grande quantidade e baixo preço. Quando muito ficciona-se pão, como fez a Albânia (país ídolo dos detentores das esquerdas doces antes de se converterem à política moral), ou a China ou a Roménia. E bem se pode inundar o mercado de manuais de cálculo tensorial que não é por isso que a sua procura aumenta sem mais.

A economia de mercado é manifestação de liberdade e fomenta a liberdade. A dimensão patrimonial é fundamental na vida humana. O que eu como, visto, onde habito, no que trabalho são sectores fundamentais da minha liberdade, manifestam os meus gostos e a minha opção de vida. Todas alternativas à economia de mercado mostraram-se, além de ineficientes no seu conjunto, limitadoras da liberdade.

A economia de mercado tem um efeito redistributivo muito potente. Costuma-se dizer que o Estado distribui melhor e a economia de mercado produz melhor. Este lugar comum está de há muito afastado. Nenhuma televisão privada atingiu a excelência da BBC nos seus tempos áureos, ou da ARTE nos seus bons anos. Há certos tipos de bens que consoante os países e a épocas o Estado produziu melhor que os privados, seja na saúde, na cultura, na educação, em alguns casos na infra-estrutura. Os serviços públicos nórdicos são mais bem eficientes que as empresas do Burkina Faso. De igual forma a economia de mercado por via da concorrência tem permitido o acesso a bens e serviços a camadas de população que nem com eles sonhavam há anos atrás. Tudo depende da época, do país e do modelo ético de organização que exista.
Só por isto seria legítimo política e civilizacionalmente que a Europa se baseie na economia de mercado. É uma visão mais adulta, mais realista da vida, uma visão mais livre e generosa do ser humano.

Mas coisa bem diversa é esquecer as taras do mercado.

Os critérios do mercado são anti-democráticos. O poder de voto não é igual para todos. Gera desigualdades tanto mais insuportáveis quanto entra em crise. Se no momento de crescimento todos beneficiam ainda que desigualmente, em momentos de crise os mais frágeis sofrem mais, e as redistribuições gerais dependem de factores de depredação mais que de mérito. O mercado opõe-se à meritocracia em muitos aspectos. Os depredadores ganham sempre em mercados instáveis.

O mercado deixado a si mesmo despreza o ser humano. Um velho, um analfabeto, uma criança enquanto não têm valor económico, são deixados de lado pelo mercado. São outras instituições, sejam elas formais ou informais, que atribuem valor à fragilidade humana. Por isso, mesmo nos países ditos mais liberais, o mercado nunca actua sozinho. Daí que se afirmar a natureza fundante do mercado é esquecer o papel que nas grandes economias capitalistas o evergetismo, sobretudo de dimensão cristã, tem no seu equilíbrio e no equilíbrio dos seus efeitos. Quem conhece o modo de vida do proletário do século XIX, ou as formas de proletarização actuais, obnubiladas, precarizadas, em ambientes laborais de humilhação e opressão que ainda hoje em dia são permitidos sabe até que ponto o ser humano pode efectivamente ser destruído por uma lógica de poder económico. Porque a economia de mercado, endeusada por si mesma, esquece os homens concretos que nela vivem. Com o seu poder e as suas fraquezas, as suas frustrações e a sua crueldade, mas também a sua generosidade.

O mercado deixado a si mesmo despreza a cultura, o património, em suma é indiferente às identidades humanas. Mesmo quando na aparência se escora nestas identidades (como vemos pelas especializações em finanças muçulmanas, ou indígenas) irreleva-lhes o centro dessa cultura, apenas aproveita o facto de ela existir como oportunidade de negócio. Assim como o inválido não é um humano que sofre, mas apenas uma oportunidade de vender uma prótese, o índio não é um ser humano que vive de certa forma, mas apenas um consumidor de objectos de penas.

Em suma, falar só de mercado é desprezar a democracia, o ser humano, e pôr em causa a cultura e a sua identidade.

A economia de mercado assenta numa antropologia e gera uma antropologia. Em cada cultura tem formas bem diversas. O que se produz, como se produz, quem produz, para quem produz depende de cultura para cultura. Mas gera igualmente uma antropologia. Enquanto só e apenas economia de mercado é indiferente à cor, raça, credo, não por amor ao ser humano, mas apenas por este lhe ser absolutamente indiferente. Sem assentar noutra antropologia que não em si mesma, reduz-se à indiferença perante a alegria e o sofrimento humanos. Uma Europa exclusivamente baseada na economia do mercado seria assim indiferente à sorte humana.
Mas, pode-se contra argumentar, os critérios de Copenhaga contém a democracia na sua referência. Quais sejam as limitações da democracia já o vimos. Esta referência conjuntamente com o mercado apenas tempera o lado anti-democrático do mercado. Não apaga o seu lado esmagador das culturas, da identidade e nem forçosamente de uma determinada visão do ser humano que só a cultura e a identidade transportam.

O pior ainda é dizer que a Europa é economia de mercado. Dizer que qualquer país que preencha os critérios de Copenhaga é um país europeu resulta de uma pobreza intelectual, de uma falácia lógica e de uma mendicidade espiritual sem nome. Porque assim sendo tanto os Estados Unidos como o Japão, Marrocos ou a Turquia serão países europeus. Porque demonstra que o que são condições fundamentais passam por ser essência. Ou seja, que a essência da Europa é meramente instrumental, condicional, e acessível por qualquer um. Que mesmo que apenas que formalmente se atinjam esses critérios, qualquer casca “europeia” (e que casca) é o que é a Europa. A Europa fica reduzida assim a uma casca.

Vejamos pois que imagem da Europa se desprende deste fetiche da economia do mercado. Se a Europa não tem uma economia de mercado mas é, então daqui decorre que a Europa é uma realidade meramente instrumental. E este resultado, se não é querido por todos os cultores dos critérios de Copenhaga, é expressamente querido e propagandeado pelos subservientes a políticas americanas que dizem que a Europa não é uma cultura, mas uma mera encruzilhada de culturas. A Europa não tem substância, substância é coisa que as outras culturas possuem: os turquemenos, os persas, os chineses e os turcos. Os europeus, esses reduzem-se a ser uma encruzilhada, um ponto de encontro. Vivem sem abrigo, ao sabor do clima e dos visitantes que passam nas três vias. A Europa é a trivialidade em suma.

O lugar comum diz que se quer uma economia de mercado e não uma sociedade de mercado. Seja. Cada um que escolha a sua fórmula. Mas assim como me parece infantil fazer de conta que a economia de mercado não existe e existirá sempre, sob uma ou outra forma, ou num ou noutro grau, parece-me igualmente infantil, e igualmente dogmatismo puro, esquecer o que pode ter de tarada uma economia de mercado deixada a si mesma ou apenas temperada pela democracia ou o “acquis communautaire”. Numa Europa construída com base apenas nestes critérios, apenas uma coisa está ausente: o ser humano. É um deserto em que existe de tudo, menos europeus, com a sua cultura, a sua maneira de viver, a sua civilização. É um mundo feito por mortos de inteligência para mortos de espírito. E em que só mortos de uma e outra coisa acreditam.




Alexandre Brandão da Veiga

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quinta-feira, 3 de março de 2011

António Toyota Costa?


António Costa anunciou hoje que será candidato à Câmara Municipal de Lisboa nas próximas autárquicas de 2013. À vista desarmada, este parece ser um gesto sábio. O vazio do poder pós-Sócrates é mais propício a divisões estéreis do que à fecunda realização do ofício. Por outro lado, com um só gesto, António Costa sugere que a obra feita lhe garante a recondução na Capital, a ausência de um rival no perímetro e a promessa de um tapete encarnado para Belém, em 2016, à imagem de Jorge Sampaio.
Tudo faz sentido. Ou talvez não. A recondução na CML, como tudo o resto, depende da obra feita. E a desculpa da falta de verba não pode ser tapada com mais empréstimos e dívida para a CML. Terá de haver capacidade de decisão e resultados. Podemos avaliar os próximos 2,5 anos pela performance dos últimos quatro. E lembramo-nos que também o Colosso da Babilónia tinha pés de barro, não resistindo às cheias.

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segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Falta um boné nas mãos de Sócrates

«José Sócrates foi chamado a Berlim por Angela Merkl». O anúncio feito, nestes termos, pela TVI é eloquente.
Quem é quem? Estaremos na Europa sonhada da fraternidade de Estados soberanos ou na imprudência de uma nova era imperial?
A verdade é que o vencedor é sempre assimilado pelo vencido. Os gregos colonizaram os romanos depois da hora. E a raça ariana faz-se finalmente reconhecer como «superior», depois de todos os genocídios. Terá aptidões na filosofia, na música e na organização. Mas tudo mais é tendênciazinha para a supremacia que os tratados preveniram e os povos esqueceram.
Só falta oferecerem um boné ao amigo de Chavez para ele segurar na mão, cheio de nervos, quando lhe for permitido entrar agradecido na sala da Chanceler.

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sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

É agora ou nunca


Está aberto o debate público sobre as alterações das Ferguesias de Lisboa que, supostamente, servirão de candeia para iluminar duas vezes o que se irá passar no resto do País. (ver post anterior) Façam o favor de não transformarem a discussão sobre esta alteração radical da nossa identidade e representação democrática num expediente que a Democracia concebe para não ser praticada. Inundem o site com o que pensam e com alternativas concretas. Sejam!.
Obrigada.

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segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

A marca de Mértola


A primeira vez que a vi foi descendo o Guadiana, nos idos anos 80. Mértola deu-se a conhecer, imponente e sóbria, de pedra e cal, como um porto seguro para quem chega exausto depois da longa viagem azul a partir de Jeromenha. Não havia Alqueva e o Pulo do Lobo era evitado por curto desvio pelas aldeias do fim.
Muito mudou. Desde os anos 70 que a vontade de voltar a ser única no Alentejo construiram a imagem de marca da vila.
Sabíamos que Mértola era o último porto do Guadiana, a partir da foz. Agora os títulos dos panfletos explicam que se trata do último porto do Mediterrâneo. Conhecíamos os mitos da presença muçulmana no Al Andaluz transformado no Paraíso do Islão, alcançado e por alcançar. Em Portugal, apontávamos Silves como a grande musa inspiradora para reis e poetas árabes. Mas para quem visita Mértola agora, parece que o Algarve é como um subúrbio do centro de interesses da civilização islâmica e que os três séculos de presença muçulmana nesta vila vingaram mais do que todos os outros romanos ou cristãos.
Não quero fazer análise histórica pela aritmética dos séculos. O que seria da Irlanda, da Polónia ou da Hungria apenas com o tempo de ocupação que viveram. É conhecida também a tendência para contar a História de Portugal de Norte para Sul, ao sabor da Reconquista Cristã, favorecendo os heróis e as raizes da nacionalidade. Uma leitura mais atenta diz-nos que toda a Civilização veio do Sul e que os autóctones pouco se mexeram com a entrada e saída de cartagineses, romanos, suevos, árabes ou cruzados.
Para quê então esta narrativa que nos leva a ter, em Mértola, a construção de uma imagem de marca tomada por um período de três séculos? O heroi a cavalo na porta do castelo contruído por um Rei português, é muçulmano. Na propaganda, a Igreja Matriz é apresentada como a única Mesquita de Portugal. Ora é sabido que, em todo o Alentejo - e até a Sé de Lisboa - os templos cristãos foram construídos nas fundações das Mesquitas que, por sua vez, se fizeram erguer na base de outros templos cristãos visigodos. A Arqueologia é fértil no aproveitamento das pedras de sinal contrário, como se viu na grande exposição do Jubileu do Ano 2000 na Alfândega do Porto.
Esta lógica pendular da leitura histórica é como a da toponímia de Mértola, ainda ocupada pelos nomes dos heróis vermelhos. Ou será apenas uma táctica turístico-comercial para vender mais um destino?
Mértola é mais rica e mais verdadeira do que isso. Basta lá chegar pelo rio e ceder aos seus encantos.

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quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Afinal era mentira



Passava um minuto da meia noite e meia de ontem quando o Correio da Manhã fez publicar seis linhas on line sobre a ilibação de Helena Lopes da Costa das graves acusações de que foi alvo, há dois anos, durante a campanha para as Autárquicas de Lisboa. Sob o título «Ex vereadora absolvida», a timidíssima notícia adianta «O Tribunal da Relação de Lisboa não deu provimento ao recurso do Ministério Público sobre a não pronúncia da Ex Vereadora da Câmara de Lisboa, Helena Lopes da Costa, a propósito da atribuição de casas da autarquia. O Ministério Público tinha feito uma acusação por cerca de 20 crimes mas a actual deputada não foi pronunciada e julgada». Na época, os jornais não falaram em cerca de 20 crimes mas em 22. Deram-lhes nomes e pormenores sórdidos. O título do DN denunciou o «Lisboa Gate», a SIC falou no assunto de hora a hora, tal como os outros canais de TV.

Bem sei que o CM fecha antes da meia noite e que a edição escrita de hoje não poderia incluir esta notícia. Veremos o CM de amanhã. Mas, se houvesse algum sentido de proporção e de pudor, já não digo de Justiça, o erro sobre a acusação de alguém inocente deveria ser minimamente destacado on line.

Recordo como tudo surgiu: estava em discussão se Santana Lopes deveria ser candidato a Lisboa. Lançaram-se suspeitas graves sobre a atribuição indevida de casas a próximos de Santana que chegou a ser constituído arguido durante um tempo. A campanha foi para a frente com esta «bandeira eleitoral» até que, afinal, a investigação fez surgir casas e mais casas entregues a dirigentes da esquerda virtuosa e a proto-intelectuais, como Baptista Bastos. O assunto arrefeceu, não fosse a lama da ventoínha continuar a espirrar para mais nomes da rosa.

Veio a verificar-se agora que as acusaçõas à Vereadora de Santana não passaram de uma atoarda. Curiosamente na mesma semana em que um canal de televisão faz uma peça com Helena Roseta a dizer que as rendas de casa vão passar a ser conforme os rendimentos dos inquilinos para acabar com os abusos de longa data. A peça «jornalística» não cuidou de ouvir a Oposição na CML sobre a mesma matéria, o que no meu tempo de jornalista seria um pecado mortal. Nem tão pouco se interrogou porque é que essa actualização ainda não foi feita, ao fim de quatro anos de poder PS na CML. E nem se informou do preceito, inaugurado pelo socialista Vasco Franco nos anos 90, de actualizar anualmento o levantamento das rendas. Sabemos que a fiscalização e manutenção das boas regras é menos empolgante. Mas deve ser feita porque há muito tempo que acabou o arraial das campanhas e dos amanhãs que cantam. Poder é responsabilidade. Poder é trabalho. Poder é serviço.

Mas, aparentemente, nascemos todos hoje, como as notícias do dia.

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quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Freguesias, para que vos quero?


Ontem a Assembleia Municipal de Lisboa aprovou, pela maioria dos votos, o debate público sobre o acordo do PS e do PSD sobre o novo mapa das Freguesias de Lisboa. No ambiente impoluto dos gabinetes, estes senhores combinaram eliminar 29 freguesias de Lisboa. Porque não conseguem convencer o resto do País, a medida só se aplica à Capital. E a mudança vem com tintura de iodo: mais competências e mais verbas para as freguesias de Lisboa.
Como é aceitável que se proponha uma legislação que defende para as freguesias da Capital privilégios e competências não reconhecidos às unidades políticas equivalentes do resto do País? Passaremos a ter «um país, dois sistemas», como na China?
A liberdade e o desprendimento são condições do espírito reformista de que o nosso País carece. Mas é falta de discernimento dispensar o respeito pela identidade secular da cidade e enfraquecer o imperativo da proximidade entre eleito e eleitor.
Uma freguesia não se julga apenas pelo número de camas mas pelo número mutante de fregueses que a vive durante o dia. A dos Mártires (Chiado), por exemplo, criada por D. Afonso Henriques antes do Município, terá 400 habitantes durante a noite mas ultrapassa largamente os 40 mil durante o dia. Do mesmo modo não se pensa eliminar as freguesias dormitório favorecidas pelo desordenamento do território.
Reconheço que o actual modelo de gestão de 53 Freguesias em Lisboa, com dimensões territoriais e populacionais tão díspares, não é viável para atender aos fenómenos sociais emergentes de cidades mais frequentadas do que habitadas. Proponho, por isso, a criação de dez conjuntos de freguesias na Capital que favorecem a gestão autárquica sem o estrago social, histórico e político da extinção das freguesias. É também um modelo mais adaptável às exigências de cada época e exportável para cada concelho do nosso País. E será, com certeza, uma solução menos agressiva para os sentimentos de pertença das populações que merecem o nosso respeito e que devem ser considerados, também na perspectiva da segurança interna.
Uma machadada certeira no dispendioso universo empresarial da CML, o corte nas despesas correntes e uma avaliação criteriosa de cada um dos mais de 11 mil funcionários da CML obteria maiores ganhos e menos custos. Sem demagogia.

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segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

A caixa de Pandora

Confesso que nunca acreditei muito na lei das compensações, pelo menos na sua formação vulgata. Geralmente diz-se que os gregos eram muito racionais, inventaram a razão e outras trivialidades quejandas, mas esquecemo-nos que se trata de um dos povos com a mais fértil imaginação. Se a laboração intelectual dos celtas nos fosse mais perceptível talvez víssemos que a sua capacidade intelectual igualava o seu génio para a imaginação. Da mesma forma trata-se de povos que criaram tipos de uma imensa beleza física. É triste para os desprovidos, mas a natureza não é muito igualitária.

Um dos mitos gregos mais ricos e mais glosados é o da caixa de Pandora. Que este nome significa todos os dons, ou mesmo a totalidade na dádiva, que desta caixa saíram todas as desgraças do mundo, que a causa dessa desgraça foi a curiosidade e que no fundo ficou a esperança, todos nós sabemos igualmente. No entanto, poucos se apercebem da profundidade do mito e consequentemente da sua permanente actualidade. Na melhor das hipóteses achamos belo o conto e pouco mais.

O problema de tratar como infantis os mitos gregos é que isso é esquecer que é pela mesma razão que criaram mitos e criaram a ciência: porque eram efectivamente inteligentes, ou seja, estavam efectivamente despertos para a realidade.

Sejamos pois coerentes e vejamos a actualidade do mito. Há basicamente duas formas de se abrir uma caixa de Pandora: ou retirar o pão ou retirar a identidade. Quando ambos ocorrem em simultâneo a mistura é explosiva.

Hoje em dia a maioria dos representantes da dita extrema-esquerda (pouco extrema na verdade) tem pão na mesa. Não é bem pelo pão que reclama, nem sequer pela sua proletarização. Na maioria dos casos são recrutados de classes muito baixas que paradoxalmente estão melhor agora economicamente não apenas que os seus antepassados, mas que o que eram na infância. Reclama mais por frustração, por medo. Não por lhes retirarem uma identidade que nunca foi forte, mas por desesperarem de ter uma que tenha significado. Gostariam de ter privilégios aristocráticos, pelo que lhes mimam os tiques: o desprezo pelo dinheiro, pelo trabalho criador, pela disciplina. Avançam-se como arautos da liberdade (pretensão aristocrática se a há) e anseiam por um poder sacramental. A extrema-esquerda não é hoje em dia tão perigosa porque no fundo sabe bem que este sistema a favorece bem mais que qualquer outro. Dá-lhe emprego mais ou menos seguro, obnubila a sua mediocridade intelectual, social, estética. Vive bem no mundo de confusão porque é destituída de projecto em boa verdade, mas viveria mal com qualquer projecto. O seu paradigma é o travesti. Critica a sociedade capitalista, mas usufrui das suas vantagens, despreza a democracia, mas faz-se paladina das suas conquistas na medida em que favorecem os seus caprichos.

Ficamos assim sem saber quem são os deserdados e para onde eles vão? Quem, além de ver o seu pão diminuir, vê a sua identidade ser negada? São estes que tendem para as soluções de extrema-direita.

Quem vê o pão diminuir são os operários, classe aparentemente em vias de extinção, mas que com a longevidade da nossa época resiste e resistirá ainda por muitos anos. Os jovens sem emprego. Os habitantes dos subúrbios. Em acréscimo, e em grau mais agudo, os que são de origem europeia. Porque a estes é-lhes retirada qualquer identidade. O primitivo pode e deve ter orgulho de ser primitivo. O oriental deve ter orgulho da sua origem. O turco vem de uma imensa civilização. De que se pode orgulhar o europeu? De nada. As ciências, a arte, a música, a tecnologia, a filosofia europeias são afinal bens universais. Invocar a sua origem europeia é sinal de racismo. A Europa não tem direito ela mesma a ter origem, seja o cristianismo, seja o paganismo indo-europeu, porque como todos nós sabemos isso é racismo também.
O europeu em vias de proletarização, ou precarizado, é o verdadeiro desapossado. Duplamente desapossado. Economicamente, por uma globalização que lhe dizem inevitável e em que nada ganha, ao contrário do turco que se instala nos sistemas de segurança social europeus que para ele são comparativamente vantagem. O culturalmente desapossado, porque o que a sua cultura fez de bom é reivindicado pelo universo e nada do que o que constitui pode ser invocado como diferença.

A Europa é o único continente, ou melhor a única civilização, a que não é dado o direito de ter orgulho em si mesma. Sempre que há este duplo desapossamento quem ganha é a extrema-direita. E é ela que cresce na Europa, sobretudo entre os abandonados da globalização. Veja-se em França que os operários passaram do partido comunista directamente para o Le Pen, e na Alemanha de Leste passou-se rapidamente do socialismo real para o nazismo, o mesmo se passando na Polónia e na restante Europa Central.

Em vez de procederem a uma afirmação identitária saudável da Europa, os políticos europeus, (por pressão americana em parte, por pressão dos bem pensantes, dos nacionalistas e por pressão do capitalismo liberal – os programas são muito mais comuns do que se julga) continuam a não querer afirmar a identidade da Europa. Se bem se vir somos o único povo no mundo que não tem direito a identidade. Destituíram-nos do direito a uma antropologia, a rituais próprios, a fontes próprias. O europeu é o único homem despojado de uma antropologia, como se tivesse perdido irremediavelmente direito a ela por um pecado original de ser europeu. E esse jogo abre uma caixa de Pandora que já está em curso e neste momento acho difícil que pare.

Mas, pode-se contra-argumentar, criámos instrumentos na Europa que evitam o conflito. Instrumentos? Sim. Mas os instrumentos só são eficazes enquanto são alimentandos por uma substância. Só acredita em direitos humanos quem foi formado numa determinada concepção do homem. Quando se diz que essa concepção não nos caracteriza tudo é admissível. Os chineses e os sauditas dizem que respeitam os direitos humanos, mas na sua concepção de homem. Uma dialéctica meramente instrumental mostra a sua fragilidade, porque rapidamente é transformada no seu contrário.

Não espanta por isso que cresça a extrema-direita sob uma ou outra forma, com várias capas ou diversas dialécticas. O encobrimento não é exclusivo da extrema-direita. A extrema-esquerda e os muçulmanos “moderados" turcos, para quem conhece a sua História fazem o mesmo. O que é específico da extrema-direita na Europa é o total encobrimento, não apenas dos seus modos, como das suas fontes.

A extrema-esquerda é perigosa porque é eficaz. Dissolve a identidade europeia, e é aliada objectiva da política americana que quer fazer da Europa um espaço multicultural, bebe das mesmas fontes e conduz aos mesmos resultados geoestratégicos fundamentais (adesão turca, apagamento de referências clássicas, de educação disciplinada, etc.). A extrema-direita é perigosa porque é crescente e porque todas as forças políticas visíveis contribuem para o seu crescimento. Desapossados ora do pão ora da identidade, ora de ambos, cria-se na Europa uma classe crescente nas suas bases, de velhos e jovens largados à margem da sociedade e fora de qualquer possibilidade de legitimação identitária.

A extrema-direita é tanto mais perigosa quanto menos for ouvida, quanto mais for afastada do espaço da comunicação social, quando totalitários verdes, fúcsias, vermelhos e de outras cores têm livre-trânsito no espaço público. Ganha assim a aura do herói e da vítima de um só golpe. Os extremistas de direita não são obrigados a ser confrontados racionalmente com as suas contradicções e passam por ser isentos de contradicções.
Nos anos de 1920 o Mein Kampf era desdenhado com desprezo aristocrático pelas elites europeias, e alemãs sobretudo. É verdade que é um livro mal escrito. Mas em muitos aspectos portador de lucidez. Se alguém o soubesse ter lido em devida altura teria percebido tanto a legitimidade de algumas queixas como o horror de muitas soluções. Umas e outras foram descuradas e o resultado é conhecido. A política sub-reptícia que hoje em dia impera é a de conceder lentamente às pressões de extrema-direita, em matéria de segurança, imigração, nalguns planos sociais esparsos, nuns países mais abertamente que noutros (sobretudo na Europa do Norte e Central, enquanto a Europa latina continua seguindo a matriz anglo-americana – ironia do destino, a Inglaterra começa a abandonar essa matriz aos poucos).
Não deixa de ser irónico que se abra a caixa de Pandora, a caixa do dom total, quando se descura quem nada recebe. Que no fundo haja a esperança só é boa notícia para quem se esquece que é preciso descer ao fundo para que ela renasça. Numa Europa que descura o desapossamento económico e identitário muito se pagará por esta inépcia.



Alexandre Brandão da Veiga



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terça-feira, 25 de janeiro de 2011

II. Mehmed efendi. Le Paradis des Infidèles. Un ambassadeur ottoman en France sous la Régence. La Découverte. Paris. 2004.

Um outro testemunho curioso é o de outro turco do século XVIII (pp. 237 ss.). Ibrahim müteferrika. Ibrahim deixa claro que os cristãos são para ele um só povo (p. 238), que se consola das suas antigas perdas (para o Islão) conquistando novos territórios (p. 238). “Os muçulmanos, seja por ódio da sua religião (cristã), seja por abominação dos seus usos e costumes, sempre testemunharam uma grande aversão pelo conhecimento dos negócios destes reis e potências destas execráveis nações (cristãs)” (pp. 238-239).

As frases são eloquentes do imenso espírito de tolerância e amor que tiveram desde sempre os turcos pela Europa. Repare-se que se trata de um pró-europeu, um dos primeiros turcos a sê-lo, favorável a que se passe do mero desprezo à imitação.

O argumentário de Ibrahim é simples: devemos reconhecer a superioridade técnica da Europa e parasitá-la para melhor vencermos politicamente. O argumento já se viu no Japão do século XIX. Os argumentos de aproximação em relação à Europa são por isso meramente tecnológicos e de poder, nada têm a ver com o fascínio cultural e muito menos com a identificação.

Tenho obviamente que salientar viários aspectos metodológicos:
1) Não é pela recolha de duas simples fontes que se pode fazer uma tese, quando muitas outras haverá.
2) Mas a verdade é que quem conhece as restantes fontes, em geral europeias, não chega a conclusões mais simpáticas.
3) Mas a verdade igualmente é que estas são particularmente significativas, na medida em que representam o início de ligação da cultura turca a uma Europa que pela primeira vez têm de reconhecer como válida por si mesma. Estão aqui os monumentos fundadores (além da diplomacia com casa de Áustria e, em muito menor grau, a Inglaterra) de uma relação com a Europa que se baseia no mimetismo pela primeira vez e não pela simples vontade de conquista. O cerco de Viena não tinha muito mais de três décadas na altura em que estes documentos são escritos.

Sobretudo, e mais importante que isso, percebo que haja quem tenha o desejo de integrar a Turquia. Desejos, cada um tem os seus, e não seria condenador de quem adorasse chibatar-se a si mesmo em casa. Aplaudi-lo-ia e achá-lo-ia merecedor de tal prazer.

Mas uma coisa é um desejo, outra a argumentação. Não esgoto e nem sequer começo aqui a minha. Apenas destruo a falsa aparência de argumentação de muitos. Os que pretendem usar uma História que sempre rejeitaram e só conhecem sob a versão de slogan, que nunca se defrontaram com fontes, mas apenas com torneiras. O pergaminho não foi feito para mão de canalizadores. E que vivem bem de mentiras desde que lhes ajudem os desejos. Desejar fica com cada qual. A falsidade espalha-se pelo mundo.






http://www.akadem.org/sommaire/themes/histoire/3/4/module_1680.php

http://www.stratisc.org/IHCC_3.htm

http://www.tropismes.be/books/content_detail.html?id=537


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segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

I. Mehmed efendi. Le Paradis des Infidèles. Un ambassadeur ottoman en France sous la Régence. La Découverte. Paris. 2004.







O editor é conhecido pela sua simpatia pela Turquia e pela causa turca http://www.bibliomonde.net/pages/fiche-auteur.php3?id_auteur=272. O autor é um turco, ou melhor, um turquificado (não há diferença entre um e outro conceito, como se poderia demonstrar, o que deixo para outras núpcias). Não se pode por isso dizer que se trata de propaganda anti-turca.

Em 1720 é embaixador do sultão junto do rei de França. Pela primeira vez um embaixador turco em sentido próprio contacta o rei de França. Primeiro mito: o que afirma que os contactos entre a Europa e a Turquia desde sempre se fizeram ao mais alto nível. A França é o país com mais antiga aliança com a Turquia. O império da casa de Áustria o primeiro a receber uma embaixada de alto nível turca. A França o segundo. Numa perspectiva de longo prazo, os países que mais intensos e longos contactos tiveram com a Turquia (esquecendo obviamente os conquistados, destruídos ou pilhados, mas essa é mais uma vez outra demonstração) são exactamente mais são contra a sua natureza de país europeu.

Segundo lugar comum: a Turquia sempre fez parte da Europa e se sentiu parte da cultura europeia. O turco Mehmed bem pelo contrário mostra a absoluta alteridade entre a Europa e o império turco ainda em 1720: “ O mundo é o paraíso dos infiéis…” (p. 126).

Terceiro lugar comum que vemos na propaganda turca: tradicionalmente a mulher turca nunca sentiu o Islão como uma prisão, tendo tido sempre uma grande liberdade de movimentos. Que nos diz Mehmed? Que Paris não é maior que Constantinopla. Só o pode parecer porque as mulheres se passeiam nas ruas e por isso a cidade parece mais populosa do que é (p. 135). Coisa espantosa, esta das mulheres se passearem na rua! A libertação da mulher turca veio da Europa, assim como a da mulher libanesa, egípcia e japonesa.

Quarta afirmação temerária: a Turquia participou da revolução científica europeia. No entanto, Mehmed passeia-se por Paris espantado com os laboratórios, os observatórios astronómicos, os centros de investigação sem paralelo na sua cultura (v.g., pp. 147 ss.).

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segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

O que fazer com Antígona? IV

“Fui destinada a espalhar o amor e não o ódio”. Cito de cor, e forçosamente de forma atrevida. Como muitas vezes ao longo da História, alguém com as suas forças humanas tacteia e descobre apenas vislumbres, como se esperasse uma revelação. Em muitos outros casos temos prenúncios estranhos e por vezes abusivamente interpretados de uma antecipação cristã. Séneca com o seu exame de consciência. A célebre écloga de Virgílio em que anuncia a criança que mais não é que o “puer aeternus”. O deus desconhecido de Atenas. Ou ainda a crónica de Senanchton que fala de um filho bem-amado de um deus que teria sido crucificado. Temos sempre de ver esses anúncios com luvas de pelica. É solução fácil recusá-los, tanto como aceitá-los sem mais.

Não é fruto de acaso que Antígona seja uma das grandes campeãs da diferenciação sentimental. Não antecede o cristianismo, no sentido em que tenha percebido todas as suas implicações, mas no sentido em que lhe percebeu a necessidade para ser possível uma expansão do ser humano. Os factos de não ser catalogável, nem suscitar essa tentação em grau bastante, de separar o espaço público do privado em nome de deuses inferiores, não políticos, e de ser legitimista estão ligados entre si.

Antígona não é contra a ordem instituída. Quer restabelecê-la na sua plena verdade. Os que vêm levar a lei à sua compleição e não à sua destruição são os verdadeiros revolucionários. São os que encaram de frente a complexidade. Ao contrário dos que querem destruir as leis, todas elas, que são apenas birrentos sem projecto próprio, amuados com o passado só porque existe e os limita, os revolucionários sabem que o passado, por existir, pode ser fonte de força e só prende quando é vivido de forma simplista.




Alexandre Brandão da Veiga

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sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

O que fazer com Antígona? III

O segundo motivo de desconforto parece menos evidente. Porque no fundo Antígona opta pelo direito familiar (enterra um familiar morto) ao direito público (Jouanna viu-o bem). Em certo sentido, Antígona é uma das criadoras da separação entre o espaço público e o privado. O que diz é que o Estado tem limites na sua actuação na esfera privada. Nesse sentido seria antecessora da modernidade e pós-modernidade e deveria ser usada como referência permanente.

O problema é que não encontra melhor fundamento que a lei divina. Em acréscimo a lei dos deuses de baixo, que é respeitada até por Zeus. São os seus desuses inferiores que tutelam o espaço privado. Demasiada complexidade para a mente moderna. Invocar a lei divina e em acréscimo hierarquizá-la, mostrar que tem uma orgânica própria, algo de complexo demais para o suspiro pensativo do homem actual. Muito cansado anda ele sem pensar, quanto mais obrigá-lo a pensar.

Em terceiro lugar, é uma legitimista. Quem pretende ela enterrar? O irmão mais velho, Polinices. Em relação a Etéocles não mostra piedade. É certo que Creonte o quer enterrar com honras de Estado, por isso não se teria de preocupar com ele. Mas quando define o que seria um destino feliz fala no além com os seus pais e o seu irmão Polinices. De Etéocles nem uma palavra. Se bem virmos a explicação encontra-se em parte, não na tragédia com o nome desta heroína, mas no Édipo em Colona de Sófocles. Polinices é o irmão mais velho, é o legítimo herdeiro do trono. Etéocles é apenas um usurpador por não ter direito de primogenitura.

Antígona é uma legitimista. Os seus amores são ordenados, apesar de tudo. Uma coisa é a violação da ordem não consciente, a dos seus pais, que praticam incesto. Outra a consciente e voluntária, de usurpação. A clara diferença entre infracção voluntária e involuntária, tratada tecnicamente como essencial no direito, é esbatida numa moral algo frouxa que acha que a motivação explica mais que a vontade e que portanto a distância entre o voluntário e o involuntário, e as fronteiras da consciência, são factores menores, com limites esbatidos.

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quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

O que fazer com Antígona? II

Ao contrário de Electra, Jocasta ou Édipo, não se inventou complexo com o seu nome. Já seria algo mau que Freud tivesse usado a metáfora e não chamasse a atenção para o facto de ser uma metáfora. Nenhuma destas personagens adere aos complexos que ele descreve. Nem Édipo queria ir para a cama com a mãe, nem matar o pai, nem Jocasta queria ir para a cama com o filho. E nem sequer Jocasta tinha esse medo, e Édipo, que teve esse medo, fez tudo o que podia para não correr esse perigo.

Mas que Freud recorra aos conhecimentos filológicos do seu tempo e não os use plenamente já seria mau. Subtrai das personagens uma metáfora e não contribui assim em nada para a compreensão dos gregos nesta matéria. E lançou um equívoco, importante, mas algo pouco eficaz no mundo (quantos homens com impotência provocada pela diabetes tiveram de perder vinte anos da vida em psicanálise a tentar convencer-se que afinal a sua impotência se deveria a quererem ir para a cama com uma mãe que nunca desejaram, por exemplo?). Muito mais grave é que os seus apaniguados repitam escolasticamente as suas como verdades absolutas.

Sobra-nos pouco de Sófocles, apenas sete peças completas das mais de cem que ele terá feito. Sobram-nos apenas três tragediógrafos com peças completas, mas apenas escolhos da maioria delas. E estes três são apenas uma gota num oceano de criadores. É por isso quase impossível retirar ideias gerais justas sobre o que seja a cultura grega nesta sede.

Mas, mais importante que isso para a nossa época, é a necessidade de catalogação que a tem, obsessiva, tanto quanto se diz livre de preconceitos. São duas vertentes de uma mesma moeda.

Antígona não tem um complexo que a identifique e por isso é pouco manipulável. Ama o seu pai e irmão como pai apenas. É-lhe fiel. Continua fiel à mãe e ao irmão mais velho Polinices. Despreza a sua irmã Ismene e o seu irmão Etéocles. Enfim, ama e odeia sem se poder estabelecer um padrão rígido que explique esse amor e desamor de modo definitivo e catalogável. Ama e odeia como qualquer ser humano, o que as teorias mecânicas não admitem.

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quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

O que fazer com Antígona? I








Antígona pode estar na moda entre os intelectuais por mais um ou outro livro que a refira, mas a verdade é que é pouco citada, e sobretudo pensada, no espaço público. Em grande medida isto acontece pela profunda incultura clássica, em suma, incultura, da nossa época. Mas, apesar de tudo, algumas figuras e expressões ainda surgem. Édipo e Aquiles ainda oferecem uns dramas ou calcanhares ao mundo visível.

Já Antígona por sua vez anda muito calada. Não é a única. Efigénia, como as múltiplas faces da sua história, mereceria mais atenção. Dejanira das “Traquinianas” de Sófocles ou Medeia mereceriam bem mais atenção. Filoctetes ou Neoptolemo poderiam ser mais estudados. Seja, fiquemo-nos por Antígona, até porque aparece alvo de uma atenção um pouco maior de momento.

Porque é pouco usada como referência? É que Antígona suscita três grandes desconfortos na época actual. Não tem complexo com o seu nome, invoca a lei divina e é uma legitimista.

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quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Recordando Sophia III

Parece que Sophia dizia que “o socialismo é a aristocracia para todos”. Conheço esse ideal, porque foi o que durante vinte anos me moveu. Por isso Platão me chocou durante anos, bem como a crítica que fazia à democracia ateniense e o monstro que pretendia gerar na sua genial, mas triste, República. Mas Péricles morto, e o poder na mão de oportunistas e demagogos, a ralé sem desejo de igualdade, mas apenas pretendendo ser mais que os outros, tiraram-lhes as ilusões. Nesse aspecto a herança iluminista é mais lúcida. Como dizia Voltaire, esse grande antecessor da democracia como se diz: “ a democracia é o governo da canalha”. Mera proclamação como tantas que fez, ou resultado de maior reflexão? Com Voltaire nunca se sabe. Os seus apreciadores correm sempre o risco de serem por ele desprezados.

A desilusão de Sophia com a vida parlamentar é um reflexo de todo o horror ao mecanismo que sempre caracterizou o aristocrata. Para o bem e para o mal. A subtileza jurídica, a rotina fora da ideia, a inércia de movimento são aspectos tristes e pouco expansivos da vida. O burguês domina-os melhor, e tanto melhor que assim seja.

O que me pergunto é se a mistura de Grécia, catolicismo e aristocracia, que gera pessoas de imensa elevação, não pode ser perigosa para os próprios numa democracia que desce à realidade chã e passa a ser dominada pelos denunciantes de Sócrates e pelos comerciantes de ideais, os que os invocam em proveito próprio e de mais ninguém. O que diria Sophia se visse o espectáculo actual? Pura especulação.

Não compreendo os facciosismos. Leni Riefenstahl fez o único documentário político de génio com o Triunfo da Vontade e a única reportagem desportiva que tem nome pleno de arte e que ainda hoje em dia influencia o jornalismo desportivo, mera glosa lateral da sua grande obra. Nem a I República nem o 28 de Maio tiveram obra digna desde nome que os cantasse. O 25 de Abril tem. “O dia inteiro e limpo”.

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo.


Daqui a uns séculos será mais lembrado por quem o fez lembrar que pelo que aconteceu. Se nos preocupamos com os vencedores das Olimpíadas é Píndaro quem o conseguiu, não os atletas. Não me interessa saber se as pessoas são contra ou a favor do 25 de Abril, até porque à luz dos tempos nada é tão simples. Quem me disse bem de Sophia quando eu era criança era nuns casos forte opositor e noutros forte apoiante do regime salazarista. Essa grandeza de alma falta hoje muitas vezes na discussão no espaço público.

Hoje em dia achamos que é pieguice a ideia de um poeta imortalizar pessoas e eventos. Um duque de Saxe-Weimar que acolhe Goethe pôs Weimar no mapa do mundo graças a isso. Carlos Magno seria um pouco menos magno sem Alcuíno, ou Augusto sem Virgílio. E muita gente inteligente por esse mundo fora não perderia muito tempo com as Descobertas se não fosse Camões. Passámos da pieguice da omnipresença do criador, para a grosseria da sua ausência. Mas as obras que se guardam carinhosamente ao longo dos séculos não são relatos desportivos nem notícias sobre ministros. No desespero, na necessidade de escolha, e na medida do possível, são as grandes obras que se tentam salvaguardar. Tendo ido ao essencial, e tendo tentado viver o essencial, só posso ter o maior respeito pela obra e pela pessoa. E tenho pena que a democracia não a tome por modelo e prefira tomar por tal, não quem por ela se sacrificou, mas os seus beneficiários.








Alexandre Brandão da Veiga

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terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Recordando Sophia II

Amava a Grécia. É certo que não tinha a erudição de Hölderlin ou Goethe, mas isso diz muito das dificuldades culturais da época. Só quem andou procurando durante décadas livros das Belles Lettres e da Loeb (ou para quem pode, da Teubner) sabe como era difícil encontrá-los. Para além da velha Buchholz, nada havia em Portugal que os vendesse. Mas a sua ligação directa à terra permitiu-lhe intuir bem mais que muitos eruditos que fazem da filologia profissão. Despojada, apanhou mais de Arquíloco e Safo que muito estudante de filologia. Não era bem a terra que a inspirava, mas a capacidade de ver nela a ressonância das suas memórias. A sua ligação à Grécia era directa, menos intelectual, mas talvez por isso no seu caso muito vívida.

O seu estilo eleva-nos. Não é obrigatório que a literatura nos eleve. Pode-nos fazer cair no chão. Mas se se fica por nos deixar arrastar na lama, não nos dá a grandeza de Heráclito, mas apenas ar de pocilga. E a verdade é que é sempre mais difícil elevar que manter rasteiro.

O que mais me agrada nela é a ligação entre a personagem e a obra. A elevação não era um esforço, era uma tarefa inevitável. Nesse sentido era plenamente uma aristocrata, como sobram poucos, para a qual um mundo de evidências não limita, mas apenas enriquece. Uma problemática mal digerida apenas gera confusão. E não há criação sem certezas. Platão podia criticar Homero, mas não dita a sua existência.

Do que percebo, porque saliento que não sou especialista de Sophia, era a mesma elevação que a levou para a luta política. Conheci ao longo do tempo muitas pessoas do mesmo meio que lutaram contra os seus privilégios de classe, lutaram pelos outros, por uma concepção de justiça, sem terem nada a ganhar com isso. A luta do proletário pode ser justa, mas é forçosamente egoísta. Sei que está fora de moda, mas a luta do privilegiado contra os privilégios é sempre mais elevada.

Do que percebo, e nisso mais uma vez é uma personagem comovente, a sua história é uma repetição de um drama muitas vezes repetido ao longo dos séculos. É o segundo estado que toma a iniciativa de abdicar dos seus privilégios nos Estados Gerais da França pré-revolucionária, são aristocratas que proclamam os ideais igualitários da maçonaria e do iluminismo. A democracia ateniense é obra de três grandes aristocratas, Sólon, Clístenes e Péricles, e entra na grosseria quando o poder chega às mãos do povo recentemente promovido. E quando vemos a distância infinita que vai de um Churchill a uma Thatcher ou um Blair percebemos que a democracia mantém o seu viço quando não diz o seu verdadeiro nome, a de um regime misto.

Políbio e os estóicos elogiavam uma constituição mista de monarquia, aristocracia e democracia. Cícero acompanhou-os. Num mundo que se sentia velho, e tantas vezes o disse, é sinal de maturidade. O que dá esplendor a uma democracia é manter uma aristocracia e dela recolher uma figura humana que leva dezenas de gerações a produzir. Não é indo para a faculdade que se aprende o mais difícil e o essencial.

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segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Recordando Sophia I

A primeira vez que ouvi falar em Sophia de Mello Breyner era criança. Tinha em casa uns livros dela que li, mas confesso que não me lembro quais fossem. Diziam-me que eram muito bem escritos, que em Portugal, ao contrário de outros países como a Inglaterra, a literatura infantil não era grande coisa, mas que Sophia era um oásis nesse deserto. Poderia ser que sim, mas havia poucos livros infantis de que me recordo ter gostado realmente.

A vez seguinte que ouvi falar nela foi em Amarante, onde eu passava férias. Na Casa da Cerca indicaram-me um rapaz e disseram-me. É filho da poetisa Sophia de Mello Breyner. Era casa de poetas, onde a memória de Teixeira de Pascoaes ainda estava presente, e por isso era natural que não dissessem que era filho do Francisco de Sousa Tavares, mas da poetisa. Do que me lembro, o seu nome foi referido com o maior respeito. Era uma poetisa, uma verdadeira.

Leio pouca literatura contemporânea, devo confessar. Em parte por tempo, em parte por gosto. Não se pode aprender tudo, não se pode ler tudo. E como sempre gostei muito de ciência, sobretudo de matemática, e de literatura grega e romana, não me dediquei muito à obra de Sophia. Do que conheço, lembro-me apenas de uns lugares comuns, o que só vai em meu desfavor e não dela.

Também não gosto de falar de autores contemporâneos, ou em geral de pessoas contemporâneas, porque sei que isso suscita o discurso de ódio em que nunca se discutem ideias, mas apenas gostos e desgostos sem fundamentação, o que sempre achei pobre. Salientar alguém que nos é contemporâneo pode sempre gerar o “a contrario”: “se ele não fala desta e daquela pessoa é porque as acha medíocres”. O que é uma generalização apressada, mesmo que em algumas situações possa ser justa.

Mas por mais que se queira, quando um conjunto de pessoas, cuja opinião respeitamos, só nos diz bem de alguém, algum reflexo isso tem. No meu caso, começou por ser o da curiosidade. E quanto mais sei da pessoa, mais me suscita o respeito. E quanto mais vejo da obra, mais lhe admiro o estilo.

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