A caixa de Pandora
Confesso que nunca acreditei muito na lei das compensações, pelo menos na sua formação vulgata. Geralmente diz-se que os gregos eram muito racionais, inventaram a razão e outras trivialidades quejandas, mas esquecemo-nos que se trata de um dos povos com a mais fértil imaginação. Se a laboração intelectual dos celtas nos fosse mais perceptível talvez víssemos que a sua capacidade intelectual igualava o seu génio para a imaginação. Da mesma forma trata-se de povos que criaram tipos de uma imensa beleza física. É triste para os desprovidos, mas a natureza não é muito igualitária.
Um dos mitos gregos mais ricos e mais glosados é o da caixa de Pandora. Que este nome significa todos os dons, ou mesmo a totalidade na dádiva, que desta caixa saíram todas as desgraças do mundo, que a causa dessa desgraça foi a curiosidade e que no fundo ficou a esperança, todos nós sabemos igualmente. No entanto, poucos se apercebem da profundidade do mito e consequentemente da sua permanente actualidade. Na melhor das hipóteses achamos belo o conto e pouco mais.
O problema de tratar como infantis os mitos gregos é que isso é esquecer que é pela mesma razão que criaram mitos e criaram a ciência: porque eram efectivamente inteligentes, ou seja, estavam efectivamente despertos para a realidade.
Sejamos pois coerentes e vejamos a actualidade do mito. Há basicamente duas formas de se abrir uma caixa de Pandora: ou retirar o pão ou retirar a identidade. Quando ambos ocorrem em simultâneo a mistura é explosiva.
Hoje em dia a maioria dos representantes da dita extrema-esquerda (pouco extrema na verdade) tem pão na mesa. Não é bem pelo pão que reclama, nem sequer pela sua proletarização. Na maioria dos casos são recrutados de classes muito baixas que paradoxalmente estão melhor agora economicamente não apenas que os seus antepassados, mas que o que eram na infância. Reclama mais por frustração, por medo. Não por lhes retirarem uma identidade que nunca foi forte, mas por desesperarem de ter uma que tenha significado. Gostariam de ter privilégios aristocráticos, pelo que lhes mimam os tiques: o desprezo pelo dinheiro, pelo trabalho criador, pela disciplina. Avançam-se como arautos da liberdade (pretensão aristocrática se a há) e anseiam por um poder sacramental. A extrema-esquerda não é hoje em dia tão perigosa porque no fundo sabe bem que este sistema a favorece bem mais que qualquer outro. Dá-lhe emprego mais ou menos seguro, obnubila a sua mediocridade intelectual, social, estética. Vive bem no mundo de confusão porque é destituída de projecto em boa verdade, mas viveria mal com qualquer projecto. O seu paradigma é o travesti. Critica a sociedade capitalista, mas usufrui das suas vantagens, despreza a democracia, mas faz-se paladina das suas conquistas na medida em que favorecem os seus caprichos.
Ficamos assim sem saber quem são os deserdados e para onde eles vão? Quem, além de ver o seu pão diminuir, vê a sua identidade ser negada? São estes que tendem para as soluções de extrema-direita.
Quem vê o pão diminuir são os operários, classe aparentemente em vias de extinção, mas que com a longevidade da nossa época resiste e resistirá ainda por muitos anos. Os jovens sem emprego. Os habitantes dos subúrbios. Em acréscimo, e em grau mais agudo, os que são de origem europeia. Porque a estes é-lhes retirada qualquer identidade. O primitivo pode e deve ter orgulho de ser primitivo. O oriental deve ter orgulho da sua origem. O turco vem de uma imensa civilização. De que se pode orgulhar o europeu? De nada. As ciências, a arte, a música, a tecnologia, a filosofia europeias são afinal bens universais. Invocar a sua origem europeia é sinal de racismo. A Europa não tem direito ela mesma a ter origem, seja o cristianismo, seja o paganismo indo-europeu, porque como todos nós sabemos isso é racismo também.
O europeu em vias de proletarização, ou precarizado, é o verdadeiro desapossado. Duplamente desapossado. Economicamente, por uma globalização que lhe dizem inevitável e em que nada ganha, ao contrário do turco que se instala nos sistemas de segurança social europeus que para ele são comparativamente vantagem. O culturalmente desapossado, porque o que a sua cultura fez de bom é reivindicado pelo universo e nada do que o que constitui pode ser invocado como diferença.
A Europa é o único continente, ou melhor a única civilização, a que não é dado o direito de ter orgulho em si mesma. Sempre que há este duplo desapossamento quem ganha é a extrema-direita. E é ela que cresce na Europa, sobretudo entre os abandonados da globalização. Veja-se em França que os operários passaram do partido comunista directamente para o Le Pen, e na Alemanha de Leste passou-se rapidamente do socialismo real para o nazismo, o mesmo se passando na Polónia e na restante Europa Central.
Em vez de procederem a uma afirmação identitária saudável da Europa, os políticos europeus, (por pressão americana em parte, por pressão dos bem pensantes, dos nacionalistas e por pressão do capitalismo liberal – os programas são muito mais comuns do que se julga) continuam a não querer afirmar a identidade da Europa. Se bem se vir somos o único povo no mundo que não tem direito a identidade. Destituíram-nos do direito a uma antropologia, a rituais próprios, a fontes próprias. O europeu é o único homem despojado de uma antropologia, como se tivesse perdido irremediavelmente direito a ela por um pecado original de ser europeu. E esse jogo abre uma caixa de Pandora que já está em curso e neste momento acho difícil que pare.
Mas, pode-se contra-argumentar, criámos instrumentos na Europa que evitam o conflito. Instrumentos? Sim. Mas os instrumentos só são eficazes enquanto são alimentandos por uma substância. Só acredita em direitos humanos quem foi formado numa determinada concepção do homem. Quando se diz que essa concepção não nos caracteriza tudo é admissível. Os chineses e os sauditas dizem que respeitam os direitos humanos, mas na sua concepção de homem. Uma dialéctica meramente instrumental mostra a sua fragilidade, porque rapidamente é transformada no seu contrário.
Não espanta por isso que cresça a extrema-direita sob uma ou outra forma, com várias capas ou diversas dialécticas. O encobrimento não é exclusivo da extrema-direita. A extrema-esquerda e os muçulmanos “moderados" turcos, para quem conhece a sua História fazem o mesmo. O que é específico da extrema-direita na Europa é o total encobrimento, não apenas dos seus modos, como das suas fontes.
A extrema-esquerda é perigosa porque é eficaz. Dissolve a identidade europeia, e é aliada objectiva da política americana que quer fazer da Europa um espaço multicultural, bebe das mesmas fontes e conduz aos mesmos resultados geoestratégicos fundamentais (adesão turca, apagamento de referências clássicas, de educação disciplinada, etc.). A extrema-direita é perigosa porque é crescente e porque todas as forças políticas visíveis contribuem para o seu crescimento. Desapossados ora do pão ora da identidade, ora de ambos, cria-se na Europa uma classe crescente nas suas bases, de velhos e jovens largados à margem da sociedade e fora de qualquer possibilidade de legitimação identitária.
A extrema-direita é tanto mais perigosa quanto menos for ouvida, quanto mais for afastada do espaço da comunicação social, quando totalitários verdes, fúcsias, vermelhos e de outras cores têm livre-trânsito no espaço público. Ganha assim a aura do herói e da vítima de um só golpe. Os extremistas de direita não são obrigados a ser confrontados racionalmente com as suas contradicções e passam por ser isentos de contradicções.
Nos anos de 1920 o Mein Kampf era desdenhado com desprezo aristocrático pelas elites europeias, e alemãs sobretudo. É verdade que é um livro mal escrito. Mas em muitos aspectos portador de lucidez. Se alguém o soubesse ter lido em devida altura teria percebido tanto a legitimidade de algumas queixas como o horror de muitas soluções. Umas e outras foram descuradas e o resultado é conhecido. A política sub-reptícia que hoje em dia impera é a de conceder lentamente às pressões de extrema-direita, em matéria de segurança, imigração, nalguns planos sociais esparsos, nuns países mais abertamente que noutros (sobretudo na Europa do Norte e Central, enquanto a Europa latina continua seguindo a matriz anglo-americana – ironia do destino, a Inglaterra começa a abandonar essa matriz aos poucos).
Não deixa de ser irónico que se abra a caixa de Pandora, a caixa do dom total, quando se descura quem nada recebe. Que no fundo haja a esperança só é boa notícia para quem se esquece que é preciso descer ao fundo para que ela renasça. Numa Europa que descura o desapossamento económico e identitário muito se pagará por esta inépcia.
Alexandre Brandão da Veiga
Alexandre Brandão da Veiga
3 comentários:
Sim... talvez tenha razão....
Ricardo J.
Tem alguma mas pouca
a generalização nos tipos de beleza
subjectiva e na imaginação de povos com cultura oral mas não escrita que tenha sobrevivido aos tempos e com uma escultura mais primitiva
deixava antever coisas destas
Na maioria dos casos são recrutados de classes muito baixas
Adonde a maior parte vem de classes médias com alguma formação
muito recrutamento nas universidades
e o texto
gigantesco
é mais um tratado que uma análise séria
A diké julgará. boa semana
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