segunda-feira, 31 de maio de 2010

Valores, poder e interesses

Neste abatido espaço público que invade a Europa encontramos a discussão política crivada de tópicos argumentativos cada vez mais erráticos, desconexos, sem tino. Os argumentos apelam para os perigos, logo, para os medos, ou para o direito, logo para a formalidade. É preciso lutar contra o terrorismo, ou outros novos perigos, ou então temos de seguir as formas do Direito internacional. Discute-se pedagogia (como ensinar bárbaros a não queimar embaixadas, ou então igrejas, ou talvez mesquitas), discutem-se eficácias duvidosas.

Sou tentado a lembrar dois tópicos que me vêm à mente. De um lado a teorização dos regimes políticos dos gigantes Platão e Aristóteles, lembrando que cada forma de regime tem a sua versão degenerada, e uma referência de Thomas Mann no seu diário em meados dos anos 30, lembrando como as populações, e quanto mais politizadas internamente, podem ser cegas para as relações internacionais, que são de poder.

No que me respeita nunca idolatraria a simplicidade pela simples simplicidade, se isso significa empobrecimento. Mas para meu uso interno, e sinto-me bem acompanhado na História, parece-me que a política só se pode analisar de forma completa caso se tenham em conta os valores, mas igualmente os interesses e o poder. Em cada facto político de relevo (não falo do anedótico ou do meramente tribal) pergunto-me que valores se defendem, que interesses se protegem, que equilíbrio de poder se gera. Parece-me simples e bastante completo.
Um dos problemas do século XX (a que pertencemos e que não abandonámos ainda, por mais que propaganda contrário diga o inverso) é o unilateralismo. Uns apegam-se aos valores como se de religião se tratasse. Outros vêem tudo como um jogo de interesses. Outros ainda vêem sede de poder. Análises em que confluem todos estes aspectos são escassas.

O problema é que cada uma destas formas, quando vistas unilateralmente, geram formas degeneradas de se compreender a política.

A obsessão com o poder gera a crueldade desabrida. Os Europa o exemplo máximo é o do nazismo, ou por forças exteriores a ela, a de muitas conquistas: hunos, turcos, tártaros, mongóis são movidos por ânsia de poder no seu estado mais destilado. A degeneração da política em simples poder gera a soberba grosseira, a cegueira, a falta de testemunho e uma vitória fugaz. Não deixa marca, não deixa rastro, não deixa boa memória. É a política dos soldados de fancaria.
A obsessão com os interesses gera a mesquinhez grosseira, acabando muitas vezes num jogo pelo puro prazer do jogo, em que se envolveram com frequências diplomacias europeias da época Moderna. O jogo de espelhos caracteriza-a, e acaba por lhe destruir qualquer sentido útil. É a política dos fanqueiros de pacotilha.

A obsessão com os valores gera a cegueira perante os modos de realização a longo prazo, e acaba por redundar no mero formalismo do cumprimento dos rituais da ordem nacional e internacional, num discurso tartufo, beato, que desemboca sempre na vida pobre do homem que é o mero Direito. É a política dos juristas de feira.

Mas ter poder em si mesmo é essencial. Sem poder não há liberdade empírica. Poder é poder decidir, poder fazer o que se quer, poder dar prevalência aos nossos interesses quando assim entendermos. Os interesses em si mesmos não são pecaminosos. Uma criatura sem interesses é não só desinteressada, mas sobretudo desinteressante. Ter interesses é “estar entre”, “inter esse”. Quem não defende os seus interesses, quem não os tem claros, não sabe onde está e é bem capaz de ser obrigado a abandoná-los. Os valores não significam apenas numa versão piegas de cristianismos de substituição, uma lacrimejante postura perante o mundo. A confiança em si, o orgulho no que se é, a ambição, são igualmente valores que a Europa soube cultivar durante milénios.

O problema é de definir o espaço relevante desta tríplice união. Quem o assenta no Estado nacional poderá faze-lo se for chinês, americano ou indiano. Se for europeu reduz-se à impotência. Este simples teste mostra-me que o espaço nacional não pode ser na Europa o principal centro de formação de poder, sob pena de impotência.

Se assim é, resta saber se existem interesses comuns que sejam mais importantes que as fronteiras nacionais. Porque sem eles qualquer união de poderes fica vazia de motivo. E os europeus têm mais interesses em comum que divergências. Participam dos mesmos fenómenos de sociedades, dos mesmos problemas demográficos, da mesma situação geográfica, das mesmas ameaças, políticas, étnicas e económicas. No entanto, se junto ao meu vizinho puder ser mais forte e tiver interesses partilhados, pouca solidez tem esta construção se não se basear em valores comuns. Os interesses têm o problema de serem muito variáveis na sua configuração concreta e por isso é natural que, vistos na perspectiva curta, sejam muitos diversos dos do meu vizinho. Só posso aceitar sacrificar interesses de curto prazo se vir que existem outros de longo prazo que merecem esse sacrifício.

Mas se o jogo se basear apenas em interesses, dificilmente posso fundar uma realidade tão irracional quanto uma unidade política. Porque, convenhamos, uma medida de política é sempre irracional em muitos aspectos. Todos os que têm alguma diferenciação sentiram mais afinidades com pessoas de outras nacionalidade que com a maioria dos seus concidadãos. Um escritor, um amigo, um cientista, um movimento de outros países é-nos mais próximo que o nosso vizinho de prédio. Podemos ter mais interesses em comum com o nosso vizinho mas mais afinidades com alguém longínquo. A nossa vida, e também a colectiva, é feita de união de valores. E os valores da Europa sempre foram mais comuns que diversos. Os movimentos culturais, de populações, sociais, de sentimentos sempre foram mais ou menos síncronos na Europa. A mútua contaminação desde sempre existiu. E esses valores comuns só numa perspectiva limitada se poderiam reduzir à democracia, à economia de mercado ou a estruturas jurídicas. O que de melhor há na vida vai para além disso. E fazer uma união apenas com base em instrumentos é apenas empobrecedor.

O facto de o discurso político não saber integrar estas três frentes mostra mais uma das vertentes da infantilização do espaço público, tratando os destinatários como atrasados mentais ou meros espectadores de um ballet. Esquerda, direita, progressistas e conservadores e outros conceitos mais ou menos vazios de sentido enchem um espaço falho de reais ideias e vão manchado as páginas dos jornais e distraindo as gentes.
O paradoxo é o de se obrigar o discurso político a um duplo registo: quando são políticos a falar devem falar sobretudo de valores. Quando são comentadores devem falar sobretudo de interesses. Quando muito de poder.

Uma política que não queira poder não existe. É pura farsa. Uma política sem valores é puro capricho. E uma sem interesses é pura perda de tempo. Uma Europa que não se construa segundo estes três eixos é uma Europa feita de lerdos para lerdos, uma canção de embalar contada a crianças por encantadores de serpentes. Imagina-se o que quem as conta julga ter à frente.

O realismo político tem de ter em conta sempre estes três eixos. E num espaço público recheado de anões, apenas podemos exigir que ao menos sejam adultos. E que se abandone a infantilização do discurso. Os seus portadores perdem tempo fazendo-se crianças. E os seus destinatários merecem mais que isso.

Alexandre Brandão da Veiga

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quarta-feira, 26 de maio de 2010

Conservadores e progressistas

No clássico livro de Kirk sobre o estado de espírito conservador (talvez melhor tradução para o “The Conservative Mind”, que “o pensamento conservador”), surge uma fileira de criaturas, a maior parte das quais decentes, embora nem todas, mas em geral, convenhamos, muito pouco eróticas. Tirando o conde de Tocqueville, esse grande estudioso da democracia e o sempre comovente Burke, poucas personagens me suscitam real interesse. Se o livro não fosse tão centrado no mundo anglo-americano, o que não lhe retira interesse, mas torna-o algo provinciano, poderia referir nomes tão ou mais importantes do pensamento conservador e bem mais excitantes, como Ortega y Gassett, Thomas Mann, Chateaubriand, Popper, Goethe, Baudelaire e De Maistre, cada um no seu género e à sua maneira bons representantes do pensamento conservador.

A primeira ideia popular é a de que não existe um pensamento conservador. Um conservador não pensa, apenas existe. De seguida surge outra ideia difusa, a de que o conservador se opõe ao progresso, logo ao desenvolvimento económico, à democracia. O mundo mais uma vez é simples e está explicado.

Como a destrinça entre a esquerda e a direita, que cheira mais a explicativa do que sabe, a divisão entre conservadores e progressistas é frequentemente artificiosa, fonte de equívocos e pouco útil.

Há basicamente duas espécies de progressistas. Uns definiram de antemão o que seja o Futuro da humanidade. E tudo o que se desvie desse futuro que conhecem por iluminação divina deixa de ser progressista. Atenção porque este futuro foi incarnado por laicos, radicais, comunistas, mas também pelos sacerdotes da economia de mercado e da democracia como forma última e mais perfeita da humanidade. São os progressistas escatológicos. A segunda espécie de progressistas é composta dos que estão insatisfeitos com o que existe só porque existe. Por isso aceitam qualquer mudança. O facto de ser mudança já é bom. São os progressistas fracturantes.

Há igualmente duas espécies básicas de conservadores. Uns reconhecem não apenas coisas boas no passado, mas crêem que a vida é tradição, ou seja, passagem de testemunho. São os conservadores tradicionalistas. Outros recusam a mudança porque o passado é sempre melhor que o futuro. São os conservadores passeístas.

A destrinça entre conservador e progressista tem a ver com a relação do homem com o tempo. Nada tem a ver com a destrinça entre revolucionários e reformadores. Houve revoluções conservadoras e mesmo reaccionárias (Savonarola, Juliano o Apóstata) e reformas notoriamente progressistas (as de Bismarck na Alemanha ou as de Adenauer ou De Gaulle). A grande diferença entre um revolucionário e um reformador tem a ver não com o tempo directamente, mas com a velocidade.

Se conservador e progressista são conceitos que têm a ver com o passado e o futuro questão diversa é a que os distingue em relação ao presente. Os dois extremos que definem esta distinção encontram-se nos reaccionários e oportunistas. O reaccionário é o que nega o presente, seja em nome do passado ou do futuro, o oportunista é o que o aceita por uma ou outra razão. Oportunista é um conceito francês do século XIX, como tantos outros em uso na política, e que não tem a carga negativa que depois se deu. Oportunista é o que aproveita a oportunidade, embora tenha de se reconhecer que tipicamente o faz sem grande elegância.

Existem por isso toda a espécie de combinatórias nesta matéria. Há conversadores oportunistas e reformadores (Disraeli e Bismarck), reaccionários revolucionários (conservadores como Mao Tse Tung ou progressistas como Robespierre), progressistas reformistas reaccionários (como Thatcher) e assim por diante.

O grande problema é que estas destrinças mais uma vez têm um significado político muito variável e muitas vezes o mesmo projecto é defendido por conservadores e progressistas de toda a espécie. É esse o caso do projecto europeu.

Quem são os conservadores? A resposta a esta pergunta mostra a vacuidade do conceito. Conservadores são os de da esquerda à direita defendem um conceito de Estado-Nação forjado no século XIX. Conservadores igualmente os que defendem uma Europa meramente burocrática tal como criada nos anos de 1950. Conservadores o que em França lutam pela manutenção dos acquis sociaux. Mas igualmente os que em Inglaterra pretendem manter uma concepção de mercado construída um quarto de século antes. Conservador Brejnev que tenta manter a gerontocracia no poder. Conservadoras as democracias que se pretendem impor como modelo ao mundo. Conservadores os que da esquerda à direita têm uma concepção da Europa baseada no fim dos anos de 1940, em que a Europa é a Europa NATO, e em consequência querem a Turquia na União Europeia. Conservadores estes e tantos outros que em miscelânea vaga se comprazem de tudo e de coisa nenhuma.

Progressistas, conservadores, reformistas revolucionários, oportunistas e reaccionários são todos eles conceitos ligados ao tempo de uma forma ao de outra, ao passado ao presente, ao futuro ou à velocidade. Nada nos dizem sobre conteúdos. Têm a vantagem sobre as ideias de esquerda e direita, que em si nada dizem e apenas resultam de falta de imaginação topológica, de ao menos em cada época histórica nos permitirem definir um movimento, um vector, se se quiser. Mas exactamente por isso nada nos dizem sobre os conteúdos que se defendem. Defender a protecção social é progressista no século XIX, conservador no XXI. Defender o mercado pode ser progressista ou conservador consoante os momentos históricos.

É evidente que colocado em cada momento histórico e em cada situação ser conservador ou progressista ou revolucionário e assim por diante não é irrelevante. Como figuras vectoriais que são podem ser muito importantes para conformar as vidas das pessoas, para lhes modificar a maneira de estar, de viver, de sentir. Mostram direcções e sentidos sob o ponto de vista geométrico, denotam forças em acção. Mas mais uma vez nada dizem sobre para onde nos dirigimos, o que queremos, o que nos interessa, o que nos move.

No entanto, têm sido estes os conceitos sobre os quais se tem construído o discurso político dos últimos duzentos anos. Sobre meras metáforas temporais ou espaciais primitivas como estas se tem tentado dar algum sentido ao discurso político, quanto nenhum destes conceitos transporta em si nenhum sentido. Se conseguíssemos transformar o discurso em imagens teríamos como que um ballet em que uns se dirigem mais para um lado da cena e outros para outro, uns saltam mais depressa, outros fazem piruetas, outros ainda aceitam o solo em que pisam, ou outros ainda pretendem escapar à força da gravidade. Conceitos mais potentes pelo fascínio que concedem que pela sua força explicativa, mostram um discurso político que se resguarda em meros símbolos e perde todo o contacto com a realidade.

Mas tendo eu criticado as mais simbólicas traves mestras do discurso político da nossa época longa, vejo-me obrigado a fornecer uma alternativa. Para quem queira ver a política com olhos adultos, ela tem de se basear numa tripla ideia: poder, valores e interesses. É sobre esses três eixos que toda a política deve ser analisada, e no caso que me interessa, a política europeia. É pois de um discurso político adulto que tentarei tratar da próxima vez.



Alexandre Brandão da Veiga

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terça-feira, 25 de maio de 2010

Era assim

O Jardim do Príncipe Real reabriu ao público com 54 árvores abatidas e 380 mil euros gastos em candeeiros, bancos, saibro, tubinhos de rega e plantação de algumas árvores dos viveiros da CML.
A obra teve início em Novembro de 2009 sem o aval obrigatório da Autoridade Florestal Nacional e do IGESPAR. A primeira deve pronunciar-se sempre que algum galho é cortado num raio de 50 metros de uma árvore classificada. É importante que assim seja porque as alterações abruptas da incidência do sol numa árvore de referência podem ditar o anúncio da sua morte. Naquele jardim existem quatro árvores classificadas o que faz o perímetro de todo o espaço verde. Também o IGESPAR não foi ouvido em tempo útil. Só quando já tinham sido abatidas mais de 50 árvores daquele património florestal e a Junta de Freguesia e um grupo de cidadãos se revoltou é que o Vereador Sá Fernandes captou as assinaturas necessárias, entre um Domingo e um Feriado, com o estrago patrimonial já no chão.
A operação fitossanitária era necessária. Mas o que aconteceu foi um realinhamento sumário do coberto florestal, que envolveu o abate de árvores doentes e saudáveis. Um jardim romântico não pede este tipo de ordenamento paisagístico. Pelo contrário. É do seu «acaso» que lhe vem a traça e a beleza. O que lá temos agora é um espaço mais iluminado, e bem, mais arrumado de bancos e circuitos, e bem. Com os inevitáveis tubinhos de rega, como se estivessemos num resort construído no ano passado num destino turístico, Pour épater le bourgeois. E não se diga que a vegetação vai cobrir. Não vai. O sistema contínuo da tubagem é tão moderninho e prático como desventrado e visível. E, certamente, nada tem a ver com o restauro de um jardim romântico num bairro antigo de Lisboa.
José Sá Fernandes, que constituiu o seu ADN político com a bandeira da severidade e da vigilância, o cavaleiro solitário amante desinteressado da Cidade de Lisboa, verdadeiro Torquemada da exigência processual, vai perdendo as suas máscaras. Para não ser fariseu da política, teria de ter tido razão quando acusou outros - coisa que nem os Tribunais têm confirmado; e teria de praticar igual ou maior exigência consigo próprio, uma vez no poder.
Mas pergunta depois de abater; explica depois da revolta; e desenha o restauro do caos saudável a régua e esquadro. Um susto.

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quinta-feira, 20 de maio de 2010

Quem é Cavaco Silva?


As palavras de Cavaco Silva na despedida de Bento XVI deixavam adivinhar um Presidente da República corajoso, livre de complexos sobre a laicidade do Estado (sem a comprometer), fiel representante dos anseios da imensa maioria dos portugueses. Teríamos homem? Rapidamente alguém esclareceu: «Então não o conhece? Vamos ver se não está a preparar o caminho para aprovar a leizinha».
Deixemos o conteúdo da lei que permite o Casamento de homosexuais.
Quem é Cavaco?
Um equilibrista que compromete os mandatos que lhe são confiados pensando no percurso que lhe falta percorrer?
Ou um verdadeiro político que destingue as questões de Estado das confissões pessoais?
O que foi a sua vida política? Esteve com o esplendor de Sá Carneiro. Evitou Balsemão na trágica herança. Combateu o Bloco Central (83 - 85) depois da dificuldade das contas, antevendo a prosperidade dos fundos europeus (86).
Teve equilíbrio para acompanhar a onda do novo ciclo, durante dois mandatos. Ultrapassou, com mérito, a derrota nas autárquicas, alcançando uma segunda maioria, no início da década de 90. Pelo caminho, fez a revisão Constitucional (89), que libertou a economia do Estado, e uma reforma fiscal que rendeu frutos. Aproximou o País com alcatrão, fez a expo e recuperou a confiança do mercado interno.
Mas funcionou sempre com a segurança das maiorias (a minoria 85 - 87 foi propedeutica). Sentindo dificuldades na corrida a Belém, traíu o seu braço direito e herdeiro, Fernando Nogueira e, por uma vez, estampou-se com calculado tabu sobre as Presidenciais.
Usou o deserto de dez anos na Academia (95 - 05) para consumo interno: «pontuou» nos artigos sobre o «Monstro» criado por Guterres e sobre a «boa e má moeda» em Novembro de 2004, apunhalando o XVI Governo Constitucional. Pouco depois, com o mesmo cálculo, recusaria o uso da sua fotografia num cartaz das Legislativas do PSD de Fevereiro de 2005 onde surgiam todos os líderes desde a fundação do partido. Cavaco sabia que não seria eleito com um Governo laranja.
Eleito pela Direita, fez um festim de cooperação institucional com Sócrates. Aprovou a Lei do Aborto sem que o Referendo tenha tido uma participação maioritária, como a Constituição impõe. Irritou-se (e bem) com o novo Estatuto dos Açores que lhe pisou os calos e inverteria os poderes do Estado e aprova agora a Lei do Casamento entre pessoas do mesmo sexo, contra todas as razões que soube identificar e que são reais. O veto estava ao seu alcance e ninguém, à esquerda ou à direita, levaria a mal que o usasse. Afinal, foi eleito sem dizer que, consigo, esta lei passaria sem qualquer dificuldade.
Terá uma agenda direitíssima até ao final do mandato apostando na memória curta de quem o elegeu. Mas, para vencer as eleições, basta a qualquer adversário fazer um replay da última intervenção do PR. «Sou muito direito, quando as circunstâncias pessoais o permitem. Contem com o meu cálculo. Comigo, não».

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terça-feira, 18 de maio de 2010

Por onde anda a antropologia científica? II

E eis que chega um senhor chamado René Girard. Vem da análise documental e passa pelo estudo da literatura e eis que entra na antropologia. E pela primeira vez encontro um antropólogo que não se basta com essa divisão entre primitivos e civilizados. Todas as culturas humanas em todos os seus estádios podem finalmente passar pelo mesmo crivo.

O problema é que recorre para esse efeito a outros dois centros bem diversos de análise: o mimetismo e a Bíblia. A crucifixão separa o arcaico do cristão. Pecado infame, é bom de se ver. Para os senhores antropólogos instalados nas suas cátedras, debitando em sebentas lições contra a escolástica, opinião vinda de fora apenas pode ser bárbara, herética.

O mimetismo tem um papel na cultura do século XX bem maior do que gostaríamos de aceitar. Mais um dos conceitos de Aristóteles, o tal velho já ultrapassado, que nos volta a perseguir. Na etologia, da economia com Hayek, e na antropologia renasce independentemente sempre com maior força.

E a Bíblia, centro de saber científico? Ainda mais abominável que Aristóteles ou o pensamento liberal. A Bíblia é tudo o contrário da ciência, qualquer criança aprende isso na escola. É dogma estabelecido, não pode ser contestado.

Mas Girard lembra-se de salientar um pequeno pormenor que poucos tinham visto, salvo os mais atentos à eucaristia: a vítima é inocente. Há um antes e um depois desta declaração de evidência da inocência da vítima. Os antigos tentaram adoçar ou obnubilar a crueza do sacrifício (os Vedas são bom e poético exemplo disso), mas pela primeira vez na Historia existe uma vítima plena e absolutamente inocente. E toda a História muda com esse facto. O problema da cruz não é questão para beatas inconsoláveis escudadas intelectualmente em pouco mais que o missal, é afinal o centro que corta as civilizações em dois.

Horror, sacrilégio, blasfémia, grita o dito cientista humano, o comentador político, o jornalista, puxando do seu lenço e dos seus sais enquanto disfarça um chilique. Enquanto apresenta sinais de afrontamento vai lançando os seus anátemas, que na sua linguagem são o de anti-científico, etnocêntrico, reaccionário.

O que não percebe o novo escolástico é que neste aspecto Girard completa a corrente que vem de Harnack, Overbeck... e Nietzsche.

A antropologia liberta-se assim dos seus centros de gravidade. Finalmente. O primitivo e o imperial cedem o terreno ao mimetismo e à Bíblia.

Acredito eu totalmente no poder explicativo do mimetismo?

De um só golpe trespassa a antropologia e põe em forte queda a natureza primitiva do desejo. Exit Freud. Freud gostaria de colocar aí o seu axioma fundante e eis que Freud é posto em causa. A teoria do mimetismo, vi-a em actuação em muitas situações. O cerco para criação da vítima viu-o bem William Golding no seu “Lord of the Flies” que Peter Brooks transpôs maravilhosamente para o cinema.

Um amigo meu quando esteve na Índia contou-me sem conhecer nada destas teorias, um fenómeno estranho por que passou numa terra de província. Uma multidão começa a rodeá-lo e às suas companheiras de viagem e começa a circular de forma cada vez mais apertada à sua volta. Também na vida real vi cercos feitos a pessoas para as vitimar. O fenómeno que hoje em dia se chama de "bullying" é apenas um entre outros fenómenos de criação de vítimas. Esta atracção pelos outros, sobretudo em multidão, é criadora e mortífera.

Os Vedas estão repletos de ritos de circundação e a volta da Kaaba é um outro exemplo disso. A própria circuncisão hebraica mostra réstias de um sacrifício de uma vítima. À volta, cercando, gerando um círculo, e consequentemente um centro.

O mimetismo é explorado de forma bem mais profunda por Girard que por Hayek. É certo que ambos participam do horror às totalidades que Platão, Hegel e Durkheim representam, e nisso são primos entre si e de Prigogine. Girard tem a capacidade de lhes ir ao fundamento. Hayek nunca conseguiria associar o mimetismo à vítima e ao desejo. Por isso nunca conseguiria perceber o poder civilizacional da Bíblia e o que esta traz de agastante para os perseguidores de todo o mundo que a ela se opõem.

Nesse sentido Girard é uma porta de abertura, uma rajada de frescura nas rotinas do pensamento antropológico. E em geral na forma como nos vemos na nossa época. Girard apenas esquece algo muito importante. E isto não lhe vai em demérito. Já fez brilhantemente o seu papel. Esqueceu-se deste imenso mistério, aquilo a que Jung chamava o maior complexo, o “eu”. Este esquecimento não retira força à sua teoria, sobretudo tendo em conta a fraqueza das teorias anteriores. Apenas quer dizer que existe um espaço aberto para uma nova antropologia, que desta vez também anuncie o “eu”. Essa é fácil de estabelecer nas suas fontes. É a dos Padres Gregos e o seu projecto de divinização do homem. Mas para essa ainda teremos de esperar algum tempo. A lucidez paga-se sempre com custo. E afinal a nossa vida é mais longa do que parece. Podemos dar-nos ao luxo de esperar. Desde que estejamos prontos a pagar o preço.




Alexandre Brandão da Veiga

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segunda-feira, 17 de maio de 2010

Por onde anda a antropologia científica? I









Na nossa época gosta-se do epíteto científico. Por isso quem querer ser credível usa e abusa dele, como antigamente (e hoje em dia) se forjam brasões e genealogias. A antropologia não é excepção. E no público medianamente culto a antropologia está associada aos torpores do linguajar estruturalista, cheio de gráficos, esquemas e precisões conceptuais que por vezes temos toda a razão de detestar.

A antropologia em boa verdade pode-se dizer que nasce quando o homem se hominiza. Mas se nos ficarmos por isso estamos a dizer demais, ou seja, quase nada. A antropologia em boa verdade surge quando se descobre a universal diversidade do ser humano. Marco Polo podia ser dado como exemplo, como tantos viajantes, Ibn Batutta por exemplo, ou mesmo Xenofonte ou Heródoto. Mas a antropologia universal surge com a Europa, a primeira criadora de um mundo ecuménico. E mais precisamente com os jesuítas. Desde os ritos chineses até aos índios da América do Sul, o jesuíta mostrou uma capacidade de empatia e aculturação que foi nesse sentido pioneira na história, pela sua profundidade e duração.

Mas eis que a antropologia se quer científica. E o século XIX, romântico como era, não quis deixar de ser científico. E foi-o. Até à ousadia. Para surgir de forma sistemática e organizada era preciso um império universal e meios académicos ricos. Escusado será dizer que teriam de ser os britânicos a começar a antropologia.

O problema é que esta antropologia surge marcada por duas características: estuda os povos primitivos, enquadra-se num projecto de ideologia imperial. Descobre-se entretanto um outro conceito para definir outros primitivos, os que temos mais próximos de nós, os camponeses, os dentro da Europa, mas fora do processo de expansão industrial e eis que se fala em etnologia.

E em França a física social começa a aparecer, chama-se de sociologia, e os povos desenvolvidos ficam incluídos neste processo de científica visão do mundo social. E algo vindo da Alemanha confunde tudo. Os britânicos, muito sensatamente, falavam de Folk-lore. Coisa do povo, tradições, canções do povo. Mas a Alemanha impõe o seu conceito de Kultur, à falta de melhor, mas que para um alemão se distingue claramente de Bildung, que só é destinada a uma elite. O conceito de cultura estende-se irremediavelmente na boca do povo até ficar em permanente esparregata. Esvazia-se de sentido para se poder aplicar a tudo. Tudo é cultura. Inevitavelmente. Até a palavra cultura deixar de ter qualquer significado de prestígio. Como o Monsieur Jourdain fazemos cultura mesmo (e sobretudo) não o querendo. E eis que a antropologia científica se reveste do nome de antropologia cultural, para se distinguir da antropologia física.

A História é sempre bem mais complexa, mas estes dados de base já nos permitem perceber alguma dos limites de nascimento da antropologia: povos primitivos e ideologia imperial.

Não é por caso que nos restantes cem anos a antropologia se revolta contra estes dois conceitos. A revolta é evidentemente edipiana porque a antropologia se sabe filha destes dois pais. E por isso dedica-se cem anos a demonstrar que os primitivos não são primitivos e que a ideologia imperial é um hedionda abominação, que no fundo a sabedoria está nos primitivos, que por sinal não o seriam, mas apenas estuda o “selvagens”, “os povos originários” ou outros conceitos puritanos que decidiu inventar.

Sente-se incomodada com as lides da etnologia, esconde muitas vezes a face à sociologia, mas a verdade é que os dois centros de gravidade mantém-se os mesmos, seja para o afirmar, seja para o negar: a ideia de primitivo, e a ideologia imperial. Sendo filha da ideologia imperial revolta-se contra a mãe, sendo filha da separação do primitivo e civilizado esforça-se por demonstrar ainda mais essa separação, desta feita a favor do primitivo.

É evidente que nos Estados Unidos se passa um fenómeno estranho. Um francês marca a antropologia mais que outros. Mas, como Einstein, idolatrado, influente, mas no fundo marginal, é dos raros que não mostra grande afecto pelos primitivos. Sobre as suas análises de analogias musicais e matemáticas, recorre a um grande matemático, André Weil, para analisar a estruturas do parentesco, e depois esquece o reconhecimento que lhe deve. Falo, é evidente de Lévi-Strauss.

Lévi-Strauss tem na antropologia o destino que Einstein tem na física. Determinante nas ideias e métodos, é de certa forma esquecido sob o ponto de vista filosófico. Lévi-Strauss nunca idolatrou o indígena, mas o antropólogo de segunda linha pega nas suas ideias para o fazer.

É claro que os contributos da antropologia não podem ser negados. Historiadores recorrem aos seus métodos e conceitos e aplicam-nos na História. Mas evidentemente a épocas primitivas das civilizações, seja a grega, a romana, a persa. Nenhum mal há nisso. O problema é que padecem ainda do mesmo mal duplo, o da separação do primitivo e a ideologia imperial (geralmente na forma de negação).

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quarta-feira, 12 de maio de 2010

Irresistível em 24 horas


O «medonho Torquemada» da Congregação da Doutrina e da Fé que, durante o longo pontificado de João Paulo II, clarificou as balizas da Igreja pós-conciliar; o alemão tímido que não faz ski, nem sequer sabe representar; o sucessor do preferido, o maldito pelos pecados mais hediondos de alguns padres, foi esperado pela agenda pensante com primarismo e sem esperança.
Anunciaram-se bandeiras pretas e distribuições de preservativos; questionou-se a tolerância de ponto, os gastos, a oportunidade da visita em tempos de crise. E a inteligência mediática desdobrou-se em pequenas análises consonantes com a aversão ou a má vontade no acolhimento ao visitante.
O que mudou em 24 horas?
Ainda o avião não tinha aterrado, já o Papa calava fundo os mais críticos dizendo que a agressão à Igreja estava dentro de casa, (como sempre) no pecado. No alcatrão de Figo Maduro, foi ao encontro do assanhamento republicano dizendo que, há 100 anos, a laicidade libertara a Igreja do Estado.
Parece que o País pensante foi apanhado desprevenido. Desde logo, no Programa «Prós-e-Contras», descobriu que afinal havia católicos inteligentes, operantes, letrados, com ideias claras e discurso actual. Depois, dá ideia que nunca pensou ver nas ruas de Lisboa e no Terreiro do Paço, a alegria genuína de tantos que pareciam saídos de um País que estava escondido dentro do seu. E, finalmente, a intelectualidade agreste à Igreja, é muito sensível à inteligência e à cultura - pilares inequívocos da personalidade de Joseph Ratzinguer. A nata estava no CCB para o ouvir e aplaudir de pé. O respeito voltou à Cidade e abriu espaços a pequenos e grandes grupos. A todos.
As palavras de Bento XVI têm a clareza e a esperança que o Povo pede em tempo de incerteza. «Quem acreditar em Jesus não será confundido»; «Ele disse: estarei convosco até ao fim dos tempos»; «Nenhuma força adversa poderá jamais destruir a Igreja». Em tempo de crise, a verdade, a confiança e a sobriedade valem tudo. E o Papa provou que não precisa de ser uma estrela para ser brilhante.
Teremos tréguas ou um novo caminho?

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segunda-feira, 10 de maio de 2010

Vem cá falar connosco, vamos ouvi-lo


«Precisamos de homens que mantenham o olhar voltado para Deus e aí aprendam a verdadeira humanidade. Temos necessidade de homens cujo intelecto seja iluminado pela luz de Deus e aos quais Deus abra o coração, de modo a que o seu intelecto possa falar ao intelecto dos outros e o seu coração possa abrir o coração dos outros. Só através de homens tocados por Deus, Deus pode voltar para junto dos homens».
Joseph Ratzinguer «A Europa de Bento na crise de culturas» (Aletheia, 2005)

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sexta-feira, 7 de maio de 2010

Quem não tem competência não se estabelece


Facto I
Dois gravadores roubados por um Deputado da direcção da bancada do PS, no Parlamento.
Facto II
Furto captado por uma Câmara de filmar.
Facto III
Justificação pública: acto irreflectido para defesa do bom nome. Não devolução do produto do furto.
Facto IV
Direcção da bancada solidária com o deputado usurpador.
O que é isto???
Há quem encontre uma saída: «foi a única maneira de se defender»; «o jornalista estava a pedi-las»; «não roubou os gravadores, levou o seu som».
Não podemos enlouquecer. Roubar é roubar. O título da Sábado «Deputado levou os gravadores» é eufemístico (figura de estilo em que se disfarçam ideias desagradáveis por meio de expressões suaves, Dic.Editora). Roubar no Parlamento, no exercício das funções de Deputado, pede imediata perda de mandato. E, quando há arrependimento, suponho que há um pedido de desculpas e a devolução do que se roubou. Quanto à solidariedade do líder da bancada com este gesto, só me lembro do dito popular: «Tão ladrão é o que vai à vinha como o que fica de espreita».
Ninguém obrigou Ricardo Rodrigues a ser Deputado, a dar uma entrevista, a responder a perguntas incómodas. Só o obrigaram a viver em Democracia e num Estado de Direito onde há liberdade de imprensa e não há liberdade de furto. Pode ser-se político sem dar entrevistas ao assertivo Fernando Esteves e pode ser-se Deputado com anteriores suspeitas de crimes que o Tribunal não provou. Mas não se pode roubar o que não é nosso. E, por cima disso, justificar o roubo. Talvez a única coisa que bate certo é o Deputado dizer que irreflectidamente quis defender o seu bom nome.

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quinta-feira, 6 de maio de 2010

O desprestígio dos criadores V

A ênfase na destruição não é causa, mas sintoma deste estado de espírito. O espírito democratizante na cultura em geral precisa de destruir, não para construir, mas pura e simplesmente porque não sofre confronto. Destruir é sempre mais fácil que construir. A lista de obras-primas que eu seria capaz de destruir é sempre infindável, as que eu seria capaz de fazer será forçosamente mais restricta.

O assento na desconstrução não revela por isso espírito crítico, ao contrário do que os seus cultores gostam de afirmar, mas apenas necessidade de criar espaço próprio. O seu parente é o “Lebensraum”. O criador contemporâneo sente-se oprimido, não por limitações legais impostas pela sociedade, mas pela grandeza do que herdou. Precisa de destruir para conquistar espaço vital, não para construir algo de sólido em substituição. A sua política é a da terra queimada, do nazi criando o vazio na terra russa. O parentesco entre a cultura contemporânea e o nazismo é aliás evidente e participa dos mesmos vícios da modernidade. São filhos da mesma fonte. De uma vontade de grandeza generalizada tornando pequenos todos os outros. Paradoxo apenas aparente, porque quando todos querem ser grandes todos são pequenos.

O que se passou com os criadores não é algo de muito diverso do que se passou com os políticos, os jornalistas, os modelos. A glória efémera prevalece e por isso mostra a sua insignificância. O problema é que os criadores têm uma responsabilidade bem mais grave nessa matéria que os outros. São eles que têm de expressar a grandeza, mesmo que não a encarnem. Não consta de Carlos Magno fosse grande poeta. Um político não precisa de expressar em objecto a sua grandeza. Exprime-se nos seus actos.

Os criadores, pelo contrário, apenas evitam a submersão dos séculos mostrando o que está acima deles. Horácio, um dos grandes estetas, mostrou bem isso ao afirmar que tinha criado um monumento mais perene que o bronze. Fez algo para ser admirado nos séculos, porque os séculos sabem que não o podem agarrar na plenitude, apenas o podem passar para a geração seguinte.

O abuso da soberania, a sua comercialização e em sequência a sua trivialização fazem dos criadores plenamente criaturas do seu século, prontas a morrer com ele, ou mesmo antes dele. Criaram para si mesmos esse estatuto, quando seria o seu papel criar estatutos para outros. Os grandes senhores da história sabiam que precisavam de vates para serem imortais. Sem Alcuíno Carlos Magno perderia muito da sua imagem, sem Virgílio Augusto seria um pouco mais pequeno. Sem Marco Polo não perderíamos mais que dois segundos da nossa vida a pensar quem seria Kublai Khan. Estaria guardado para os eruditos, as pessoas cuja paciência ressuscita em luz ténue geralmente mediocridades. Benditos sejam pelo seu trabalho, que me merece o meu maior respeito. Mas não agitam fogueiras, lançam fogos, não queimam o mundo, não lhe dão calor nem o iluminam.

O curioso nesta situação é que são os próprios criadores oficiais que criaram esta situação. E que a população em geral (incluindo os intelectuais menores) que partilham esta visão. Cantam uma ladainha da importância da cultura, mas não fazem peregrinações para ouvir os criadores. Precisam deles na sua corte, à sua volta, apenas para afirmarem que dão importância à cultura. Mas acham-nos tão irrelevantes quanto o comum dos mortais. Sejam eles intelectuais, políticos, empresários, jornalistas, quando procuram os criadores é para a entrevista, para ocupar tempo, não em procura de iluminação.

Talvez os criadores tenham tido o que merecem, mas pergunto-me se uma sociedade merece apenas isto. Talvez tenha chegado o momento de criadores retomarem a soberania, discreta, com noção de serviço, pensando além dos séculos, trabalhando para o perene, reconhecendo o seu lugar. Processo que levará gerações, talvez. Porque o homem é assim feito. Se um monarca não se comporta, fere a própria ideia de monarquia, se um político é acusado de tráfico de favores é a classe política que sofre, se um taxista é malcriado todos lhe ganham a fama. Pádua não passou a ser terra de santidade por ter abrigado um santo.




Alexandre Brandão da Veiga

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quarta-feira, 5 de maio de 2010

O desprestígio dos criadores IV

Resta-nos o terceiro factor. A banalização da superioridade, ou mesmo a sua negação. O lugar comum diz que não há música clássica e a outra, mas que há música boa e música má em todas a áreas, o que não deixa de ser verdade. Mas esquece-se que a música mais profunda, mais arrojada e mais rica é a dita erudita. Aliás a aflição e a insistência com que se repete este chavão mais denota que se quer produzir um efeito que reconhecer uma realidade. Com a literatura passa-se o mesmo. Um selvagem da Nova Papua tem foros de genialidade e por isso a complexidade de Dante ou Horácio são comprimidas para caberem no mesmo cesto. Que o poeta popular mais ou menos sincero e sofrido apenas conheça o heptassílabo rimado em quadra deve ser ignorado perante a riqueza formal e de ideias de Camões.

O próprio criador quando defende estas teses se anuncia como substituível, intermutável, e a complexidade de que se ocupa torna-se mero atavio, sem real importância. Para que todos acedam à criação foi preciso que a criação se tornasse acto trivial. Já resta pouco do impulso de admiração que se revela por duas frases simples: “eu não era capaz de fazer isto”, ou então, “como não me lembrei eu disto?” (reservada esta ultima, fora de presunção, para outros criadores).

A postura geral, justa ou não, não interessa para estes efeitos, é a sua dupla inversa: “eu também era capaz de fazer isto”, ou então, “não faria isto, mas faria algo de pelo menos tão grande valor”.

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terça-feira, 4 de maio de 2010

O desprestígio dos criadores III

O segundo factor de desprestígio foi a comercialização.

O escritor que se posta na feira a dar autógrafos, o pintor que faz rondas comerciais como o vendedor de produtos financeiros é relegado para o mesmo plano. Perdeu a auréola mística da soberania. Passa estar no circuito comercial, como as batatas, e as televisões.

Já não é soberano, mas produto. E nesse caso é o público que é soberano. O cliente pode deter pouco poder em si mesmo, mas no seu conjunto determina o consumo. Soberania, religião, mística deixam de ter sentido para este criador com soberania perdida. Apresentado como um aristocrata de casa reinante deposta, vive de ser produto, aceitou que os seus brasões sejam logótipo, e os seus pergaminhos apenas folheto de publicidade.

O seu irmão encontra-se nos membros de mais ou menos antiga ou recente aristocracia, verdadeira ou forjada, que se pavoneiam das revistas sociais. Tanto mais se afirma de vanguarda ou experimental, tanto mais se torna produto. Tem de ser fracturante, inovador, destruidor de tradições. É essa a tradição que tem de respeitar, essa a especificação técnica do seu produto. É o que se exige de si. E bem comportado, cada vez mais bem comportado, vende uma revolta de rotina como dever de ofício.

De soberano pretérito tornou-se caixeiro-viajante e, se bem sucedido economicamente, na melhor das hipóteses, numa espécie de executivo internacional, mas em versão de patente menor, porque nesse circuito é geralmente mais mal pago e menos prestigiado.

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domingo, 2 de maio de 2010

«O Vietname não é uma guerra. É um País»

Sempre que penso em Saigão, lembro-me da versão do Apocalipse Now, dobrada em castelhano, que a TVE passou talvez no final do ano de 79 ou 80. Nas primeiras cenas, ao som das pás de um helicoptero, com a imagem de uma ventoínha de tecto, o personagem abre a janela do quarto e diz: «Saigón, mierda». Nada como o castelhano para transformar uma tragédia em comédia.
Neste fim-de-semana, passam 35 anos sobre a queda de Saigão. E, tal como na dobragem da fita de Coppola, o drama desse tempo foi tomado pelo seu contraste.
Atravessei recentemente o País. De Norte a Sul procurei nas amabilíssimas caras de cada vietnamita o ódio de um vietcong disposto a matar-me devagarinho, como mostra a indústria de hollywood. Nada feito. Procurei então os sinais opressores do regime tuletado pela União Soviética, mesmo depois de 75, quando o perigo conheceu as cores do Camboja, sob o peso da China. «O Partido Comunista atrapalha as vossas vidas?», pergunto a Kuang, à saída de Ha Noi. «Ainda não convém fazer manifestações sobretudo quando se discorda», e adianta: «Mas a maioria dos vietnamitas está muito ocupada a trabalhar para as suas vidas».
A lei da sobrevivência, a ausência de um tecto oficial (no emprego, na saúde ou na segurança social) e, sobretudo, a pujança do crescimento económico no País tornam possível e desejável a cada vietnamita a realização do verdadeiro sonho americano, na sua terra.
No more boat people. No more kiling fields. A iniciativa privada é lei. Os grandes investimentos no Turismo - pagos por chineses, franceses, autralianos e sulcoreanos - são secundados por milhares de pequenos negócios de roupa, comida, transportes, pesca ou turismo, à mão da nova ambição vietnamita. Ao luxo asiático soma-se o requinte francês. No restauro da Ópera de Ha Noi ou na recuperação dos melhores hotéis da viragem dos séculos XIX-XX. Ali se come o mais fresco fois ao som de Aznavour, «Non Je n'ai rien oublié, rien oublié». Uma pequena multidão de franceses, nostálgica do seu breve império (1850-1954), garante o negócio: «Pour un flirt avec toi je ferait n'importe quoi», canta Michel Delpech, enchendo a pista de dança...
Dizem os estrategas que «o vencedor é, muitas vezes, assimilado pelo vencido». O Vietname será hoje um bom objecto de estudo. Os veteranos de guerra norte-americanos voltam aos campos de batalha com os guerreiros viets. Querem deixar escritos os nomes numa pedra. Vivem memórias em comum: «Nós estávamos aqui quando vocês nos atacaram». Recuperam os postos no terreno, sem agressão. Tudo é mais fácil desde que Bill Clinton visitou Ho Chi Min, em 2001.
«Quem é hoje o vosso inimigo?» pergunto em todas as conversas. «A China!» respondem, sem hesitar. A memória do apoio dado pelos chineses aos Kmers Vermelhos no abate da elite viet, há 30 anos, é refrescada agora pela disputa de duas ilhas junto à fronteira, perto da magnífica Baía de Ha Long. Vale a pena percorrê-la num Junco, ali dormir entre os penhascos que emergem do mar e pensar que aquele cenário de sonho está imune a quaisquer conflitos. Tal como vem escrito, talvez na revista do avião, para informar os incautos: «O Vietname não é uma guerra. É um País».

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