terça-feira, 18 de maio de 2010

Por onde anda a antropologia científica? II

E eis que chega um senhor chamado René Girard. Vem da análise documental e passa pelo estudo da literatura e eis que entra na antropologia. E pela primeira vez encontro um antropólogo que não se basta com essa divisão entre primitivos e civilizados. Todas as culturas humanas em todos os seus estádios podem finalmente passar pelo mesmo crivo.

O problema é que recorre para esse efeito a outros dois centros bem diversos de análise: o mimetismo e a Bíblia. A crucifixão separa o arcaico do cristão. Pecado infame, é bom de se ver. Para os senhores antropólogos instalados nas suas cátedras, debitando em sebentas lições contra a escolástica, opinião vinda de fora apenas pode ser bárbara, herética.

O mimetismo tem um papel na cultura do século XX bem maior do que gostaríamos de aceitar. Mais um dos conceitos de Aristóteles, o tal velho já ultrapassado, que nos volta a perseguir. Na etologia, da economia com Hayek, e na antropologia renasce independentemente sempre com maior força.

E a Bíblia, centro de saber científico? Ainda mais abominável que Aristóteles ou o pensamento liberal. A Bíblia é tudo o contrário da ciência, qualquer criança aprende isso na escola. É dogma estabelecido, não pode ser contestado.

Mas Girard lembra-se de salientar um pequeno pormenor que poucos tinham visto, salvo os mais atentos à eucaristia: a vítima é inocente. Há um antes e um depois desta declaração de evidência da inocência da vítima. Os antigos tentaram adoçar ou obnubilar a crueza do sacrifício (os Vedas são bom e poético exemplo disso), mas pela primeira vez na Historia existe uma vítima plena e absolutamente inocente. E toda a História muda com esse facto. O problema da cruz não é questão para beatas inconsoláveis escudadas intelectualmente em pouco mais que o missal, é afinal o centro que corta as civilizações em dois.

Horror, sacrilégio, blasfémia, grita o dito cientista humano, o comentador político, o jornalista, puxando do seu lenço e dos seus sais enquanto disfarça um chilique. Enquanto apresenta sinais de afrontamento vai lançando os seus anátemas, que na sua linguagem são o de anti-científico, etnocêntrico, reaccionário.

O que não percebe o novo escolástico é que neste aspecto Girard completa a corrente que vem de Harnack, Overbeck... e Nietzsche.

A antropologia liberta-se assim dos seus centros de gravidade. Finalmente. O primitivo e o imperial cedem o terreno ao mimetismo e à Bíblia.

Acredito eu totalmente no poder explicativo do mimetismo?

De um só golpe trespassa a antropologia e põe em forte queda a natureza primitiva do desejo. Exit Freud. Freud gostaria de colocar aí o seu axioma fundante e eis que Freud é posto em causa. A teoria do mimetismo, vi-a em actuação em muitas situações. O cerco para criação da vítima viu-o bem William Golding no seu “Lord of the Flies” que Peter Brooks transpôs maravilhosamente para o cinema.

Um amigo meu quando esteve na Índia contou-me sem conhecer nada destas teorias, um fenómeno estranho por que passou numa terra de província. Uma multidão começa a rodeá-lo e às suas companheiras de viagem e começa a circular de forma cada vez mais apertada à sua volta. Também na vida real vi cercos feitos a pessoas para as vitimar. O fenómeno que hoje em dia se chama de "bullying" é apenas um entre outros fenómenos de criação de vítimas. Esta atracção pelos outros, sobretudo em multidão, é criadora e mortífera.

Os Vedas estão repletos de ritos de circundação e a volta da Kaaba é um outro exemplo disso. A própria circuncisão hebraica mostra réstias de um sacrifício de uma vítima. À volta, cercando, gerando um círculo, e consequentemente um centro.

O mimetismo é explorado de forma bem mais profunda por Girard que por Hayek. É certo que ambos participam do horror às totalidades que Platão, Hegel e Durkheim representam, e nisso são primos entre si e de Prigogine. Girard tem a capacidade de lhes ir ao fundamento. Hayek nunca conseguiria associar o mimetismo à vítima e ao desejo. Por isso nunca conseguiria perceber o poder civilizacional da Bíblia e o que esta traz de agastante para os perseguidores de todo o mundo que a ela se opõem.

Nesse sentido Girard é uma porta de abertura, uma rajada de frescura nas rotinas do pensamento antropológico. E em geral na forma como nos vemos na nossa época. Girard apenas esquece algo muito importante. E isto não lhe vai em demérito. Já fez brilhantemente o seu papel. Esqueceu-se deste imenso mistério, aquilo a que Jung chamava o maior complexo, o “eu”. Este esquecimento não retira força à sua teoria, sobretudo tendo em conta a fraqueza das teorias anteriores. Apenas quer dizer que existe um espaço aberto para uma nova antropologia, que desta vez também anuncie o “eu”. Essa é fácil de estabelecer nas suas fontes. É a dos Padres Gregos e o seu projecto de divinização do homem. Mas para essa ainda teremos de esperar algum tempo. A lucidez paga-se sempre com custo. E afinal a nossa vida é mais longa do que parece. Podemos dar-nos ao luxo de esperar. Desde que estejamos prontos a pagar o preço.




Alexandre Brandão da Veiga

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