«O Vietname não é uma guerra. É um País»
Sempre que penso em Saigão, lembro-me da versão do Apocalipse Now, dobrada em castelhano, que a TVE passou talvez no final do ano de 79 ou 80. Nas primeiras cenas, ao som das pás de um helicoptero, com a imagem de uma ventoínha de tecto, o personagem abre a janela do quarto e diz: «Saigón, mierda». Nada como o castelhano para transformar uma tragédia em comédia.
Neste fim-de-semana, passam 35 anos sobre a queda de Saigão. E, tal como na dobragem da fita de Coppola, o drama desse tempo foi tomado pelo seu contraste.
Atravessei recentemente o País. De Norte a Sul procurei nas amabilíssimas caras de cada vietnamita o ódio de um vietcong disposto a matar-me devagarinho, como mostra a indústria de hollywood. Nada feito. Procurei então os sinais opressores do regime tuletado pela União Soviética, mesmo depois de 75, quando o perigo conheceu as cores do Camboja, sob o peso da China. «O Partido Comunista atrapalha as vossas vidas?», pergunto a Kuang, à saída de Ha Noi. «Ainda não convém fazer manifestações sobretudo quando se discorda», e adianta: «Mas a maioria dos vietnamitas está muito ocupada a trabalhar para as suas vidas».
A lei da sobrevivência, a ausência de um tecto oficial (no emprego, na saúde ou na segurança social) e, sobretudo, a pujança do crescimento económico no País tornam possível e desejável a cada vietnamita a realização do verdadeiro sonho americano, na sua terra.
No more boat people. No more kiling fields. A iniciativa privada é lei. Os grandes investimentos no Turismo - pagos por chineses, franceses, autralianos e sulcoreanos - são secundados por milhares de pequenos negócios de roupa, comida, transportes, pesca ou turismo, à mão da nova ambição vietnamita. Ao luxo asiático soma-se o requinte francês. No restauro da Ópera de Ha Noi ou na recuperação dos melhores hotéis da viragem dos séculos XIX-XX. Ali se come o mais fresco fois ao som de Aznavour, «Non Je n'ai rien oublié, rien oublié». Uma pequena multidão de franceses, nostálgica do seu breve império (1850-1954), garante o negócio: «Pour un flirt avec toi je ferait n'importe quoi», canta Michel Delpech, enchendo a pista de dança...
Dizem os estrategas que «o vencedor é, muitas vezes, assimilado pelo vencido». O Vietname será hoje um bom objecto de estudo. Os veteranos de guerra norte-americanos voltam aos campos de batalha com os guerreiros viets. Querem deixar escritos os nomes numa pedra. Vivem memórias em comum: «Nós estávamos aqui quando vocês nos atacaram». Recuperam os postos no terreno, sem agressão. Tudo é mais fácil desde que Bill Clinton visitou Ho Chi Min, em 2001.
«Quem é hoje o vosso inimigo?» pergunto em todas as conversas. «A China!» respondem, sem hesitar. A memória do apoio dado pelos chineses aos Kmers Vermelhos no abate da elite viet, há 30 anos, é refrescada agora pela disputa de duas ilhas junto à fronteira, perto da magnífica Baía de Ha Long. Vale a pena percorrê-la num Junco, ali dormir entre os penhascos que emergem do mar e pensar que aquele cenário de sonho está imune a quaisquer conflitos. Tal como vem escrito, talvez na revista do avião, para informar os incautos: «O Vietname não é uma guerra. É um País».
4 comentários:
Excelente texto sobre uma realidade desconhecida para muitos.
A Guerra do Vietname foi um dos conflitos mais sangrentos do séc. XX, tendo marcado muitas gerações de americanos e vietnamitas. Quem a conheceu de perto jamais a esquecerá...
Inez. Obrigado pelo texto...Um beijo
Sobre o que foi o atribulado séc. XX no Vietname, o livro "Milagre da Esperança - Vida de François Xavier Nguyen Van Thuan" de André Nguyen Van Chau oferece uma perspectiva diferente e esclarecedora, longe do maniqueismo reinante.
Obrigada João, vou tentar apanhar isso. Talvez na Feira do Livro.
Enviar um comentário