Valores, poder e interesses
Sou tentado a lembrar dois tópicos que me vêm à mente. De um lado a teorização dos regimes políticos dos gigantes Platão e Aristóteles, lembrando que cada forma de regime tem a sua versão degenerada, e uma referência de Thomas Mann no seu diário em meados dos anos 30, lembrando como as populações, e quanto mais politizadas internamente, podem ser cegas para as relações internacionais, que são de poder.
No que me respeita nunca idolatraria a simplicidade pela simples simplicidade, se isso significa empobrecimento. Mas para meu uso interno, e sinto-me bem acompanhado na História, parece-me que a política só se pode analisar de forma completa caso se tenham em conta os valores, mas igualmente os interesses e o poder. Em cada facto político de relevo (não falo do anedótico ou do meramente tribal) pergunto-me que valores se defendem, que interesses se protegem, que equilíbrio de poder se gera. Parece-me simples e bastante completo.
O problema é que cada uma destas formas, quando vistas unilateralmente, geram formas degeneradas de se compreender a política.
A obsessão com o poder gera a crueldade desabrida. Os Europa o exemplo máximo é o do nazismo, ou por forças exteriores a ela, a de muitas conquistas: hunos, turcos, tártaros, mongóis são movidos por ânsia de poder no seu estado mais destilado. A degeneração da política em simples poder gera a soberba grosseira, a cegueira, a falta de testemunho e uma vitória fugaz. Não deixa marca, não deixa rastro, não deixa boa memória. É a política dos soldados de fancaria.
A obsessão com os interesses gera a mesquinhez grosseira, acabando muitas vezes num jogo pelo puro prazer do jogo, em que se envolveram com frequências diplomacias europeias da época Moderna. O jogo de espelhos caracteriza-a, e acaba por lhe destruir qualquer sentido útil. É a política dos fanqueiros de pacotilha.
A obsessão com os valores gera a cegueira perante os modos de realização a longo prazo, e acaba por redundar no mero formalismo do cumprimento dos rituais da ordem nacional e internacional, num discurso tartufo, beato, que desemboca sempre na vida pobre do homem que é o mero Direito. É a política dos juristas de feira.
Mas ter poder em si mesmo é essencial. Sem poder não há liberdade empírica. Poder é poder decidir, poder fazer o que se quer, poder dar prevalência aos nossos interesses quando assim entendermos. Os interesses em si mesmos não são pecaminosos. Uma criatura sem interesses é não só desinteressada, mas sobretudo desinteressante. Ter interesses é “estar entre”, “inter esse”. Quem não defende os seus interesses, quem não os tem claros, não sabe onde está e é bem capaz de ser obrigado a abandoná-los. Os valores não significam apenas numa versão piegas de cristianismos de substituição, uma lacrimejante postura perante o mundo. A confiança em si, o orgulho no que se é, a ambição, são igualmente valores que a Europa soube cultivar durante milénios.
O problema é de definir o espaço relevante desta tríplice união. Quem o assenta no Estado nacional poderá faze-lo se for chinês, americano ou indiano. Se for europeu reduz-se à impotência. Este simples teste mostra-me que o espaço nacional não pode ser na Europa o principal centro de formação de poder, sob pena de impotência.
Se assim é, resta saber se existem interesses comuns que sejam mais importantes que as fronteiras nacionais. Porque sem eles qualquer união de poderes fica vazia de motivo. E os europeus têm mais interesses em comum que divergências. Participam dos mesmos fenómenos de sociedades, dos mesmos problemas demográficos, da mesma situação geográfica, das mesmas ameaças, políticas, étnicas e económicas. No entanto, se junto ao meu vizinho puder ser mais forte e tiver interesses partilhados, pouca solidez tem esta construção se não se basear em valores comuns. Os interesses têm o problema de serem muito variáveis na sua configuração concreta e por isso é natural que, vistos na perspectiva curta, sejam muitos diversos dos do meu vizinho. Só posso aceitar sacrificar interesses de curto prazo se vir que existem outros de longo prazo que merecem esse sacrifício.
Mas se o jogo se basear apenas em interesses, dificilmente posso fundar uma realidade tão irracional quanto uma unidade política. Porque, convenhamos, uma medida de política é sempre irracional em muitos aspectos. Todos os que têm alguma diferenciação sentiram mais afinidades com pessoas de outras nacionalidade que com a maioria dos seus concidadãos. Um escritor, um amigo, um cientista, um movimento de outros países é-nos mais próximo que o nosso vizinho de prédio. Podemos ter mais interesses em comum com o nosso vizinho mas mais afinidades com alguém longínquo. A nossa vida, e também a colectiva, é feita de união de valores. E os valores da Europa sempre foram mais comuns que diversos. Os movimentos culturais, de populações, sociais, de sentimentos sempre foram mais ou menos síncronos na Europa. A mútua contaminação desde sempre existiu. E esses valores comuns só numa perspectiva limitada se poderiam reduzir à democracia, à economia de mercado ou a estruturas jurídicas. O que de melhor há na vida vai para além disso. E fazer uma união apenas com base em instrumentos é apenas empobrecedor.
O facto de o discurso político não saber integrar estas três frentes mostra mais uma das vertentes da infantilização do espaço público, tratando os destinatários como atrasados mentais ou meros espectadores de um ballet. Esquerda, direita, progressistas e conservadores e outros conceitos mais ou menos vazios de sentido enchem um espaço falho de reais ideias e vão manchado as páginas dos jornais e distraindo as gentes.
Uma política que não queira poder não existe. É pura farsa. Uma política sem valores é puro capricho. E uma sem interesses é pura perda de tempo. Uma Europa que não se construa segundo estes três eixos é uma Europa feita de lerdos para lerdos, uma canção de embalar contada a crianças por encantadores de serpentes. Imagina-se o que quem as conta julga ter à frente.
O realismo político tem de ter em conta sempre estes três eixos. E num espaço público recheado de anões, apenas podemos exigir que ao menos sejam adultos. E que se abandone a infantilização do discurso. Os seus portadores perdem tempo fazendo-se crianças. E os seus destinatários merecem mais que isso.
Alexandre Brandão da Veiga