Em Bizâncio dividiam-se os verdes e os azuis. Inicialmente eram apenas partidos desportivos, equipas de aurigas. Transformaram-se em partidos religiosos (uns monofisitas, outros ortodoxos), políticos (uns representando o centro do império, outros as províncias), sociais (uns representando as classes mais baixas outros as mais altas). Misturaram-se, fizeram alianças, e ao longo do tempo as destrinças iniciais perderam-se. Na Itália medieval Guelfos e Gibelinos combateram-se. Uns a favor do papa, outros a favor do imperador, mas dividiram-se e misturaram-se de tal forma que tivemos votos em sentidos contrários dentro de cada partido. Monárquicos e republicanos, destrinça fundamental. Mas seria talvez bom lembrar que há mais semelhanças entre a monarquia espanhola actual e a França actual que entre a república francesa e a republicana Alemanha nazi ou a Rússia comunista.
A substância das destrinças politicas visíveis teve desde sempre uma eficácia histórica reduzida. Na melhor das hipóteses são quando muito seculares, nunca atingem o milénio. Na História da Europa apenas duas ideias são milenares: o império (romano e seus herdeiros) e as liberdades, sob o fundo cristão e pagão indo-europeu.
É evidente que não temos de desprezar algo só porque não é milenar. Mas algum sentido de justiça leva-nos a considerar a relatividade do seu valor. A ideia que ainda impera como centro de discussão na Europa (talvez menos noutros continentes) é a que separa a esquerda de direita. A voz comum tende a afirmar que é com a queda do muro de Berlim que acabam as ideologias ou então que não acabam, quando o fundo da questão não passa por um acto tão simbólico, mas nesta matéria tão pouco significativo. A queda do muro é facto fundamental noutra sede e não pequena: o fim de uma divisão esquizofrénica da Europa.
Vejamos então o que caracteriza a esquerda e a direita, para verificarmos até que ponto se trata de conceitos importantes.
Para uns a diferença é de política económica. A esquerda quer mais Estado, a direita menos. Nesse sentido o critério não se aplica fora da Europa, em que democratas liberalizam por vezes bem mais que republicanos. E mesmo dentro da Europa grande parte das reprivatizações é feita por partidos socialistas. A esquerda radical francesa do século XIX era muito mais liberal sob o ponto de vista económico que Bismarck. Logo Bismarck, um dos grandes criadores do Estado Social, seria de esquerda e os radicais laicos franceses de direita.
Para outros a diferença tem a ver com a política social. A esquerda protege mais as classes desfavorecidas que a direita. Nesse caso de novo Bismarck é de esquerda, Hitler é de esquerda, enquanto as esquerdas europeias modernas, com coloração de fascismo fúcsia, são bem mais de direita, dado que não é prioridade das suas agendas a questão social, mas a moral.
A esquerda é mais livre sob o ponto de vista moral. Usando esta grelha de análise temos que a França do Ancien Régime era à esquerda e a Revolução Francesa foi uma viragem à direita, que a classe mais à esquerda sempre foi a nobreza e a pequena burguesia a mais à direita. O chefe histórico do partido comunista perguntado sobre a homossexualidade evitou responder e, perante a insistência, apenas soube afirmar que “é uma grande tristeza”. A rainha de Nápoles é de esquerda, bem como a sua irmã a imperatriz Sissi, contra o sindicalista britânico que é de direita. A libertinagem foi sempre historicamente um luxo aristocrático, que alguma esquerda sem referências expressas assumiu.
A esquerda é internacionalista enquanto a direita é mais nacionalista. Nesse sentido os movimentos operários historicamente são mais à direita dado que foi o liberalismo capitalista que fomentou o internacionalismo. O cosmopolitismo aristocrático do séc. XVII a XX é de esquerda, sendo os operários russos de direita. Foram democratas cristãos a criar a construção europeia, sendo eles de esquerda portanto e a maior oposição à construção europeia veio da esquerda totalitária, mesmo sob a capa de defensores do internacionalismo. São pois de direita.
A esquerda tem uma visão optimista do homem enquanto a direita tem uma visão pessimista. A diferença seria assim antropológica. Rousseau, que não acreditava no retorno ao homem da natureza era assim o grande antecessor da direita, e a escatologia ortodoxa do império tzarista é de esquerda, porque assenta na divinização do homem (não se conhece destino mais optimista para a humanidade).
A esquerda é mais intelectual, enquanto a direita é mais estúpida. Logo Heidegger era estúpido, Thomas Mann do início, um imbecil, Heisenberg quase um idiota, Richard Strauss um lerdo, Céline um tontinho, como é fácil de demonstrar. A esquerda portuguesa tem o hábito de dizer que a direita portuguesa é a mais estúpida da Europa. O problema é que a observação é da esquerda francesa em relação à sua direita. No que se prova que a esquerda francesa pode ser muito injusta, mas é original, enquanto a portuguesa, mesmo se mais justa, carece de imaginação.
A esquerda é ateia, enquanto a direita é cristã, em geral bem mais crente. Pasolini era homem de direita, o movimento social-cristão tem de ser apagado da História e Hitler e Mussolini eram uns perigosos esquerdistas, assim sendo.
Uma ditatorial observação afirma que quem diz que não é de esquerda nem de direita é sociologicamente de direita. Ou seja, faz-se saltar o conceito da política para a sociologia. De repente existem lados sociais, uns de direita e outros de esquerda seja quais eles forem.
Schopenhauer era um grande conhecedor de óptica, apesar de ser conhecido mais como filósofo. Afirmava ele que alguém que vê só com a esquerda ou só com a direita padece de falta de estereoscopia. Não pode ter a noção de profundidade. Sensata observação. Adoptar uma postura com o custo de perda de lucidez parece-me negócio de fraco ganho.
São conceitos úteis mas divisão do mundo pouco lúcida. Porque varia no tempo. Porque varia no espaço. E porque sobretudo padece de pobreza topológica. São os mesmos que dizem que não vêem o mundo a preto e branco que se apressam a dizer que são de esquerda ou de direita. Não vejo diferença entre um mundo bi-colorido e um outro bi-situado. Se apenas me dão duas hipóteses de vida, parece-me que a concepção de vida muito pobre é em qualquer caso. Cortar o mundo à esquerda e à direita é esquecer a variabilidade do mundo, da vida, do tempo, das pessoas. Esquece que as divisões geram tensões seja corrosivas (tanto pior), seja criativas (tanto melhor), e muitas vezes necessárias. Mas igualmente que os principais problemas, mesmo os políticos, nunca se mediram por essa bitola.
Libertar a França da ocupação nazi, criar o II Reich alemão, construir a Europa, para já não falar de movimentos bem mais antigos, como a criação dos Estados nacionais, a centralização do poder, a criação do império carolíngio, em suma, os mais importantes movimentos políticos, em nada se explicam pela destrinça entre esquerda e direita. Se nada explica fora da política, a esquerda e direita dão explicação apenas fraca a fenómenos políticos de curto prazo. A desonestidade nesta discussão é não reconhecer que a destrinça é simbólica, irracional, precisamente por aqueles que se afirmam mais racionais na análise política.
O problema não está tanto na esquerda e na direita enquanto facto político de natureza simbólica. Enquanto símbolo a sua influência foi bem real e ainda o é. Enquanto ideia a sua potência explicativa é nula. Enquanto não se reconhecer a sua natureza totalmente irracional não se podem perceber dois aspectos bem mais relevantes na política actual. O primeiro: que esquerda e direita são tão importantes, ou menos ainda, que ser guelfo ou gibelino, verde ou azul. O segundo, e bem mais importante, se falarmos de política como valores, interesses e poder, ou seja única forma adulta de falar de política, a grande discussão a ter na Europa é a do poder da Europa, e a construção europeia.
Hilbert, o grande matemático alemão, criou os chamados espaços de Hilbert, com um número infinito de dimensões. A ciência política de vulgo apenas sabe trabalhar com uma. Idolatrar a divisão entre esquerda e direita traduz assim vários vícios. Uma ignorância e estreiteza geométrica. Uma imposição ditatorial ao mundo de dois lados onde ele não cabe em justiça. Uma infantilização e teimosia, salvo raros casos de necessidade histórica, que tão duramente caracteriza o espaço público. “Sou de direita”, ou “sou de esquerda” acaba por ter um odor de birra. Ser de um lado só da vida, que claustrofóbica existência, que folclórica vivência. Uma falta de estereoscopia. E em consequência uma cegueira para os reais problemas de poder, interesses e valores na época actual. Tantos defeitos são apenas poucos para quem gosta de ser pouco.
Alexandre Brandão da Veiga