Existem ciências humanas?
Mantenho a regra de não citar medíocres. E se lhe vou citar o nome é exactamente por não o achar um medíocre. O Professor António Manuel Baptista fez muito pela ciência em Portugal. Defendi a sua posição quando era atacado por pós-modernos sobre a absoluta relatividade da ciência.
E não me posso esquecer o que lhe devemos quando a divulgação científica quase não existia em Portugal. Tirando um livro de Bento Jesus Caraça, maravilhosa introdução à matemática, e mais uns poucos livros esparsos, pouco havia em Portugal que nos fizesse aceder à ciência. Na altura não existia Gradiva nem editora equivalente. A Cosmos ia publicando o que podia, com os meios que tinha, mas reconheçamos que a divulgação científica foi paupérrima em Portugal até há pouco tempo.
O Professor António Manuel Baptista era das raras luzes nesta escuridão total que era a ciência no espaço público português. E, não menos importante que isso, lembro-me da sua probidade intelectual. Uma vez propôs num programa o conceito de “dialéctrico” em vez de dieléctrico porque estaria mais de acordo com o “dia-” grego (“através de”) e não com o “di-“, sinal de dualidade. Um espectador corrigiu-o e teve a honestidade de reconhecer que tinha cometido uma calinada filológica. Um cientista é assim. Está mais preocupado com a verdade que com o seu orgulho de quinta.
É por isso recordando essa gratidão e esse respeito que o critico ferozmente agora. Afirmou há pouco tempo que não existiam ciências humanas. Ciências são as ciências naturais. O problema é que esta frase talvez decorra da irritação perante as fraudes nas ciências humanas, o que se compreende, mas peca a vários títulos por desconhecimento e incoerência.
Em primeiro lugar, o que incluímos nas ciências naturais? A matemática? Assim sendo, temos de reconhecer que tem uma estrutura e métodos bem diversos das outras ciências ditas naturais. Que as outras usem a matemática não invalidada este facto. Uma demonstração matemática é diversa de uma demonstração física. Assim sendo Hilbert seria bem mais idolatrado que Einstein. A matemática não é uma ciência natural. Seria ciência na acepção desejada?
Em segundo lugar, as ciências naturais incluem a química e as ciências da vida? O problema é que se é possível operar uma redução da química à física e da biologia à química em grande medida, nem na aprendizagem, nem na História do seu desenvolvimento, nem nos conteúdos, esta redução explica tudo.
Tanto a química como a biologia nasceram como ciências naturais, efectivamente naturais, ao contrário da física, que aliás só no fim do século XIX aparece como conceito usado em toda a sua generalidade. Basta vermos os manuais e enciclopédias do início do século XX onde ainda é comum separar a mecânica ou o electromagnetismo da física por exemplo.
A química e a biologia, para simplificar, surgem em grande medida como fruto de indução erudita, e nesse aspecto na sua génese estão mais próximas da filologia clássica ou da gramática na sua História. Os mineralogistas do Norte da Europa que classificam minérios, os naturalistas que procuram tipologias morfológicas, trabalham mais próximo dos filólogos que dos matemáticos. O seu esforço de recolha, sistematização e ordenação está mais intimamente ligado ao mecanismo filológico, se se quiser aristotélico, que platónico, o que forma a física. O grande erro, pelo menos estratégico, de Goethe foi o de querer impor à física este mesmo método morfológico.
Em terceiro lugar, os mecanismos da própria demonstração matemática encontram a sua origem, pelo menos parcialmente explicada por Serres, na argumentação judicial grega. A demonstração matemática grega quer-se imbatível, inatacável, e vai beber pelo menos em parte ao advogado rigoroso e obsessivo parte do seu modo de pensar. Sei que muitos matemáticos não ficarão muito satisfeitos com origens menos nobres da sua ciência, mas todas as grandes linhagens começam em algum lugar.
Em quarto lugar, a matematização de algumas ciências humanas começa antes da aplicação dessa metodologia à biologia por exemplo. Na indo-europeística Grassman, o grande matemático alemão, descobre as estruturas matemáticas das isoglossas antes de se pensar em estudar biofísica e muito antes de alguém pensar usar teorias de grupos na química ou na biologia. A indo-europeística, ciência de língua, teve historicamente um comportamento bem mais próximo da física que muitas áreas da biologia, com previsões que se relevaram acertadas.
Em quinto lugar são ciências humanas que levam os cientistas a ter conhecimento de muitos dos seus pressupostos. Não fora o longo estudo da ciência grega e moderna feito em grande medida por cientistas com abertura para isso (Paul Tannery é o único autor a quem Willamowitz chama de “amador de génio”), muito do desenvolvimento da mecânica quântica não se compreenderia. Heisenberg não tinha medo de se inspirar nos clássicos. E físicos existem em que a obra histórica e a criação científica se alimentam intimamente, como Duhem e Mach.
É evidente que as ciências não obedecem aos mesmos protocolos e infelizmente nem todas têm os mesmos mecanismos de controlo. As ciências humanas têm oferecido lugar à pulsão ideológica, quando não a algo bem pior, a pura e simples converseta. A facilidade e a desonestidade campeiam frequentemente, estuda-se o autor do Burkina Fasso em versão traduzida, apenas porque nunca se foi capaz de estudar Juvenal. Estuda-se a época contemporânea para fugir ao latim ou então acha-se bastante viver de traduções para dissertar sobre a época clássica. Em nome da integração da subjectividade o antropólogo faz panfleto em vez de obra de ciência e o sociólogo esconde por detrás de estatísticas a sua incapacidade de compreender o que os números dizem.
As fraudes existem em toda a parte mas há que reconhecer que nas ciências humanas os seus mecanismos de controlo não são tão apertados quanto nas ciências ditas naturais. É verdade.
Mas é igualmente verdade que a História da ciência está repleta de resultados que, justamente ou não, são votados ao desprezo. O flogisto na química, as sangrias na medicina, o éter na física são bons exemplos disso. Nem a matemática escapa a esses fenómenos ideológicos. Thom é criticado pela sua teoria das catástrofes e a tendência para a aberração e é em parte graças a ele que existe a teoria dos fractais. Os números imaginários são o horror dos matemáticos e sem eles não haveria boa parte da obra de Cauchy. A lista de perversões na psiquiatria do século XIX faria sorrir um especialista actual.
A História da ciência não é isenta de erros, mas mais importante que isso, de preconceitos ideológicos de toda a espécie. Cientistas naturais e humanos (para usar esta distinção) são homens integrados na História, nela vivem. Far-se-iam livros sobre os múltiplos snobismos, medos e obstáculos ideológicos sobre esta História. O “hypotheses non fingo” de Newton não é afinal a sua maior, mesmo que parcialmente, mentira?
É igualmente verdade que é apenas a incultura da nossa época que não permitiu uma maior aproximação da matemática e das ciência humanas, na História por exemplo. O argumento do concreto tem o valor que tem. Se é verdade que Dante não pode ser metido numa equação, uma pedra também não o pode ser. A física não estabelece relações entre calhaus mas entre conceitos cuja experimentação (eventualmente até com calhaus) permite controlar.
Mas que daí se diga que não existem ciências humanas parece-me que se está a dar um grande passo. Toda a ciência é uma tentativa mais ou menos bem conseguida. E as diferenças de sucesso podem ser imensas, reconheço-o. Mas senhor professor, em relação ao qual o respeito e a gratidão são sinceros, lembro-lhe que já há anos teve a honestidade de reconhecer a correcção por um classicista quando usava um conceito científico. Também nas ciências humanas não vale tudo. Também nas ciências humanas há fronteiras bem definidas do erro, embora haja outras menos difusas. Podemos discutir a justeza do conceito de caso. Mas um instrumental nunca será um nominativo, mesmo que em polaco possam ter usos estranhos para uma língua latina. Mas para o saber, é preciso aprender: as boas das ciências humanas.
Alexandre Brandão da Veiga
E não me posso esquecer o que lhe devemos quando a divulgação científica quase não existia em Portugal. Tirando um livro de Bento Jesus Caraça, maravilhosa introdução à matemática, e mais uns poucos livros esparsos, pouco havia em Portugal que nos fizesse aceder à ciência. Na altura não existia Gradiva nem editora equivalente. A Cosmos ia publicando o que podia, com os meios que tinha, mas reconheçamos que a divulgação científica foi paupérrima em Portugal até há pouco tempo.
O Professor António Manuel Baptista era das raras luzes nesta escuridão total que era a ciência no espaço público português. E, não menos importante que isso, lembro-me da sua probidade intelectual. Uma vez propôs num programa o conceito de “dialéctrico” em vez de dieléctrico porque estaria mais de acordo com o “dia-” grego (“através de”) e não com o “di-“, sinal de dualidade. Um espectador corrigiu-o e teve a honestidade de reconhecer que tinha cometido uma calinada filológica. Um cientista é assim. Está mais preocupado com a verdade que com o seu orgulho de quinta.
É por isso recordando essa gratidão e esse respeito que o critico ferozmente agora. Afirmou há pouco tempo que não existiam ciências humanas. Ciências são as ciências naturais. O problema é que esta frase talvez decorra da irritação perante as fraudes nas ciências humanas, o que se compreende, mas peca a vários títulos por desconhecimento e incoerência.
Em primeiro lugar, o que incluímos nas ciências naturais? A matemática? Assim sendo, temos de reconhecer que tem uma estrutura e métodos bem diversos das outras ciências ditas naturais. Que as outras usem a matemática não invalidada este facto. Uma demonstração matemática é diversa de uma demonstração física. Assim sendo Hilbert seria bem mais idolatrado que Einstein. A matemática não é uma ciência natural. Seria ciência na acepção desejada?
Em segundo lugar, as ciências naturais incluem a química e as ciências da vida? O problema é que se é possível operar uma redução da química à física e da biologia à química em grande medida, nem na aprendizagem, nem na História do seu desenvolvimento, nem nos conteúdos, esta redução explica tudo.
Tanto a química como a biologia nasceram como ciências naturais, efectivamente naturais, ao contrário da física, que aliás só no fim do século XIX aparece como conceito usado em toda a sua generalidade. Basta vermos os manuais e enciclopédias do início do século XX onde ainda é comum separar a mecânica ou o electromagnetismo da física por exemplo.
A química e a biologia, para simplificar, surgem em grande medida como fruto de indução erudita, e nesse aspecto na sua génese estão mais próximas da filologia clássica ou da gramática na sua História. Os mineralogistas do Norte da Europa que classificam minérios, os naturalistas que procuram tipologias morfológicas, trabalham mais próximo dos filólogos que dos matemáticos. O seu esforço de recolha, sistematização e ordenação está mais intimamente ligado ao mecanismo filológico, se se quiser aristotélico, que platónico, o que forma a física. O grande erro, pelo menos estratégico, de Goethe foi o de querer impor à física este mesmo método morfológico.
Em terceiro lugar, os mecanismos da própria demonstração matemática encontram a sua origem, pelo menos parcialmente explicada por Serres, na argumentação judicial grega. A demonstração matemática grega quer-se imbatível, inatacável, e vai beber pelo menos em parte ao advogado rigoroso e obsessivo parte do seu modo de pensar. Sei que muitos matemáticos não ficarão muito satisfeitos com origens menos nobres da sua ciência, mas todas as grandes linhagens começam em algum lugar.
Em quarto lugar, a matematização de algumas ciências humanas começa antes da aplicação dessa metodologia à biologia por exemplo. Na indo-europeística Grassman, o grande matemático alemão, descobre as estruturas matemáticas das isoglossas antes de se pensar em estudar biofísica e muito antes de alguém pensar usar teorias de grupos na química ou na biologia. A indo-europeística, ciência de língua, teve historicamente um comportamento bem mais próximo da física que muitas áreas da biologia, com previsões que se relevaram acertadas.
Em quinto lugar são ciências humanas que levam os cientistas a ter conhecimento de muitos dos seus pressupostos. Não fora o longo estudo da ciência grega e moderna feito em grande medida por cientistas com abertura para isso (Paul Tannery é o único autor a quem Willamowitz chama de “amador de génio”), muito do desenvolvimento da mecânica quântica não se compreenderia. Heisenberg não tinha medo de se inspirar nos clássicos. E físicos existem em que a obra histórica e a criação científica se alimentam intimamente, como Duhem e Mach.
É evidente que as ciências não obedecem aos mesmos protocolos e infelizmente nem todas têm os mesmos mecanismos de controlo. As ciências humanas têm oferecido lugar à pulsão ideológica, quando não a algo bem pior, a pura e simples converseta. A facilidade e a desonestidade campeiam frequentemente, estuda-se o autor do Burkina Fasso em versão traduzida, apenas porque nunca se foi capaz de estudar Juvenal. Estuda-se a época contemporânea para fugir ao latim ou então acha-se bastante viver de traduções para dissertar sobre a época clássica. Em nome da integração da subjectividade o antropólogo faz panfleto em vez de obra de ciência e o sociólogo esconde por detrás de estatísticas a sua incapacidade de compreender o que os números dizem.
As fraudes existem em toda a parte mas há que reconhecer que nas ciências humanas os seus mecanismos de controlo não são tão apertados quanto nas ciências ditas naturais. É verdade.
Mas é igualmente verdade que a História da ciência está repleta de resultados que, justamente ou não, são votados ao desprezo. O flogisto na química, as sangrias na medicina, o éter na física são bons exemplos disso. Nem a matemática escapa a esses fenómenos ideológicos. Thom é criticado pela sua teoria das catástrofes e a tendência para a aberração e é em parte graças a ele que existe a teoria dos fractais. Os números imaginários são o horror dos matemáticos e sem eles não haveria boa parte da obra de Cauchy. A lista de perversões na psiquiatria do século XIX faria sorrir um especialista actual.
A História da ciência não é isenta de erros, mas mais importante que isso, de preconceitos ideológicos de toda a espécie. Cientistas naturais e humanos (para usar esta distinção) são homens integrados na História, nela vivem. Far-se-iam livros sobre os múltiplos snobismos, medos e obstáculos ideológicos sobre esta História. O “hypotheses non fingo” de Newton não é afinal a sua maior, mesmo que parcialmente, mentira?
É igualmente verdade que é apenas a incultura da nossa época que não permitiu uma maior aproximação da matemática e das ciência humanas, na História por exemplo. O argumento do concreto tem o valor que tem. Se é verdade que Dante não pode ser metido numa equação, uma pedra também não o pode ser. A física não estabelece relações entre calhaus mas entre conceitos cuja experimentação (eventualmente até com calhaus) permite controlar.
Mas que daí se diga que não existem ciências humanas parece-me que se está a dar um grande passo. Toda a ciência é uma tentativa mais ou menos bem conseguida. E as diferenças de sucesso podem ser imensas, reconheço-o. Mas senhor professor, em relação ao qual o respeito e a gratidão são sinceros, lembro-lhe que já há anos teve a honestidade de reconhecer a correcção por um classicista quando usava um conceito científico. Também nas ciências humanas não vale tudo. Também nas ciências humanas há fronteiras bem definidas do erro, embora haja outras menos difusas. Podemos discutir a justeza do conceito de caso. Mas um instrumental nunca será um nominativo, mesmo que em polaco possam ter usos estranhos para uma língua latina. Mas para o saber, é preciso aprender: as boas das ciências humanas.
Alexandre Brandão da Veiga
1 comentários:
Ó ciência!! há por aqui alguma contradição, pois os portugueses são tolos tout court.
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