terça-feira, 30 de outubro de 2012

Pobres medievais

Há circunstâncias nesta vida em que temos de fazer um mea culpa. Sempre gostei de todas as épocas da História europeia, mas não dei a devida apreciação à cultura de cada uma deles. Mais vocacionado para a cultura do mundo antigo e a cultura científica, digamos assim para simplificar, descurei em grande medida o que era específico da cultura medieval.

Muitas vezes ouvimos falar da riqueza e profundidade desta e doutra cultura. Em boa verdade não há programa que refira povos exóticos que se esqueça de nos lembrar como é profunda a sua cultura. Ora, como a cultura se mede pelas obras, uma pessoa de bom senso perguntar-se-á imediatamente onde estão essa obras tão diferentes, tão inesperadas.

Rapidamente somos desiludidos. Vemos umas criaturas a pintar-se, ou pulam, ou gritam. Por vezes há um rasgo de génio. Há povos que têm uma obra digna desse nome, outros que apenas se reduziram a ser o que são, o que deve ser bom para eles, admito, mas que nos deixa indiferentes, ou deveria deixar a quem mantenha alguma sanidade mental.

Observei com a mesma postura a dado momento a cultura medieval. Tanto quanto nunca acreditei nos que a chamam de subdesenvolvida em comparação com a sofisticação árabe, chinesa, persa, enfim qualquer cultura não europeia, de igual modo nunca levei muito a sério os que se extasiavam com algumas obras francamente primárias da poesia medieval, ou a igualmente recorrente referência às maravilhas da filosofia da Idade Média.

Muitos destes panegíricos pareciam mera rotina académica. Se alguém estuda um povo, uma época, tende com frequência a demonstrar como são extraordinários, como têm ou tinham o que nós já não temos ou nunca fomos capazes de ter. O “nós” aqui, é evidente, são os europeus. Como toda a gente sabe o pior povo e cultura do mundo. Pelo menos é o que corre. Por isso os elogios à cultura medieval pareciam-me a mim algo forçados.

E a verdade, pensa o cidadão comum, é que eles não tomavam banho todos os dias, não usavam telemóveis, não andavam de avião. Uns atrasados, pobres deles. O facto de estas verdades serem aplicáveis a quase todos os povos da época não comove os admiradores de exotismo. Compreende-se. É que perceberam que os critérios da cultura europeia são tão exigentes que nunca os poderão preencher e portanto refugiam-se em culturas que não estão em posição de os julgar.

Da parte que me toca não julgo obras antigas com indulgência. Parece-me um insulto aos mortos. Devo-lhes suficiente respeito para os analisar pelo crivo mais exigente que me é possível. Só assim posso perceber a eventual perenidade do seu valor.

Poderia pegar num ou noutro exemplo. Seriam imensos. Mas tomarei como lição a obra de Duns Scoto. Filósofo contemporâneo de São Tomás de Aquino, nele encontramos aspectos que são completamente descurados na nossa época. Qual o grande tema de preocupação? A prova da existência de Deus. Tema ridículo, fora de moda. Mas, como dizia o seu grande estudioso, Etienne Gilson, só despreza esta questão quem nega à partida qualquer espécie de demonstração racional da Sua existência. Ora dá-se o caso, conjecturo eu, de que as pessoas que hoje em dia recusam o tema, não o fazem por terem percebido a impotência da razão para o tratar, mas por a sua razão não ser potente o bastante para sequer compreender o problema. O sorriso de desprezo é o do gladiador que olha o filósofo. Esquecemos o primeiro, e incensamos o segundo.

O que faz Duns Scoto? Ao contrário de São Tomás de Aquino, que dá uma grande importância a provas físicas, como a do primeiro motor, Duns Scoto demonstra segundo provas metafísicas, pela infinitude do ser. A capacidade de discernimento lógico que isto pressupõe é imensa, maior que a dos nossos contemporâneos. Mas, para além disto, e bem mais que isto no que nos interessa, é que sabe destrinçar muito bem as competências da razão das da revelação. O ser infinito, laborando com conceitos de metafísica, é acessível à razão humana. Não o da Incarnação que a transcendente.

Problema “meramente” metafísico, que fará sorri os gladiadores e os limpadores de arena que povoam o actual espaço público. Mas se bem atentarmos, desenvolve-se aqui algo que julgamos privilégio da nossa época. O pensamento funcional, operacional, que distingue instâncias de legitimidade. Certas coisas podem ser ditas em certos planos lógicos, mas não podem ser provadas ou são mesmo destituídas de sentido noutros. O que fez a ciência moderna foi apenas direccionar esta capacidade de pensar funcionalmente. O que faz o Direito que separa o que compete ao Direito do que compete à religião e a outras ordens sociais, mais não faz que glosar este tipo de pensamento.

Não me compete aqui analisar o pensamento de Duns Scoto. Porque desenvolvimentos semelhantes poderiam ser feitos em relação a Pedro Abelardo, a São Tomás de Aquino, ou a Henrique de Gand. Porque não é este o lugar para analisar a filosofia medieval. No que me interessa agora o que importa salientar é o que releva deste pensamento para o actual espaço público.

Os modernos (conceito criado na Idade Média, e pelos escolásticos, nunca é demais salientar) acham que vivem num mundo cheio de novidades, que superou todos os resquícios medievais do negrume, do obscurantismo, dos horrores dessa época infame em que só se cometeram crimes, como as cruzadas e a inquisição. Os lugares comuns mais torpes se desenvolvem na matéria. Mas como todos os ignorantes de História, para além de virem a ser ignorados por ela, cobrem-se de ridículo.

Com efeito, é a mesma técnica que cria o laicismo, o pensamento funcional, que é herança da escolástica medieval. É o mesmo pensamento funcional que sustenta o discurso nas ciências, e de modo mais insistente ainda, nas ciências sociais. Os laicos, os obcecados coma ciência, herdaram não só conceitos medievais (subjectivo e objectivo, inércia, por exemplo), como sobretudo são devedores deste pensamento medieval.

Herdaram do pensamento medieval a separação entre o principado e o sacerdócio, entre o Estado e a Igreja, tendência que se encontra no longo prazo na História europeia, embora de forma muito menos uniforme do que certas esperanças acalentam.

Herdaram desta Idade Média não apenas grande parte do seu vocabulário filosófico, erudito, científico, como critérios científicos ainda hoje em dia fundantes (a navalha de Occam, por exemplo), mas também o Direito, a maneira de pensar o mundo. Seja qual for a religião ou falta dela de um europeu actual, se quiser falar uma língua europeia e não um dialecto menor, não tem outro remédio e não ir buscar ao vocabulário destes pensadores cristãos medievais.

O que começou por ser uma operação acaba por ser um esquecimento, e não vejo nenhum mérito em pura e simplesmente esquecer. Esquecer é sempre uma falência fisiológica, mesmo que seja útil como defesa do organismo. Começou-se por tentar depurar estes conceitos medievais da sua conotação cristã e pagã para dar ilusão de um mundo novo. Mas as palavras têm a sua própria força, a sua própria lógica, não podem ser arbitrariamente usadas. Se eu disser que um ministro é um rabanete será difícil que as pessoas acreditem que estou a fazer uma classificação meramente biológica credível.

O que pretendo com isto dizer é que sofremos de um duplo movimento. Não superámos, apenas depurámos o que vinha da Idade Média. Não fomos para além em muitos aspectos, apenas esquecemos. Depuração e esquecimento são duas ordens, uma meramente instrumental e outra de falência fisiológica. É esta a época que nos cobre. Uma época meramente instrumental em falência fisiológica, exactamente porque o instrumento, poderoso, é usado para fins que o são cada vez menos. Em que a defesa do esquecimento, de eficaz passa a mera falência de metabolismo.

É este o espaço público, em que os conceitos e os métodos são meramente fruídos e não vividos, e por isso mesmo não enriquecidos, exactamente porque a sua genealogia foi olvidada. As criaturas que o povoam são seres meramente instrumentais e em falência fisiológica. Daí que não nos devamos espantar que à expressão tenha sucedido o esgar e ao discurso o balbuciamento. Anestesiados que estamos pelo hábito, já entendemos como natural esta linguagem e esta postura. Mas se bem virmos, estas criaturas mais não são que meros portadores das suas inevitabilidades, das suas tristes sinas e de uma Idade Média em versão apodrecida, sem viço, de onde se alimentam e para onde cospem. É essa mistela de que se alimentam. Não é de estranhar que a sua digestão seja dolorosa, e o seu aspecto seja repugnante para alguém com critério.


Alexandre Brandão da Veiga

 










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sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Força Interior


Estou em crer que o desencontro entre governantes e governados tem por base as personalidades do Primeiro-ministro e do Ministro das Finanças, mais do que as matérias políticas. Se assim não fosse, haveria maior debate sobre as medidas alternativas, sobre montantes a cobrar e a poupar, ou sobre a amplitude do binómio consolidação / crescimento. Todos sabem que o caminho é estreito e a resposta à política orçamental está a ser feita pela revolta e não pela construção de novos rumos.
Mas, como digo, essa revolta é alimentada por um desencontro diferente: Passos Coelho e Carlos Gaspar são homens do Interior. O transmontano e o beirão estão habituados a resistir. Sempre correram distâncias para alcançar as luzes da Cidade. Estão treinados na provação e na resiliência. Por isso Gaspar sabe que não pode descansar antes de chegar à meta. E Passos não compreende, de maneira nenhuma, o comportamento de Paulo Portas.
Onde outros lêem teimosia, eles vêem resistência. Onde outros sentem a dúvida, eles pressentem pieguice. Onde outros identificam uma análise laboratorial do País, eles protagonizam a experiência concreta do Interior de Portugal. Como diria Leonardo Boff, todo o ponto de vista é a vista de um ponto.     

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quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Ver ou fazer


Gostamos de milagres. Acreditamos em D. Sebastião, quer ele venha ou não. E preferimos a miragem de uma solução, a enfrentar os problemas de caras, com medo e coragem, como os miúdos que pegam toiros. Por isso inventamos, ciclicamente, palavras mágicas que vão do fomento ao investimento, do empreendedorismo ao desenvolvimento e que servem, sobretudo, para gastar dinheiro em poucos, a muitos iludindo.
O Governo está em contramão em relação a esta lei geral que aqui promulgo. As palavras-chave que evoca para garantir o milagre são: menos despesa e mais impostos, novos créditos a quem trabalha. Detenho-me em alguns exemplos do esforço já alcançado no corte da despesa:
  • 800 milhões nos consumos intermédios;
  • 1200 milhões na despesa com o pessoal;
  • 410 milhões em juros e encargos financeiros;
  • 150 milhões com a extinção de 139 fundações;
  • 180 milhões nas rendas na área da energia;
  • 250 milhões na renegociação dos contratos das PPP;
  • 380 milhões na saúde só com as farmacêuticas em medicamentos, sem prejuízo de cuidados médicos.
É importante expor as contas. Para verificar que o milagre se faz com dor, coragem e unidade. E continuar a pegar de caras, ultrapassando o medo.



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terça-feira, 16 de outubro de 2012

O impulso organizado


Ontem saí da Assembleia da República às dez para as oito da noite. As portas do parque estavam seladas e havia barras de metal vigiadas por alguns polícias com capacetes. A manifestação, marcada para as seis da tarde, mantinha-se residual apesar da convocatória «on-line», noticiada na rádio e na televisão, para milhares de portugueses. Os manifestantes olharam fixamente para o volante para saber quem conduzia. O carro onde seguia era pequeno e está amolgado e, naturalmente, não me conheciam. Amainaram assim o olhar persecutório.
Mais à frente, a passagem estava barrada com um piquete e uma tarja que dizia «Chulos!». Não gostei. Disse que não com a mão. «Se não chulas, vem para já para aqui!!!» gritou uma mulher, sem sair da frente. Abri o vidro e respondi: «Faço o que quiser!». Desviaram-se. Mas, dez minutos depois, às oito em ponto, para o directo da TV, deram início à violência contra a polícia. Resultado: 10 polícias feridos mais 1 manifestante. Título da manhã: «Onze feridos», sem discriminar nas letras gordas que dez eram polícias.
A perícia mobilizadora, intimidatória e de divulgação estão coordenadas. No mesmo registo de instigação à violência - como assinalou o PM no último debate quinzenal - alinha o discurso de quem fala de roubo ou assalto à mão armada, dentro e fora do PCP.
Hoje pensei não trazer o carro para não ter de furar piquetes. Trouxe. Não abro o vidro nem respondo. Ou talvez o faça. Porque não quero ser intimidada na Casa da Liberdade. A tática funciona.

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segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Estamos prontos?


Na vida, como na literatura, diz-se que são precisas várias gerações para saber perder ou nunca ter tido nada para aguentar não ganhar.
Mas nem sempre é assim. Uma guerra, um exílio ou outra calamidade ajudam à resiliência sem queixume nem revolta. As Alemanhas reergueram-se da II Guerra Mundial como a Espanha ressurgiu das cinzas da Guerra Civil. O mesmo se diga do Japão, do Vietnam, do Chile, da Irlanda, da Polónia ou da África do Sul. O «impulso negativo» da má memória ajudou os povos na provação. Do mesmo modo, a nível pessoal, um desgosto maior, como a doença ou a morte de um filho, «prepara» e relativiza qualquer desventura.
Em Portugal, estamos ainda vitoriosos com as conquistas de 74 e vivemos um bem-estar fixado pela solidez do euro, pelos fundos europeus e pelas ilusões do crédito das últimas décadas.
Não estamos, por isso, preparados para perder o que quer que seja nem temos uma percepção de calamidade que nos ajude a reagir sem revolta. A cultura do País é a de um novo-riquismo nunca dantes experimentado que não comporta a falta do carro individual, da casa própria ou do restaurante várias vezes ao mês. Estaremos prontos para andar a pé ou de comboio, para arrendar casa e para cozinhar, como sempre? 





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sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Para que servem as línguas mortas?

Lembro-me que um conhecido meu, quando se decidiu a fazer o curso de Letras na Universidade Clássica de Lisboa, teve de aprender latim. Estava a fazer filologia românica, ou como se chamará agora, e quem estabeleceu o currículo entendeu, e bem, que não era concebível alguém fazer um curso de Letras sem saber latim.

Até aqui aplaudo o ensejo. O problema é que o método de aprendizagem do latim era o das línguas vivas. Aprendiam latim como se fosse uma língua viva. O resultado é que na terceira declinação não sabiam distinguir as palavras de tema em “i” das de tema em consoante, o que obedece a regras elementares, mas essenciais para não se darem calinadas nos genitivos do plural. “Puella est pulchra”, “pulchra est puella”, “a rapariga é bonita” – e ficava-se por aqui o que ele aprendia.

Quando decidi aprender latim não tinha a expectativa de me encontrar num autocarro com um turista romano a quem tivesse de indicar um hotel. Nem sequer tinha a ilusão que numa reunião internacional me pudesse servir de língua veicular. Bem vistas as coisas, aprendi-o por pura inutilidade. Como dizia a minha antiga professora de latim, quando umas alunas tiveram a triste ideia de lhe perguntar para que servia aprender latim: para nada, não serve para cultivar batatas.

Mas vou tentar responder a esta questão e ver que implicações tem no espaço público europeu.

As línguas mortas têm para mim duas vantagens: estão mortas e são as que são, as que temos disponíveis.

A primeira vantagem parece paradoxal. Que vantagem traz a morte? Os leitores de biografias, género que os franceses e ingleses cultivam melhor que ninguém, mas em Portugal praticamente inexiste, sabem que a biografia de uma personagem morta tem uma imensa vantagem: pode-se saber a vida completa dessa personagem. O problema das autobiografias é que nunca nos contam a história toda. Nas feitas por terceiros, conhecemos o percurso desde o nascimento até à morte. Aquele conjunto faz sentido. É a diferença de tentar apanhar um comboio em andamento ou visitar um comboio parado mas com um longo percurso.

Aprender uma língua morta tem assim a vantagem de podermos fazer balanços, senão definitivos, o que seria sempre temerário, pelo menos mais completos. É sempre uma reflexão sobre a mortalidade.

Em segundo lugar, as línguas mortas que nos são mais disponíveis são o que são. Não me refiro obviamente ao sânscrito ou ao hitita, quase impossível de aprender sem livros alemães, franceses ou ingleses. Por mais apaixonantes que sejam estas línguas, e por mais que com elas se possa aprender, nomeadamente sobre o nosso passado indo-europeu comum.

Refiro-me ao latim e ao grego. Uma durante mais de dois mil anos estruturante da nossa cultura em continuidade, outra estruturante ainda há mais tempo, mas em continuidade sobretudo nos últimos quinhentos anos. Começam por ser a base do nosso vocabulário científico e filosófico. Ninguém pode ter nenhuma noção profunda do que é a nossa cultura sem ter algumas bases nestas línguas. Conheço pessoas que se exercem no cálculo infinitesimal com uma destreza infinitamente maior que a minha (não será difícil) mas que nunca pararam um segundo para pensar que o símbolo de integral é um “S” que vem de “summa” em latim. Ou que o estomatologista mais não é que um cientista da boca.

O exercício da língua é outro aspecto que beneficia dessa aprendizagem. As orações infinitivas quase desapareceram da prática porque não há memória do latim. E o misterioso uso de palavras gregas no português vulgar como “cara” e “cada” não suscita nenhuma curiosidade. As línguas mortas permitem-nos reflectir, ter interrogações sobre o que dizemos. E como comunicamos em geral dizendo, vê-se assim como se estreita o espaço das interrogações, da curiosidade, hoje em dia.

Mas também cultiva a abertura e a elasticidade: o latim e o grego são, em termos muito diversos, línguas simultaneamente muito rigorosas e muito diferentes das nossas. A sua estrutura morfológica e sintáctica obriga-nos a reconhecer a legitimidade de outras realidades, de outras culturas. E o seu estudo aprofundado obriga-nos a uma abertura infinitamente maior à diferença que viagens turísticas a países não europeus como o Burkina-Faso ou a Turquia. A viagem meramente turística obriga-nos apenas a dizer “obrigado” ou “boa tarde”. Em suma “pulcher est puella”. Aprendemos umas banalidades, como vamos a restaurantes exóticos, com comida adaptada a turistas. Aprender latim e grego implica percebermos que povos que pensavam de maneiras muito diversas de nós, se exprimiam de modo bem diverso do nosso, eram capazes de elaborar de forma tão ou mais consistente que a nossa.

Permite igualmente o acesso. Muitas das fontes mais importantes da nossa cultura perdem com a tradução. Mais não são que comida chinesa com tempero adaptado ao gosto europeu. Ver que conceitos, que estruturas frásicas usava Séneca não é indiferente para nele se reconhecer um irmão ou pelo menos um primo do cristianismo. Saborear a Vulgata latina ou a versão grega da Bíblia não é substituído por nenhuma tradução, por mais perfeita que seja. Permite portanto o acesso, mas também o rigor.

De comum a todos os políticos e homens públicos até há 40 anos o facto de todos terem pelo menos um verniz desta cultura clássica. Isso não os impediu de cometer erros, porque eram humanos. Mas permitia-lhes enquadrar num quadro mais vasto a sua perspectiva. Não seriam menos mentirosos, mas sabiam melhor no que mentiam. Confesso que me preocupam mais os que não mentem apenas porque acreditam nas patetices superficiais que constituem a sua pobre cultura.

Que relevância para a política? É fácil de se ver (um supino absoluto, para os cultores do latim, já agora).

Desconhecendo línguas mortas falta-lhes a ideia de um quadro completo, e um instrumento importante para reflectir sobre a mortalidade. Não é de espantar que a imperfeição do que fazem ou o preço mortal que podem fazer pagar não se lhes suscite sequer como problema.

Desconhecendo latim e grego, acreditam piamente em qualquer disparate que lhes venha à cabeça, porque desconhecem o quadro de forças em que se integram. Usam as palavras sem lhes perceber o significado profundo, estão no plano do cavador de enxada que nada sabe de física. Podem ser eficazes no curto prazo, mas são incapazes de inventar maquinaria mais potente. A sua linguagem é pobre, repetitiva, ladainha dos mesmos lugares comuns. Pouco nos dizem. São destituídos de real abertura e de elasticidade. São rígidos. Como desconhecem modos alternativos de se ser, vivem na mesma planura e tomam por montanha qualquer montículo. Social e culturalmente, não estão habituados a ter acesso às coisas. Nem rigor. Aceder a um salão exige sempre rigor. Estão habituados a ficar à porta, a não entrar. Não querem que os outros entrem, em consequência. Sobretudo acreditam em qualquer tontice que lhes passe pela cabeça, ou da cabeça de pessoas em quem tenham confiança. Nunca omitem, porque isso seria sinal que lhes sobra. E se mentem, fazem-no pouco, pelo menos intencionalmente. O espaço público está inundado assim de verdades, ou melhor, de excesso de sinceridades, que vivem apenas da falta de alternativa. Sem mérito, portanto. Se se pusessem a aprender latim e grego, e agora pisco o olho para os dotados de sentido prático, teriam ao menos o mérito de se ocuparem com outras coisas. Para as quais não são igualmente dotados, mas em que produziriam efeitos menos nefastos para os outros.


Alexandre Brandão da Veiga







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segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Gargalhada oficial

Garanto que não queria gozar o prato até ao fim. Por decoro. Por ter a noção de que «o Diabo está nos detalhes». Por simpatia. Porque não gosto de bater em quem se estampou.
Mas, em visita ao site da CML http://www.cm-lisboa.pt/, no veja a reportagem dou de caras com os três patrocínios oficiais da cerimónia.
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Primeira Casa Bandeiras
Mapa Da Cidade
Escapadinhas de Outono

A Primeira Casa das Bandeiras, que recomenda Bandeiras, Estandartes, Pendões, Hastes, Galhardetes e Guiões, seguramente invertidos; o Mapa da Cidade, para decifrar o labirinto do Vereador Nunes da Silva até ao Pátio da Galé; e as Escapadinhas de Outono, a seguradora que não evita riscos nem responde pelo próprio nome.

Para cúmulo, a equipa de António Costa escreve o texto solene:
by Câmara Municipal de Lisboa PLUS 2 days ago
As cerimónias oficiais das Comemorações 102º Aniversário da Implantação da República decorreram, no dia 5 de Outubro, na Praça do Município, com o solene hastear da Bandeira Nacional na varanda dos Paços do Concelho, e no Pátio da Galé, onde os presidentes da República, Aníbal Cavaco Silva, e da Câmara Municipal de Lisboa, António Costa, proferiram importantes discursos.
A propóstito de importantes: o lapso foi do funcionário do protocolo tutelado por António Costa. Mas o erro grave foi dos Presidentes que não tiveram presença de espírito para o corrigir em directo preferindo não estragar a coreografia da cerimónia a fazer o que está certo. Nada mais burguês. Nada menos patriótico. Nada menos presidencial.

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sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Tudo ou nada

Morreu Margarida Marante.
Nos anos 80 era a mais gira,  a mais nova, a mais esperta e a mais influente jornalista da única televisão portuguesa.
Nos anos 90, acrescentou poder ao sucesso anterior. Foi a figura central da informação da primeira televisão privada. A mais vista e a mais assertiva. Com Emídio Rangel, Margarida Marante formava uma dupla respeitada ou temida no País. Nas suas mãos cairam ministros e coligações políticas. Na sua antena revelaram-se candidatos e entenderam-se bastidores. Na sua expressão encontrava-se parte das respostas que ficavam por dar.
Nem sempre concordava com o seu protagonismo mas sempre suspeitei que podia haver aí alguma pena de o não ter. Lembro-me ainda do dia em que ela procurou chegar perto de João Paulo II, na Universidade Católica, em 1982, e foi afastada por um segurança que disse: «No, no, no, no!». O Papa viu e respondeu: «Si, si, si!» deixando-a profundamente comovida.
Muito depois, a vida mudou. E o País não permitiu que a estrela perdesse momentaneamente o brilho. Somos severos com os importantes.
Há vários anos que encontrava Margarida Marante no supermercado ou na rua. Quero crer que não nos conheciamos o suficiente para lhe dizer que as pessoas não dependem do reconhecimento público. Mas não disse.
Margarida deixa três filhos e a memória justa de quem nos tentou dizer mais do que sabíamos na construção de uma democracia imperfeita.

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quinta-feira, 4 de outubro de 2012

5 de Outubro, Nunca Mais!


Festeje-se de véspera, com a maior pompa e alegria, o fim do feriado mais divisionista de Portugal! Talvez o único que separa radicalmente os portugueses.
O 5 de Outubro representa a legitimidade do golpe violento (gerado no assassinato do Chefe de Estado e do seu Filho); simboliza a hegemonia das sociedades secretas; a instalação do terror; o domínio das perseguições; o controlo da imprensa; e o regime de partido único que, sob várias formas, dominou o País nos 66 anos seguintes.
Sem apoio popular, o golpe substituiu pela força, um regime constitucional, multipartidário, com imprensa livre e deputados de todas as facções no Parlamento, por uma série de ditaduras da qual só nos livrámos no final de 1975. Em rigor, só por esquisofrenia se podia celebrar a democracia em Abril e, seis meses depois, o seu contrário.  
Sabemos que cada feriado identifica qualquer coisa que não requer unanimismo. Mas o 5 de Outubro era, por excelência, o símbolo dos valores que qualquer sociedade democrática não defende para o seu País.
Viva Portugal!

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quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Não servir a quem morra


Hoje é dia de S. Francisco de Borja - Duque de Gandia. Aquele que, ao reconhecer o cadáver de Isabel de Portugal, a mais bonita Rainha da Cristandade, mudou de vida.
Inspirou Sophia. E hoje pode dar-nos uma luz sobre o que nos entretem.

Nunca mais
A tua face será pura limpa e viva
Nem teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.

Nunca mais amarei quem não possa viver
Sempre,
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória, a luz e o brilho do teu ser,
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência,
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.

Sofia de Mello Breyner Andersen

(Cortesia do site Povo)

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