terça-feira, 30 de outubro de 2012

Pobres medievais

Há circunstâncias nesta vida em que temos de fazer um mea culpa. Sempre gostei de todas as épocas da História europeia, mas não dei a devida apreciação à cultura de cada uma deles. Mais vocacionado para a cultura do mundo antigo e a cultura científica, digamos assim para simplificar, descurei em grande medida o que era específico da cultura medieval.

Muitas vezes ouvimos falar da riqueza e profundidade desta e doutra cultura. Em boa verdade não há programa que refira povos exóticos que se esqueça de nos lembrar como é profunda a sua cultura. Ora, como a cultura se mede pelas obras, uma pessoa de bom senso perguntar-se-á imediatamente onde estão essa obras tão diferentes, tão inesperadas.

Rapidamente somos desiludidos. Vemos umas criaturas a pintar-se, ou pulam, ou gritam. Por vezes há um rasgo de génio. Há povos que têm uma obra digna desse nome, outros que apenas se reduziram a ser o que são, o que deve ser bom para eles, admito, mas que nos deixa indiferentes, ou deveria deixar a quem mantenha alguma sanidade mental.

Observei com a mesma postura a dado momento a cultura medieval. Tanto quanto nunca acreditei nos que a chamam de subdesenvolvida em comparação com a sofisticação árabe, chinesa, persa, enfim qualquer cultura não europeia, de igual modo nunca levei muito a sério os que se extasiavam com algumas obras francamente primárias da poesia medieval, ou a igualmente recorrente referência às maravilhas da filosofia da Idade Média.

Muitos destes panegíricos pareciam mera rotina académica. Se alguém estuda um povo, uma época, tende com frequência a demonstrar como são extraordinários, como têm ou tinham o que nós já não temos ou nunca fomos capazes de ter. O “nós” aqui, é evidente, são os europeus. Como toda a gente sabe o pior povo e cultura do mundo. Pelo menos é o que corre. Por isso os elogios à cultura medieval pareciam-me a mim algo forçados.

E a verdade, pensa o cidadão comum, é que eles não tomavam banho todos os dias, não usavam telemóveis, não andavam de avião. Uns atrasados, pobres deles. O facto de estas verdades serem aplicáveis a quase todos os povos da época não comove os admiradores de exotismo. Compreende-se. É que perceberam que os critérios da cultura europeia são tão exigentes que nunca os poderão preencher e portanto refugiam-se em culturas que não estão em posição de os julgar.

Da parte que me toca não julgo obras antigas com indulgência. Parece-me um insulto aos mortos. Devo-lhes suficiente respeito para os analisar pelo crivo mais exigente que me é possível. Só assim posso perceber a eventual perenidade do seu valor.

Poderia pegar num ou noutro exemplo. Seriam imensos. Mas tomarei como lição a obra de Duns Scoto. Filósofo contemporâneo de São Tomás de Aquino, nele encontramos aspectos que são completamente descurados na nossa época. Qual o grande tema de preocupação? A prova da existência de Deus. Tema ridículo, fora de moda. Mas, como dizia o seu grande estudioso, Etienne Gilson, só despreza esta questão quem nega à partida qualquer espécie de demonstração racional da Sua existência. Ora dá-se o caso, conjecturo eu, de que as pessoas que hoje em dia recusam o tema, não o fazem por terem percebido a impotência da razão para o tratar, mas por a sua razão não ser potente o bastante para sequer compreender o problema. O sorriso de desprezo é o do gladiador que olha o filósofo. Esquecemos o primeiro, e incensamos o segundo.

O que faz Duns Scoto? Ao contrário de São Tomás de Aquino, que dá uma grande importância a provas físicas, como a do primeiro motor, Duns Scoto demonstra segundo provas metafísicas, pela infinitude do ser. A capacidade de discernimento lógico que isto pressupõe é imensa, maior que a dos nossos contemporâneos. Mas, para além disto, e bem mais que isto no que nos interessa, é que sabe destrinçar muito bem as competências da razão das da revelação. O ser infinito, laborando com conceitos de metafísica, é acessível à razão humana. Não o da Incarnação que a transcendente.

Problema “meramente” metafísico, que fará sorri os gladiadores e os limpadores de arena que povoam o actual espaço público. Mas se bem atentarmos, desenvolve-se aqui algo que julgamos privilégio da nossa época. O pensamento funcional, operacional, que distingue instâncias de legitimidade. Certas coisas podem ser ditas em certos planos lógicos, mas não podem ser provadas ou são mesmo destituídas de sentido noutros. O que fez a ciência moderna foi apenas direccionar esta capacidade de pensar funcionalmente. O que faz o Direito que separa o que compete ao Direito do que compete à religião e a outras ordens sociais, mais não faz que glosar este tipo de pensamento.

Não me compete aqui analisar o pensamento de Duns Scoto. Porque desenvolvimentos semelhantes poderiam ser feitos em relação a Pedro Abelardo, a São Tomás de Aquino, ou a Henrique de Gand. Porque não é este o lugar para analisar a filosofia medieval. No que me interessa agora o que importa salientar é o que releva deste pensamento para o actual espaço público.

Os modernos (conceito criado na Idade Média, e pelos escolásticos, nunca é demais salientar) acham que vivem num mundo cheio de novidades, que superou todos os resquícios medievais do negrume, do obscurantismo, dos horrores dessa época infame em que só se cometeram crimes, como as cruzadas e a inquisição. Os lugares comuns mais torpes se desenvolvem na matéria. Mas como todos os ignorantes de História, para além de virem a ser ignorados por ela, cobrem-se de ridículo.

Com efeito, é a mesma técnica que cria o laicismo, o pensamento funcional, que é herança da escolástica medieval. É o mesmo pensamento funcional que sustenta o discurso nas ciências, e de modo mais insistente ainda, nas ciências sociais. Os laicos, os obcecados coma ciência, herdaram não só conceitos medievais (subjectivo e objectivo, inércia, por exemplo), como sobretudo são devedores deste pensamento medieval.

Herdaram do pensamento medieval a separação entre o principado e o sacerdócio, entre o Estado e a Igreja, tendência que se encontra no longo prazo na História europeia, embora de forma muito menos uniforme do que certas esperanças acalentam.

Herdaram desta Idade Média não apenas grande parte do seu vocabulário filosófico, erudito, científico, como critérios científicos ainda hoje em dia fundantes (a navalha de Occam, por exemplo), mas também o Direito, a maneira de pensar o mundo. Seja qual for a religião ou falta dela de um europeu actual, se quiser falar uma língua europeia e não um dialecto menor, não tem outro remédio e não ir buscar ao vocabulário destes pensadores cristãos medievais.

O que começou por ser uma operação acaba por ser um esquecimento, e não vejo nenhum mérito em pura e simplesmente esquecer. Esquecer é sempre uma falência fisiológica, mesmo que seja útil como defesa do organismo. Começou-se por tentar depurar estes conceitos medievais da sua conotação cristã e pagã para dar ilusão de um mundo novo. Mas as palavras têm a sua própria força, a sua própria lógica, não podem ser arbitrariamente usadas. Se eu disser que um ministro é um rabanete será difícil que as pessoas acreditem que estou a fazer uma classificação meramente biológica credível.

O que pretendo com isto dizer é que sofremos de um duplo movimento. Não superámos, apenas depurámos o que vinha da Idade Média. Não fomos para além em muitos aspectos, apenas esquecemos. Depuração e esquecimento são duas ordens, uma meramente instrumental e outra de falência fisiológica. É esta a época que nos cobre. Uma época meramente instrumental em falência fisiológica, exactamente porque o instrumento, poderoso, é usado para fins que o são cada vez menos. Em que a defesa do esquecimento, de eficaz passa a mera falência de metabolismo.

É este o espaço público, em que os conceitos e os métodos são meramente fruídos e não vividos, e por isso mesmo não enriquecidos, exactamente porque a sua genealogia foi olvidada. As criaturas que o povoam são seres meramente instrumentais e em falência fisiológica. Daí que não nos devamos espantar que à expressão tenha sucedido o esgar e ao discurso o balbuciamento. Anestesiados que estamos pelo hábito, já entendemos como natural esta linguagem e esta postura. Mas se bem virmos, estas criaturas mais não são que meros portadores das suas inevitabilidades, das suas tristes sinas e de uma Idade Média em versão apodrecida, sem viço, de onde se alimentam e para onde cospem. É essa mistela de que se alimentam. Não é de estranhar que a sua digestão seja dolorosa, e o seu aspecto seja repugnante para alguém com critério.


Alexandre Brandão da Veiga

 










1 comentários:

Táxi Pluvioso disse...

A malta divertia-se e como podia dedicar-se à mendicidade havia sempre trocos no bolso (já não me lembro quem proibiu mais ordens mendicantes no país, D. Dinis?, já havia muitas, andava o povo de mãos estendida, no fundo não são tempos muito diferentes mesmo com telemóveis). boa semana