Para que servem as línguas mortas?
Lembro-me que um conhecido meu, quando se decidiu a fazer o curso de Letras na Universidade Clássica de Lisboa, teve de aprender latim. Estava a fazer filologia românica, ou como se chamará agora, e quem estabeleceu o currículo entendeu, e bem, que não era concebível alguém fazer um curso de Letras sem saber latim.
Até aqui aplaudo o ensejo. O problema é que o método de aprendizagem do latim era o das línguas vivas. Aprendiam latim como se fosse uma língua viva. O resultado é que na terceira declinação não sabiam distinguir as palavras de tema em “i” das de tema em consoante, o que obedece a regras elementares, mas essenciais para não se darem calinadas nos genitivos do plural. “Puella est pulchra”, “pulchra est puella”, “a rapariga é bonita” – e ficava-se por aqui o que ele aprendia.
Quando decidi aprender latim não tinha a expectativa de me encontrar num autocarro com um turista romano a quem tivesse de indicar um hotel. Nem sequer tinha a ilusão que numa reunião internacional me pudesse servir de língua veicular. Bem vistas as coisas, aprendi-o por pura inutilidade. Como dizia a minha antiga professora de latim, quando umas alunas tiveram a triste ideia de lhe perguntar para que servia aprender latim: para nada, não serve para cultivar batatas.
Mas vou tentar responder a esta questão e ver que implicações tem no espaço público europeu.
As línguas mortas têm para mim duas vantagens: estão mortas e são as que são, as que temos disponíveis.
A primeira vantagem parece paradoxal. Que vantagem traz a morte? Os leitores de biografias, género que os franceses e ingleses cultivam melhor que ninguém, mas em Portugal praticamente inexiste, sabem que a biografia de uma personagem morta tem uma imensa vantagem: pode-se saber a vida completa dessa personagem. O problema das autobiografias é que nunca nos contam a história toda. Nas feitas por terceiros, conhecemos o percurso desde o nascimento até à morte. Aquele conjunto faz sentido. É a diferença de tentar apanhar um comboio em andamento ou visitar um comboio parado mas com um longo percurso.
Aprender uma língua morta tem assim a vantagem de podermos fazer balanços, senão definitivos, o que seria sempre temerário, pelo menos mais completos. É sempre uma reflexão sobre a mortalidade.
Em segundo lugar, as línguas mortas que nos são mais disponíveis são o que são. Não me refiro obviamente ao sânscrito ou ao hitita, quase impossível de aprender sem livros alemães, franceses ou ingleses. Por mais apaixonantes que sejam estas línguas, e por mais que com elas se possa aprender, nomeadamente sobre o nosso passado indo-europeu comum.
Refiro-me ao latim e ao grego. Uma durante mais de dois mil anos estruturante da nossa cultura em continuidade, outra estruturante ainda há mais tempo, mas em continuidade sobretudo nos últimos quinhentos anos. Começam por ser a base do nosso vocabulário científico e filosófico. Ninguém pode ter nenhuma noção profunda do que é a nossa cultura sem ter algumas bases nestas línguas. Conheço pessoas que se exercem no cálculo infinitesimal com uma destreza infinitamente maior que a minha (não será difícil) mas que nunca pararam um segundo para pensar que o símbolo de integral é um “S” que vem de “summa” em latim. Ou que o estomatologista mais não é que um cientista da boca.
O exercício da língua é outro aspecto que beneficia dessa aprendizagem. As orações infinitivas quase desapareceram da prática porque não há memória do latim. E o misterioso uso de palavras gregas no português vulgar como “cara” e “cada” não suscita nenhuma curiosidade. As línguas mortas permitem-nos reflectir, ter interrogações sobre o que dizemos. E como comunicamos em geral dizendo, vê-se assim como se estreita o espaço das interrogações, da curiosidade, hoje em dia.
Mas também cultiva a abertura e a elasticidade: o latim e o grego são, em termos muito diversos, línguas simultaneamente muito rigorosas e muito diferentes das nossas. A sua estrutura morfológica e sintáctica obriga-nos a reconhecer a legitimidade de outras realidades, de outras culturas. E o seu estudo aprofundado obriga-nos a uma abertura infinitamente maior à diferença que viagens turísticas a países não europeus como o Burkina-Faso ou a Turquia. A viagem meramente turística obriga-nos apenas a dizer “obrigado” ou “boa tarde”. Em suma “pulcher est puella”. Aprendemos umas banalidades, como vamos a restaurantes exóticos, com comida adaptada a turistas. Aprender latim e grego implica percebermos que povos que pensavam de maneiras muito diversas de nós, se exprimiam de modo bem diverso do nosso, eram capazes de elaborar de forma tão ou mais consistente que a nossa.
Permite igualmente o acesso. Muitas das fontes mais importantes da nossa cultura perdem com a tradução. Mais não são que comida chinesa com tempero adaptado ao gosto europeu. Ver que conceitos, que estruturas frásicas usava Séneca não é indiferente para nele se reconhecer um irmão ou pelo menos um primo do cristianismo. Saborear a Vulgata latina ou a versão grega da Bíblia não é substituído por nenhuma tradução, por mais perfeita que seja. Permite portanto o acesso, mas também o rigor.
De comum a todos os políticos e homens públicos até há 40 anos o facto de todos terem pelo menos um verniz desta cultura clássica. Isso não os impediu de cometer erros, porque eram humanos. Mas permitia-lhes enquadrar num quadro mais vasto a sua perspectiva. Não seriam menos mentirosos, mas sabiam melhor no que mentiam. Confesso que me preocupam mais os que não mentem apenas porque acreditam nas patetices superficiais que constituem a sua pobre cultura.
Que relevância para a política? É fácil de se ver (um supino absoluto, para os cultores do latim, já agora).
Desconhecendo línguas mortas falta-lhes a ideia de um quadro completo, e um instrumento importante para reflectir sobre a mortalidade. Não é de espantar que a imperfeição do que fazem ou o preço mortal que podem fazer pagar não se lhes suscite sequer como problema.
Desconhecendo latim e grego, acreditam piamente em qualquer disparate que lhes venha à cabeça, porque desconhecem o quadro de forças em que se integram. Usam as palavras sem lhes perceber o significado profundo, estão no plano do cavador de enxada que nada sabe de física. Podem ser eficazes no curto prazo, mas são incapazes de inventar maquinaria mais potente. A sua linguagem é pobre, repetitiva, ladainha dos mesmos lugares comuns. Pouco nos dizem. São destituídos de real abertura e de elasticidade. São rígidos. Como desconhecem modos alternativos de se ser, vivem na mesma planura e tomam por montanha qualquer montículo. Social e culturalmente, não estão habituados a ter acesso às coisas. Nem rigor. Aceder a um salão exige sempre rigor. Estão habituados a ficar à porta, a não entrar. Não querem que os outros entrem, em consequência. Sobretudo acreditam em qualquer tontice que lhes passe pela cabeça, ou da cabeça de pessoas em quem tenham confiança. Nunca omitem, porque isso seria sinal que lhes sobra. E se mentem, fazem-no pouco, pelo menos intencionalmente. O espaço público está inundado assim de verdades, ou melhor, de excesso de sinceridades, que vivem apenas da falta de alternativa. Sem mérito, portanto. Se se pusessem a aprender latim e grego, e agora pisco o olho para os dotados de sentido prático, teriam ao menos o mérito de se ocuparem com outras coisas. Para as quais não são igualmente dotados, mas em que produziriam efeitos menos nefastos para os outros.
Alexandre Brandão da Veiga
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