Bento XVI um papa mal amado? VII
Mas se há aspecto em que este papado se destaca é o da problemática da razão. A modernidade tem uma relação francamente doentia com a razão. Por um lado, considera que tem o seu monopólio, mas por outro lado sente o maior desprezo por ela. Invoca a ciência para fora dela, mas internamente mostra a sua inanidade. A modernidade desemboca no pessimismo, no relativismo, nos altermundalismos, nas teorizações transeuntes.
O que disse o papa em Ratisbona? Qual é o sumo do que disse? Que a ligação entre o Logos grego e o cristianismo não é ocorrencial. Que o cristianismo é a religião do Logos feito carne. Que a razão não é algo desencarnado. Mas esta conclusão aparentemente singela, para ser devidamente compreendida, tem de ser apreciada no seu contexto retrospectivo, em certo sentido mais teórico, e prospectivo, mais densamente prático.
Qual é o contexto retrospectivo deste discurso?
Para o termos presente é preciso perceber que o papa é alemão e falava para alemães, ou seja, pessoas que conhecem bem este contexto. Ou melhor, não se dirige apenas a alemães, dirige-se a todos, mas o público que tem é conhecedor. Está a actuar no seu magistério. Exerce uma pastoral para pessoas cultas, que foi sempre uma das glórias da igreja e uma das suas carências no passado recente (1).
A tendência desde o fim do século XIX na ciência alemã foi a da fragmentação das fontes do cristianismo. Nietzsche segrega nos gregos os pós-socráticos dos pré-socráticos, logo o cristianismo poderia vir de uma forma degenerada de cultura grega, mas não da pura, a pré-socrática. Von Harnack pretende demonstrar a total alteridade entre a cultura grega e a cultura cristã, nomeadamente com os seus estudos sobre Marcião, o gnóstico, e Porfírio (2). Overbeck pretende demonstrar que os Padres da Igreja criaram um cristianismo diverso do de Cristo, à revelia de certa tendência protestante de retorno à patrística como oposição à escolástica, que teria sido uma perversão medieval da pureza cristã. Estudos sobre os gnósticos pretendem mostrar a profunda alteridade entre o cristianismo e o judaísmo.
Ou seja, por todas as vias a genealogia cristã estava a ser fragmentada: a continuidade dos gregos entre si, a continuidade entre a cultura helénica e o cristianismo, a continuidade da tradição propriamente cristã, a continuidade da tradição cristã e o judaísmo (Antigo e Novo Testamento).
E o problema é que estas feridas não são pretéritas. Todo o século XX se teve de debater com estas cesuras, corrigindo umas para perceber que outras se abriam. É a isto que o papa responde mostrando a continuidade destas tradições e mostrando as suas implicações vitais. Ou seja, há uma e uma só razão incarnada. A sua posição é intelectual, mas é igualmente vital.
O do curto prazo é o jornalístico. Que se disse? Que o papa ofendeu o islão, que não devia ter feito esse discurso. Se os muçulmanos entenderam que o seu discurso era uma ofensa ao islão, por o islão ser também afinal uma religião racional, o que se mostrou nos meios da comunicação social? Selvagens a ameaçar de morte, e a queimar cruzes… para mostrar a sua racionalidade. Sem retirar culpas às multidões, os espectadores pecaram por falta de sentido crítico (3).
Repare-se que o diálogo das religiões é algo de bem diverso do ecumenismo, nunca é demais salientar. As religiões não dialogam entre si, são os homens que o fazem. Não se pretendem consensos ou sincretismos religiosos, ou negociar com os muçulmanos a divindade de Cristo, por exemplo, ou a adesão a certas formas de docetismo muçulmano.
O diálogo com o Islão não é importante pelo seu grande desenvolvimento intelectual, que tenha porventura desafiado a cristandade, mas por razões geoestratégicas que lhe dão uma importância muito superior à que a sua criatividade intelectual nos últimos séculos tem tido. Por isso é importante um desafio intelectual ao Islão.
E existem profundas diferenças entre o islão e o cristianismo. Ao islão faltam dados de complexidade fundamentais no cristianismo: a filiação divina, a santíssima trindade (5), a Incarnação. Na escatologia há um projecto de eternidade mas não de infinitude (6), na natureza de Deus as concepções são bem diversas (7). O islão é um abaixamento de exigências sob o ponto de vista civilizacional, intelectual e sentimental. É mais prático, mais sensato (8). O cristianismo é mais racional. São coisas bem diversas (9).
Mas este diálogo com o Islão é apesar de tudo secundário para o cristianismo. O seu aspecto mais importante é o que revela das falhas dos próprios cristãos, embebidos numa época que vive uma má relação com a razão. Com efeito, isto mostra que a nossa época odeia a razão como aventura, como diálogo, como efectiva descoberta, como o foi para os gregos e é herança cristã. E que a nossa época quer ver a razão como algo de seco, burocrático, e não algo vivo e incarnado como o cristianismo. O que este papa vem lembrar, e isto vem desde o Vaticano II da sua parte, é que o cristianismo é uma religião de razão, mas de uma razão que é aventura, é diálogo, é contacto humano.
Esta relação malsã com a razão vê-se em vários aspectos dos discursos dos próprios cristãos.
O primeiro é o da separação entre revelação e razão. Separação fria, seca, irrevogável, que mostra vários vícios vitais e de pensamento. Em primeiro lugar, antropologicamente. Pressupõe que o ser humano é fragmentado, com compartimentos estanques. A razão tem de ser algo frio e destituído de vida. Um teste simples destrói esta tese. Uma mãe que educa os filhos, precisamente por acto de amor, tem de ser muitas vezes racional. A razão é mais prova de amor que deixar-se guiar pelos sentimentos. Em segundo lugar, é pouco consistente com o Evangelho. Cristo não veio à terra para converter os peixes e as medusas, mas seres racionais. Quando fala por parábolas não o faz para nosso descanso intelectual. Em terceiro lugar, é um erro estratégico de grandes proporções. Quando um cristão faz essa separação demonstra que interpreta o cristianismo com base na modernidade, aceita-a plenamente. E portanto coloca-se na posição da modernidade entender a sua fé como entende o gosto, o hábito cultural, a idiossincrasia. Cada um tem a sua e nada mais há a discutir sobre a questão (10).
Outro vício de discurso dos católicos decorrente de uma errada concepção da razão é o da permanente referência a valores. Quando se fala de cristianismo, o cidadão mediamente culto fala de valores. Esquece-se de falar de fundamentos. Neste aspecto mostra-se rendido à modernidade (11).
Tomemos um exemplo. Não haveria ciência europeia, ou seja a ciência, sem três pressupostos cristãos:
a) A ideia do movimento linear e não circular, sem o qual a ideia de inércia não seria construída (12);
b) A ideia positiva do infinito sem a qual não haveria análise infinitesimal, instrumento fundamental da ciência e imensa conquista científica em si mesma (13);
c) A dignidade da matéria no cristianismo (Cristo tinha corpo, há ressurreição dos corpos) sem a qual não haveria física (14).
A ciência é feita de bloqueios. Poincaré viu toda a teoria de relatividade, mas faltou-lhe dar um pequeno passo. Os números imaginários foram malditos. Geometrias não euclidianas foram feitas durante séculos e abominadas e exorcizadas
Este papa lembra à modernidade de forma clara que falece por si mesma, que não é o seu próprio fundamento. Que só por si não tem fundamento. Por isso a modernidade não gosta dele. Não é por ele não gostar de modernidade, mas por lembrar-lhe de onde vem e do que carece. Ou seja, do seu pai: o cristianismo.
Este erro mais uma vez não é apenas lógico, intelectual, tem efeitos estratégicos. A discussão sobre os fundamentos cristãos da Europa foi envenenada pelos próprios cristãos quando se apressaram a falar de valores cristãos. Assim fazendo, colocaram-se nas mãos da argumentação modernista: os valores são relativos, são como os gostos. Cada um tem os seus. Mesmo admitindo o pluralismo axiológico da nossa época, mesmo admitindo que o cristianismo fenece (hipótese apressada que nem interessa discutir aqui), há uma verdade insofismável: a Europa foi construída sobre o cristianismo, juntamente com o paganismo indo-europeu. Não há segunda opinião sobre isto que mereça discussão. A prova do erro estratégico é que os supostos modernistas recusaram-se a discutir os fundamentos (15).
Esta recusa em discutir fundamentos demonstra um profundo cansaço intelectual e espiritual, um medo de se aventurar para além do espaço da modernidade, das suas fronteiras seguras. Tudo o que vá para além do passeio seguro e com guia turístico assusta o homem contemporâneo. Esquerda e direita, liberais e intervencionistas fazem planos, tentam antecipar o futuro, o que em si não é incorrecto, mas se torna uma obsessão doentia em exagero. A modernidade tem medo, não pretende dialogar, exactamente porque guarda a razão como um sultão guarda a concubina no harém. Acredita que tem o seu exclusivo, mas por isso enfada-se dela.
E esse é um dos maiores erros dos cristãos contemporâneos. É o de não enfrentarem a modernidade nos seu próprios termos, ou nos que diz serem seus: os da razão. Sempre que um cristão invoca a Bíblia, sempre que invoca o santo nome de Cristo, desautoriza o seu discurso e descansa a modernidade. Afinal é a apenas um exemplar de uma tribo, um exemplar idiossincrático.
Neste aspecto, o pensamento de René Girard é importante sobre a forma que têm os cristãos de pensarem a modernidade. Em síntese, a antropologia científica nasceu com ingleses e com duas bases: a ideia do primitivo, e a ideologia imperial. Toda a antropologia do século XX tem girado à volta disto. Agora para dizer que os primitivos não o são e a ideologia imperial é criminosa, execrável, pecadora. E eis que nos EUA um francês estuda antropologia e muda os dados de base da antropologia: o centro não é o primitivo e a ideologia imperial. São outros dois: o arcaico e o cristão.
O cristianismo como base de ciência. É verdade, parece chocante a ouvidos modernos. Mas o que diz Girard é que a maior revolução na cultura humana foi a Paixão. Porquê? Todas as culturas se fundaram na violência exercida em relação à vítima, e todos os sacrifícios tem marcas sangrentas, mesmo que atenuadas, dessa vítima. Isto não é novo no cristianismo. Que apareça um deus que se sacrifique não é igualmente novo. Desde os mitos astecas às figuras de Hércules podemos encontrar deuses que se sacrificam ou deuses vítimas (16).
Que há de novo então, de revolucionário? Uma ideia muito simples e por isso inesperada: a vítima, a vítima é inocente. Estranho, absurdo: a vítima é inocente. E isto fundou, não apenas novas civilizações, mas possibilidades de ser humano completamente novas. Passa-se do bode que é expiatório, para o cordeiro que é de Deus.
Este papa lembra mais uma vez que ser cristão não é ter mais uma entre outras religiões, entre outros mitos, entre outros rituais. Ser cristão é não ser arcaico, é usar da razão, mas uma razão que nos lembra a todo o momento uma e uma só coisa: Deus é amor e por isso a vítima é inocente. Mas isto só pode acontecer porque a razão de que falamos é uma razão viva, a vida por excelência, e não uma razão meramente mecânica, morfológica ou dialéctica. Por isso pode ser fundamento e por isso exige fundamento. Só assim consegue ultrapassar uma civilização do medo (17).
1 Um dos equívocos de certo catolicismo popular é o de menorizar a pastoral das pessoas cultas. O desprestígio intelectual da igreja deve muito a este erro de pastoral. No caso português o facto de não existir nada equivalente a uma “Cerf” francesa só mostra até que ponto esse desprestígio tem algum fundamento.
2 Porfírio continua a ser para mim o mais fascinante escritor anti-cristão. Plotino dá uma atenção distraída ao cristianismo, Juliano o Apóstata não consegue fugir a um tom publicista por mais culto que fosse, Celso é demasiado exaltado, Proclo parece quase ignorar o cristianismo, representando um paganismo tardio que se fecha em si mesmo, Símaco é elegante e comovente na sua dignidade, mas pouco profundo.
3 O discurso citado pelo papa, de Miguel II Paleólogo, é bem mais elaborado e menos faccioso do que se disse na comunicação social. Trata-se de um imperador culto, em acréscimo vassalizado pelo sultão, humilhado na sua grandeza de “basileus”, que tem de discutir teologia com um persa num diálogo que em grande medida foi de surdos.
4 Uso a expressão “cultos" e não a irritante “moderados” porque o Islão é uma religião de limites e moderação, embora não de amor. Os extremismos têm a sua fonte, mais que em condições socio-económicas em frustração civilizacional.
5 Por isso alguns movimentos sufis falam da solidão de Deus. O deus cristão não está só. É uno e trino ao mesmo tempo. Daí que a mística cristã nunca tenha dado ênfase à solidão de Deus.
6 O homem é inferior a Deus e apenas tem de ter limites – não tem um projecto de divinização como os ortodoxos lembram bem – “sede perfeitos como o Pai é perfeito”, o que é uma insensatez para o islão. O islão é uma religião mais sensata que o cristianismo. Mas o cristianismo não é religião de sensatez, mas de razão.
7 A misericórdia de Deus é comum – mas Deus É amor para um cristão, enquanto é apenas justo, mas nunca amor, para um muçulmano. É blasfémia definir Deus como amor. É limitá-Lo e é absurdo que o infinito e omnipotente ame uma criatura, seria uma diminuição.
8 Alguns historiadores definem o Islão como a ultima civilização da antiguidade, no que em certa forma têm razão. A afinidade muçulmana com a ética e a filosofia grega, mas já não com a literatura e a arte, explica-se em parte por esta via.
9 Bem sei que estes tópicos são os clássicos da apologética cristã, nomeadamente a oriental, por pressão muçulmana, pelo menos desde São João Damasceno. Curioso o facto de um dos argumentos, invocados desde o século VIII e que vai até ao persa que dialoga com Miguel Paleólogo é o do sucesso terreno do Islão como prova da sua superioridade e verdade. É evidente que, falhando este argumento desde há meio milénio, a argumentação islâmica de recurso se encontra fragilizada.
10 Um dos corolários desta premissa é uma tendência de muitos cristãos para acharem que o Estado de Direito Democrático é a realização do cristianismo, quando é apenas uma das suas realizações. Sua realização sem dúvida, mas apenas uma entre outras. É constrangedor ver como muitos se dirigem às constituições para interpretarem a vontade divina.
11 Partilho em grande medida da irritação de Heidegger em relação à discussão dos valores como alternativa da discussão dos fundamentos, na medida em que acaba por ser uma desistência da própria razão. A História da filosofia dos valores mostra a sua limitação. Trata-se de uma filosofia acossada que tenta estabelecer para si um pequeno feudo de legitimação perante o império da ciência na segunda metade do século XIX. Teve o mérito da existência mas são as suas próprias regras de legitimação que mostram as suas limitações.
12 A luta de Santo Agostinho contra o "falsus circulus" é disso significativa. É evidente que a linha recta é generalizada em geodésica. Mas sem a enunciação primária não se chegaria à secundária. Antes de se poderem pensar números complexos é necessário admitir os imaginários.
13 Entendamo-nos. A suposta incapacidade de pensar o infinito pelos gregos já de há muito foi bastante contestada por Mondolfo, e creio que de forma convincente. A questão não é a da incapacidade de pensar o infinito. A questão está na sua valorização positiva. Zenão, Eudoxo e Arquimedes pensaram de acordo com mecanismos de recorrência, mas nunca foram capazes de elaborar um cálculo infinitesimal. Não é uma questão de falta de inteligência, mas de horizonte vital. Afirmar que “Deus”, ou “o divino” é “apeîron” soa a ouvido helénico a algo como “Deus é informe, desordenado, sem estrutura”. A ideia de indução infinita de Poincaré não se compreenderia fora de espaço cristão. De igual forma está por estudar a influência do cristianismo na álgebra dos transfinitos de Cantor (excepção feita à obra de George Warren Dauben).
14 Mais uma vez não é por acaso que a matematização grega ocorre sobretudo na astronomia, quando o mundo supralunar era entendido como tendo uma constituição diferente da matéria do mundo sublunar. Neste aspecto as investigações de Pierre Duhem são muito esquecidas. A tendência neoplatónica dos espíritos moventes dos astros impedia a possibilidade de leis da Natureza imposta por Deus desde a criação, de acordo com Étienne Tempier, bispo de Paris no século XIII. Ora a física baseia-se na existência de leis físicas. As relações entre platonismo, aristotelismo e cristianismo têm efeitos variados na História das ciências modernas. O fragmento 89 do “Contra os Cristãos”de Porfírio é bom exemplo da perenidade da mentalidade pagã.
15 O argumento grosseiro que vi redito em vários países foi o de “não tenho raízes porque não sou um legume” o que é sintomático, porque estão prontos a discutir a relatividade dos valores, mas não fundamentos, ou seja, a dimensão racional.
16 Que uma figura divina ou divinizada seja vítima é quase trivial. Cronos mata os seus filhos, Rómulo e Remo são sacrificados. Os exemplos multiplicam-se até ao infinito.
17 Citando um autor preferido deste papa: “ama et fac quod uis”. Ama e faz o que quiseres. Só um Santo que chora perante a Razão (nos Solilóquios), que se entrega a ela, que está obcecado com o conhecimento, poderia ter expresso a mais bela fórmula da moral. Uma moral como liberdade fundada no amor.