A doença, a cura
O Gonçalo Magalhães Colaço e eu mantivemos aqui, aqui e aqui um diálogo que, se da minha parte foi saltando ao pé coxinho do elegante para o diletante, da parte dele foi inteligente, convicto e sistémico.
Responder ponto por ponto ao rigor e à lógica do Gonçalo é uma tarefa que não está ao alcance do hedonismo de que cantos pouco gregorianos me fizeram iludido adepto (muita razão tinha ele quando duvidava do meu autoproclamado estoicismo).
O que nos separa não é pouco. É mesmo muito mais do que as nossas boas maneiras deixam supor. Por muito menos, e nenhuma das partes se livra do estigma, já se matou.
Separa-nos a fé. Que um tem e outro não. Separa-nos a forma como fundamos a moral com que encaramos o mundo (mesmo que fosse, e não é, a mesma). Separa-nos a razão pela qual proclamamos amar o próximo (e aqui recomendo-me um prudente silêncio wittgensteiniano). Separa-nos o discurso filosófico, o meu mais racionalista e de pendor não-metafísico, o dele cruzando, num amor sem barreiras, filosofia e teologia, certamente para escândalo (a mim que nada me escandaliza) de muitos modernos pensadores. Tenho um batalhão de razões e um armazém de livros prontos a partir em cruzada contra Gonçalo e contra a conspícua mancebia das duas disciplinas em que se alimenta. Melhor: tive. Mas desisto.
Há dias, um velho amigo meu, insinuou-me, com extrema e literária gentileza, ele que é de ciências e matemáticas (eu tudo confundo), que todas as teorias que sustentamos, filosóficas, religiosas, politicas, científicas, são ficções. Tão literárias, tão luminosamente cegas, como as ficções de Jorge Luis Borges.
Nas ficções, na literatura, é perigoso acreditar que se possui a Verdade. De vez em quando, e parafraseando com alguma liberdade um autor que há pouco publiquei, o Belo leva-nos pela cintura. A plenitude desse momento é o melhor que nos pode acontecer.
E foi esse pequeno momento, foi a beleza consoladora que por vezes (raras vezes hèlas!) perpassa pela religião, que me levou a evocar, nostálgico, a notícia da morte de Deus. No mundo contemporâneo, que por optimismo crónico não detesto, e embora sabendo que por mim ninguém se daria a semelhantes trabalhos, sinto que me montaram uma armadilha.
Por um lado, não consigo aceitar a rejeição primária e vulgar da religião, e não vejo que o alegre e secular extermínio da aspiração ao sublime que lhe está associado possa ser saudado como uma vitória do espírito; por outro lado, perturba-me que a maior parte da religiosa ressurreição chegue revestida de uma cosmética teológico-filosófica que temo ser o regresso a um modelo de pensamento moralista e sectário pronto a desaguar numa lógica de exclusão. E é neste estado de vexatio animae que me parece, mais vezes do que as vezes que surge bela e consoladora, que a religião não é a cura, mas a própria doença.
Tudo isto que acabo de dizer não é já ao Gonçalo que o digo, mas a mim mesmo, despojado de doutrina e da crença nela, seduzido apenas por uma filosofia que Wittgenstein definiu de forma lapidar neste aforismo: “As fronteiras da minha linguagem são as fronteiras do meu mundo”.
Responder ponto por ponto ao rigor e à lógica do Gonçalo é uma tarefa que não está ao alcance do hedonismo de que cantos pouco gregorianos me fizeram iludido adepto (muita razão tinha ele quando duvidava do meu autoproclamado estoicismo).
O que nos separa não é pouco. É mesmo muito mais do que as nossas boas maneiras deixam supor. Por muito menos, e nenhuma das partes se livra do estigma, já se matou.
Separa-nos a fé. Que um tem e outro não. Separa-nos a forma como fundamos a moral com que encaramos o mundo (mesmo que fosse, e não é, a mesma). Separa-nos a razão pela qual proclamamos amar o próximo (e aqui recomendo-me um prudente silêncio wittgensteiniano). Separa-nos o discurso filosófico, o meu mais racionalista e de pendor não-metafísico, o dele cruzando, num amor sem barreiras, filosofia e teologia, certamente para escândalo (a mim que nada me escandaliza) de muitos modernos pensadores. Tenho um batalhão de razões e um armazém de livros prontos a partir em cruzada contra Gonçalo e contra a conspícua mancebia das duas disciplinas em que se alimenta. Melhor: tive. Mas desisto.
Há dias, um velho amigo meu, insinuou-me, com extrema e literária gentileza, ele que é de ciências e matemáticas (eu tudo confundo), que todas as teorias que sustentamos, filosóficas, religiosas, politicas, científicas, são ficções. Tão literárias, tão luminosamente cegas, como as ficções de Jorge Luis Borges.
Nas ficções, na literatura, é perigoso acreditar que se possui a Verdade. De vez em quando, e parafraseando com alguma liberdade um autor que há pouco publiquei, o Belo leva-nos pela cintura. A plenitude desse momento é o melhor que nos pode acontecer.
E foi esse pequeno momento, foi a beleza consoladora que por vezes (raras vezes hèlas!) perpassa pela religião, que me levou a evocar, nostálgico, a notícia da morte de Deus. No mundo contemporâneo, que por optimismo crónico não detesto, e embora sabendo que por mim ninguém se daria a semelhantes trabalhos, sinto que me montaram uma armadilha.
Por um lado, não consigo aceitar a rejeição primária e vulgar da religião, e não vejo que o alegre e secular extermínio da aspiração ao sublime que lhe está associado possa ser saudado como uma vitória do espírito; por outro lado, perturba-me que a maior parte da religiosa ressurreição chegue revestida de uma cosmética teológico-filosófica que temo ser o regresso a um modelo de pensamento moralista e sectário pronto a desaguar numa lógica de exclusão. E é neste estado de vexatio animae que me parece, mais vezes do que as vezes que surge bela e consoladora, que a religião não é a cura, mas a própria doença.
Tudo isto que acabo de dizer não é já ao Gonçalo que o digo, mas a mim mesmo, despojado de doutrina e da crença nela, seduzido apenas por uma filosofia que Wittgenstein definiu de forma lapidar neste aforismo: “As fronteiras da minha linguagem são as fronteiras do meu mundo”.
5 comentários:
A propósito do Coppola ainda me atrevi a nada para fora de pé. A propósito de Deus já não repito a proeza. Porque o mar é imenso e revolto e eu nem sequer tenho a certeza de que ele exista. Mas registo e agradeço o interessante debate entre o Manel e o Gonçalo.
Parafraseando um velho dito popular, talvez não tenhamos chegado a discordar suficientemente para podermos concordar, se não plena, pelo menos minimamente.
Agradeço, de qualquer modo, Manuel S. Lourenço, perdão, Manuel S. Fonseca, a simpatia do seu último «post» e de toda a réplica. Quanto mais fora, se a outro resultado não chegaram a troca dos vários «posts», pelo menos, sempre ficam os belos momentos literários que pela pena do Manuel S. Fonseca deram origem e aí estão para quem queira deliciar-se a lê-los. Tão mais belos quanto inúteis, como poderia alguém acrescentar...
Entretanto, não resisto também a um último comentário, tanto mais quanto o mesmo se interrelaciona com um outro comentário da Sofia Galvão, ali para trás, a um «post» do João Luís Ferreira sobre Deus, ou a ideia de Deus.
Ou seja, do meu ponto de vista, quanto nos separa (permita-se-me uma derradeira discordância) não é a fé, o fundamento da moral (eu diria ética), ou as eventuais deiferentes ordens de razão pela qual proclamamos amar o próximo (conceito muito cristão, curiosamente). Separa-nos, sim, a realidade que atribuímos ao pensamento, se assim me posso exprimir com mais sugestão literária que rigor filosófico porquanto algo equívoco e falaz é sempre, ou pode ser, o próprio conceito de realidade. Em consequência, não deixa, de facto, de nos separar o discurso filosófico e tudo o mais. Mas o ponto crucial de separação reside, em verdade, na atrbuição de realidade ao pensamento.
Bem vejo os seus «batalhões de razões e armazéns de livros a partirem em cruzada contra o Gonçalo e contra a conspícua mancebia das duas disciplinas em que se alimenta». Contra o Gonçalo?Pobre do Gonçalo! De muito pouco valor seria a cruzada, mas no que respeita às duas disciplinas, à Filosofia, à Teologia e à sua «mancebia», hélas!, isso sim, isso cousa digna de se ver. No entanto, atenção, em cruzada para séculos de «conspícua mancebia» não se deixaria de partir também, séculos de «conspícua mancebia» que fizeram da Europa o Ocidente, séculos e «mancebia» que estão na origem do que de mais alto, nobre e sublime foi até hoje alcançado pela Civilização. «Mancebia» que não se fez, contudo, (e isto liga-se já ao comentário da Sofia Galvão), sem profunda e intensa tensão. Não se fez, não se faz, nem se fará mesmo senão em profunda e intensa tensão. Sim, há o Deus dos Filósofos e o Deus de Abraão, Isaac e Jacob; a Teologia da Filosofia e a Filosofia «serva» da Teologia, Atenas e Jerusalém. Tensão essa que é também uma das grandes, maiores e mais extraordinárias riquezas da Europa, do Ocidente, da Civilização. Como para nós, portugueses, platónico-aristotelizantes, é de uma simples evidência, mas também onde, talvez por isso, é sempre difícil falar de filosofia sem resvalar, cair mesmo, numa pura discussão sobre religião.
Enfim, outros mundos, quem sabe senão outros «posts».
E, por fim, em modo de despedida, Wittgenstein muito sábio seria mas, em qualquer caso, importa estarmos sempre avisados para não nos deixarmos encerrar, ou virmos a ficar encerrados, nas prisões que, por nós e para nós próprios, positiva e meticulosamente, vamos, por vezes, inadvertida e iludidamente construindo.
Caro Gonçalo, duas sugestões:
1. Trate-me só por Manuel (que em hebraico julgo querer dizer Deus connosco), para eu não ter de estar sempre a chamar-lhe com tanto formalismo e solenidade Magalhães Vilhena, ups, Magalhães Collaço.
2. Passe este seu comentário a post. Os frequentadores da Geração de 60 ficam a ganhar e é um bom fecho para a nossa conversa. Faço notar que o Gonçalo detectou um ponto crucial que subjaz aos meus posts: a "inutilidade" do que eu escrevi. Creia que não foi fácil chegar a este estádio. Que alguém objectivamente o reconheça é matéria de regozijo pessoal que me atrevo neste caso a não manter tão discreto quanto é habitual.
Se também não estou errado, estará muito certo o Manuel ao afirmar ter o seu nome, correspondendo ao antigo Emanuel, o significado, em hebraico, de «Deus connosco». Ele sempre haveria um mínimo ponto de acordo, sem dúvida _ embora, é evidente, não devamos também rejubilar prematuramente porque, no que respeita à sua tão amável quanto inaceitável proposta, a discordância não podia ser mais radical: afinal, como ousaria eu vez alguma não deixar tudo isto terminar senão sob o magnífico dedo de Deus? Poderia vez alguma eu ousar querer puerilmente suplantar tão simbólico e significativo fecho?...
Todavia, as verdadeiras razões deste meu brevíssimo comentário adicional, não obstante a importância das anteriores, são estas duas outras:
1- Quem diria «tanto mais belo quanto inútil...», seria, foi, evidentemente, o Teixeira de Pascoaes, lá do alto do seu Marão. Dizendo isto, julgo dizer tudo o que quis verdadeiramente significar ao escrevê-lo. Ora, como se afigura que interpretações diversas houve...
2- Enquanto escrevia o anterior comentário, lembrei-me de um livro, lido já lá vão mais anos do que gostaria, em certo sentido, que tivessem ido, sobre os temas em apreço: «Se Deus não existe... (Sobre Deus, o diabo, o pecado e ooutras preocupações da chamada filosofia da religião)», de Leszek Kolakowski. Um livro escrito por alguém que quer verdadeiramente ser lido e compreendido, sem afectação de balofa erudição académica (da moderna, evidentemente). Não conheço tradução portuguesa e, se assim for, quem sabe, a «Guerra e Paz»...
E mais não maço. Pelo menos, por agora.
Gonçalo,
Obrigado pela sugestão. Vamos fazer a pesquisa. Quanto à inutilidade, não é interpretação ofendida. É que eu acho mesmo inútil o que escrevi, mas não num sentido completamente negativo. É, em parte, um movimento pessoal zen... E repare que a "inutilidade", por comparação com o pragmatismo da "vida ordinária" é uma aspiração tanto da filosofia como da poesia ocidentais. Não era sua intenção, nem eu me senti diminuído, antes pelo contrário. Um abraço
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