segunda-feira, 30 de julho de 2007

Epretexto

A criação de um centro de resolução de litígios pelo Estado português foi louvada por uns e ridicularizada por outros. Ambos podem ter razão… mas é importante não esquecer que o virtual é hoje o principal instrumento de mudança do real.

Não me estou a referir a como os conflitos no mundo virtual podem ser sentidos como reais e necessitar de ser resolvidos como tal (aconselho a leitura de The Code and other Laws of Cyberspace de Lawrence Lessig para alguns exemplos). Estou a referir-me, neste caso, a algo diferente: a como a digitalização da nossa administração pública (incluindo a nossa administração da justiça) pode consistir no maior instrumento de reforma dessa mesma administração. Todos têm consciência de que a digitalização e desmaterialização da nossa administração pública simplifica procedimentos e facilita-nos o acesso à mesma. Mas poucos têm prestado atenção a como essa desmaterialização obriga os funcionários a adquirir novos conhecimentos e a adoptar outras práticas e competências constituindo, na prática, o instrumento mais poderoso de mudança da cultura da nossa administração. A principal vantagem dos juízes, como hoje descobrimos nos jornais, já só poderem consultar o Diário da República electronicamente não consiste na poupança dos custos da publicação em papel. O mais importante de uma medida deste tipo pode ser induzir todos os juízes a trabalhar electronicamente (usar bases de dados, escrever em computador etc.). Da mesma forma, uma das principais vantagens dos programas que permitem aos cidadãos uma relação de one-stop shop (como o empresa na hora) na relação com a administração via Internet é obrigar os diferentes serviços da administração a "integrarem-se" e comunicar entre si. Tudo isto mais do que facilitar o acesso dos cidadãos à nossa administração impõe uma mudança de cultura administrativa. O virtual pode ser um fantástico pretexto para mudar o real. A minha esperança na reforma da nossa administração é assim sobretudo uma esperança virtual!.

4 comentários:

F. Penim Redondo disse...

Eu sou muito crítico quando vejo entusiasmos descabidos na área tecnológica embora considere que a tecnologia desempenha um papel enorme no processo de transformação social. Tenho receio de que sejam criadas expectativas absurdas.

Um contacto profissional longo com os temas digitais e com tecnologias de robótica e de imagem não me permite sonhar, num horizonte à minha escala, com a criação de "novos mundos", com qualidade mínima, nesse domínio.

Já o Azimov dizia qualquer coisa do tipo "se ao menos conseguíssemos produzir um computador tão inteligente como uma formiga".
Azimov já lá vai é certo mas a questão, noutro degrau, permanece.

Para já acho que vale muito mais apostar nas "second life" que o teatro, o romance e as outras artes nos fornecem.

Um actor, mesmo quando "se limita" a recitar um texto, tem dentro dele uma incomensurável representação virtual do mundo real.

Miguel Poiares Maduro disse...

Caro Fernando,

Point taken… Se o Fernando (um especialista destas áreas) não tem grande optimismo o meu ressente-se! No entanto, o que eu pretendia frisar no meu post é precisamente que mais do que ter esperança na construção de "novos mundos tecnológicos" eu acredito é na capacidade "provocadora" que os desafios tecnológicos podem trazer à nossa cultura administrativa tradicional. Daí os ver mais como um pretexto para mudar as práticas do "mundo real" do que como um verdadeiro substituto desse mundo.
Um abraço
Miguel

F. Penim Redondo disse...

Caro Miguel,
não me importo nada de tentar também ter esperança, mal não deve fazer.

Mas volto à minha, em paralelo com a "second life" era muito giro encenar a burocracia em episódios teatrais.

Contratar os gatos fedorentos e fazer com eles, no prime time, um programa dedicado à reforma administrativa.
Em complemento criar grupos de teatro nas direcções-gerais e levá-los a representar para os colegas...

Há coisas que só vistas de fora como espectador, ou representadas enquanto actor, podem revelar toda a sua carga de absurdo.

Miguel Poiares Maduro disse...

100% de acordo. É uma proposta fantástica (mas, em Portugal, o medo do ridículo – e a inovação e originalidade são frequentemente confundidas entre nós com o ridículo - é tão grande que dificilmente haverá alguém com coragem para a implementar). Mas esperemos que seja o seu optimismo a prevalecer neste caso!