A Superioridade da Arte
Não obstante a pertinaz e omnipresente campanha dos cientistas, que dos seus castelos de marfim conquistaram o mundo com mais eficácia e sucesso que qualquer político de qualquer tempo, a história da humanidade que importa não é tanto a descoberta do átomo quanto foi a invenção da poesia.
O átomo se existe, e não parece haver dúvidas que possa existir na constituição da matéria, não existe para nos aumentar a consciência nem para nos revelar a transcendência da nossa espiritualidade. Conhecê-lo, não adianta nem atrasa a evolução da humanidade. Evolução, voltar para fora, não se confunde com progresso que, a existir, tem de ter determinada a sua finalidade e o seu ponto de partida. O progresso infinito que geralmente significa indefinido é uma impossibilidade lógica que tem alimentado as fantasias de utopistas, melancólicos e outros socialistas.
O átomo se existe, e não parece haver dúvidas que possa existir na constituição da matéria, não existe para nos aumentar a consciência nem para nos revelar a transcendência da nossa espiritualidade. Conhecê-lo, não adianta nem atrasa a evolução da humanidade. Evolução, voltar para fora, não se confunde com progresso que, a existir, tem de ter determinada a sua finalidade e o seu ponto de partida. O progresso infinito que geralmente significa indefinido é uma impossibilidade lógica que tem alimentado as fantasias de utopistas, melancólicos e outros socialistas.
A evolução é de certo modo revelação; mas, o que é que se revela? A distinção dos caminhos seguidos pelo pensamento científico e pelo pensamento artístico dá-se na resposta a esta interrogação. Para o pensamento científico, a revelação é a observação e a verificação motivada pela investigação da matéria (com um alargado e sempre impreciso sentido para a matéria, normalmente associado ao visível ou visionável). Para o pensamento artístico, a revelação é a descoberta da própria realidade segundo um pensamento encarnante (a arte é sempre encarnação como inserção da ideia no real).
Destes dois caminhos, o primeiro será uma via de afastamento da filosofia e o segundo de constante alimento e incessante adunação a esta. A arte procura a filosofia porque de certo modo são criadoras de realidade e operam pelo excesso criador do pensamento. Todavia, a arte afastando-se da sua essência, e até negando-se, sofreu um processo de conquista por parte do pensamento científico.
Ciência e arte são caminhos divergentes na procura da sabedoria: o pensamento científico, define o mundo sensível como universo limite do conhecimento e tem por finalidade aceder à verdade por via da penetração exaustiva na matéria que reconhece como constituinte do mundo sensível; o pensamento artístico, abre a sua interrogação ao mundo das ideias que se esconde e mostra no mundo sensível, ou seja estabelece as relações necessárias à inteligibilidade do mundo e à sua inserção num pensamento transcendente.
O pensamento artístico está, ao contrário da ciência, próximo da vida. O universo da existência humana movida pelo elo que é o amor, propõe uma via de conhecimento e de acesso à sabedoria que ultrapassa, incomensuravelmente, as possibilidades limitadas de que se investe a ciência.
A ciência é, essencialmente, o seu método, ou seja a investigação das possibilidades de que se atribui para se validar. A arte, é uma via de sabedoria aberta e livre que reconhece e até se baseia na subjectividade do pensamento para criar a realidade em que vive e a própria realidade do mundo.
O risco da arte se deixar seduzir pela ciência é o risco da arte deixar de ser arte, pois, a ciência e a arte correspondem a caminhos de vida divergentes: o primeiro, identifica os fenómenos e não se liberta da aparência ou da pura exterioridade a que os fenómenos estão sujeitos enquanto expressão acabada da realidade; a segunda, convive com as realidades psicológicas e espirituais, suas representações e respectiva fonte de animação, aproximando cada um do seu universo subjectivo mas incessantemente confrontado e acompanhado pelo outro, pelo semelhante que dá a medida da diferença, da originalidade e da razão de ser da individuação.
II
Entre ciência e arte é justo distinguir entre conhecimento e saber, como o tem feito, entre nós, a filosofia portuguesa, pois, o conhecer é o que pressupõe uma relação acabada e exterior entre sujeito e objecto e o saber é uma relação incindível entre o que conhece e isso que conhece, podendo mesmo considerar-se que o que conhece na medida em que participa ou é participação desse conhecimento. O cientista permanece o mesmo perante a obra do seu conhecimento; o artista identifica-se com a sua obra.
Aquilo a que chamamos ciência é a aquela forma de conhecimento baseada na experiência, ou seja, aquela sequência trópica que vai da observação, à hipótese e da experimentação à conclusão. Aquilo a que chamamos arte é a criação de obras através das quais se exprime um pensamento compreensivo da realidade mediante um processo que tropicamente poderíamos sequenciar do seguinte modo: visão, concepção e contemplação.
Talvez fosse mais claro distinguir a ciência e a arte como dois modos do pensamento, sempre coexistentes na história, afirmando-se como vias para o conhecimento ou para a sabedoria. Diríamos, talvez, que na história ocorrem fases de predomínio desta ou daquele modo do pensamento.
No tempo presente, em que vivemos as sequelas do domínio da ciência e da técnica configuradas no domínio da tecnologia, há uma reflexão que nos parece voltar a estar no centro da filosofia. A questão será, então, esta: é lícito tentar compreender a verdade, ou a realidade, a partir de um método analítico que passa por dividir a matéria para a reconstruir posteriormente, ou seja, será lícito o conhecimento com base na divisibilidade dos corpos que constituem a natureza? Parece-nos que essa forma de conhecimento será sempre redutora, pois, o que se estuda no pressuposto de que a matéria cognoscível é divisível, é a possibilidade de colocar nas partículas temporariamente indivisíveis a unidade significativa da matéria e não nos corpos tal qual eles são criados ou dados à vida intelectiva. Esta via, abre com toda a evidência atestada pelos tempos que vivemos, um conflito entre os caminhos da inteligência do homem que se dirigem para a atribuição de significado ao mundo criado, e na forma em que foi criado para a nossa compreensão, e essa realidade que se afirma validada por microscópios e outros equipamentos que ao centrarem nessas formas invisíveis e sem inteligibilidade a verdade que procuram a separam irreparavelmente do homem. Característico do caminho da ciência, o corte, a pulverização ou a diluição, são adversos da compreensão da realidade a partir de uma criação que abrace num todo harmonioso as partes, os singulares e os perfeitos. Este é, porém, o caminho da arte. Este é um caminho explicativo; aquele será sempre descritivo e obstrutor da compreensão intelectiva.
III
Se o nosso tempo nos coloca dificuldades, uma está acima de todas: a abolição da filosofia, que é a abolição do pensamento filosófico, conduz o mundo contemporâneo para a atribuição de realidade ao que não tem possibilidade de compreensão inteligível e, com isso, torna inviável o pensamento artístico porque não aceita a criação como uma realidade, nem o pensamento como construtor de uma interpretação da realidade. Esta recusa que resulta numa inviabilização do pensamento filosófico e artístico é feita em nome da redução da realidade a um valor arqueológico que só a ciência pode manipular de acordo com uma moral que não se limita nos seus processos de investigação e que apenas pretende determinar a descrição de um hipotético facto sensível. Nessa descrição cabe tudo o que surge conforme surge no plano natural e não cabe nada do que surge pelas elaborações do pensamento por mínimo que seja. O mundo é descrito pela sua força instintiva e determinista e negado pelas possibilidades que se abrem pela razão.
IV
Conhecer o homem fora de uma moral é negar o homem. O homem é um ser de razão e toda a sua finalidade existencial é determinada fora da natureza. Não se nega o evidente, mas afirma-se o que se esconde: ou seja, não obstante se encontrarem semelhanças entre o homem e o mundo e até a potencial harmonia sempre instável do homem com o mundo, o homem não é um ser resolvido, determinado ou cingido ao mundo de que parece um filho especial.
O homem surge mergulhado numa realidade de que se liberta como se fosse de uma outra natureza. Esta consciência de si numa simultaneidade instante que pela aparência integra o homem no mundo e pela inteligência o torna um construtor de outro mundo sobre este e com este, é o paradigma da situação do homem. Por isso, a arte será sempre entusiasmante, pois, opera sobre a realidade actual e torna-a numa realidade moral, ética e lógica.
Para a ciência, a moral é apenas um peso que se vai transportando e que, pelo caminho se vai aliviando, ou seja, a ciência pelas suas finalidades, pelo seu método e pela sua natural auto-legitimação não tem intrinsecamente moral: trata de corpos mortos, de seres mortos e de realidades mortas.
A sombra fria do laboratório onde o cientista se isola contrasta com a luz auroral do atelier onde o artista recebe o mundo.
V
Pode dizer-se que os artistas são raros no nosso tempo? Sim, isso pode-se, e até acrescentar, que muitos são mais cientistas que artistas. É que o pensamento dominante é ainda o que teve origem na ciência moderna e esse pensamento invade todos as formas e quadros mentais do homem. Ora a arte sofreu essa ocupação por via dos artistas imbuídos dessa crença na ciência. Em vez de combaterem pela originalidade, singularidade e superioridade da sua intuição e do seu saber muitos entregaram-se à vida fácil que o cientismo propõe e de que se constitui. Hoje, um consenso como “as verdades científicas” mas, por isso mesmo, um conformismo. O mundo dito ou traduzido por um qualquer especialista de um qualquer ramo da ciência é das mais elucidantes experiências para se compreender de que forma a ciência é pelo seu próprio método de uma insuportável limitação intelectual.
4 comentários:
Antes de mais nada, gostava de lhe propor um desafio: envie este texto a Jorge Calado. Porque o que aqui sugere, esta divisão estruturante entre pensamento científico e pensamento artístico, não é algo fácil de argumentar, e Jorge Calado consegue, com muito brilhantismo, argumentar exactamente o contrário. Gostava de assistir a essa troca de ideias.
Quanto ao texto, parece que o João Luís Ferreira faz uma comparação injusta: compara o «pensamento» artístico com a «ciência». O modo como encara o pensamento científico é algo redutor e espelha mais uma vontade de quem escreve, claramente identificado com a arte, do que uma evidência lógica. Interpreto-o como um elogio à arte e ao pensamento não-científico. E parece-me que o ponto mais frágil reside na afirmação de que a filosofia deve mais à arte do que à ciência, ou melhor, que o diálogo entre a filosofia e a arte é mais frutuoso do que o diálogo entre a filosofia e a ciência. O que parece um paradoxo num texto intitulado "A Superioridade da Arte", todo ele centrado num conceito "científico" (a partícula indivisível).
E voltamos a C.P.Snow: «(...) Literary intellectuals at one pole-at the other scientists, and as the most representative, the physical scientists. Between the two a gulf of mutual incomprehension-sometimes (particularly among the young) hostility and dislike, but most of all lack of understanding. They have a curious distorted image of each other. Their attitudes are so different that, even on the level of emotion, they can't find much common ground. (...)»
Onde disse:
O que parece um paradoxo num texto intitulado "A Superioridade da Arte", todo ele centrado num conceito "científico" (a partícula indivisível).
Deveria ter dito:
O que parece um paradoxo num texto intitulado "A Superioridade da Arte", que se centra num conceito "científico": a indivisibilidade.
Penso o mesmo e fazia falta contrabalançar a terraplangem do "holismo científico" em curso
E nem é só a superioridade da Arte; é também a da Religião ou da Filosofia. A Ciência é que não tem vocação para falar de si própria nem do mundo. Tem o nariz enfiado nos pormenores e na micro linguagem; nem entre elas se percebem.
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