terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Lévi-Strauss e a matemática

 

 


Levi Strauss é um dos autores importantes de ocultação e evitação que permitiram a ignorância contemporânea. Um bom exemplo é o da sua relação com a matemática. Os antropólogos não  falam da questão porque não sabem matemática. Os matemáticos não  falam do problema porque não  sabem antropologia. E a imagem do antropólogo passa impune, na intersecção de duas ignorâncias.

Em síntese esta relação desenvolve-se em quatro passos:

1) 1)  Parasitar;

2) 2)  Ocultar;

333)  Deformar;

4)  4)  Abandonar.

Na primeira fase tenta parasitar o prestígio da matemática. Procura Hadamard, e este recusa ajudá-lo. Dirige-se a André Weil e este estuda as estruturas do parentesco numa perspectiva de álgebra abstracta. O livro de Lévi-Strauss é publicado com o anexo de Weil. Lévi-Strauss ostensivamente queria dar à etnologia o prestígio da matemática. Conseguiu-o. Ele, que era ignorante de matemática, recebia a caução de um dos grandes matemáticos da época.

Na segunda fase oculta. Na segunda edição do seu livro sobre o parentesco apaga, não só o anexo de Weil, mas também toda a sua referência ao matemático. Quando tem poder suficiente, usa um matemático como seu auxiliar mas na sua correspondência refere «um matemático» nem o nominar. Trata a matemática como simples matéria ancilar e o matemático como amanuense.

Na terceira fase deforma. Diz que o sistema de axiomas não pode ser rígido, que os axiomas devem ser semoventes. O que até poderia ser possível num sistema formal, mas sob a condição estricta de que esta mobilidade dos axiomas deveria obedecer a uma regra invariante do sistema. Mas, como Lévi-Strauss nada sabe de sistemas formais, não percebe isto. Por esta razão está mais próximo do surrealismo que da lógica formal. Isto mesmo que tenha mostrado desrespeito em relação a Breton, no que se mostra parte integrante da nossa época, feita de lealdades oficiais que escondem desprezos.

Na última fase já não precisa de qualquer referência à matemática, já tem poder suficiente. E para a abandonar precisa de um pretexto: não se pode aplicar uma matemática que é europeia a culturas que não o são. O que é inteligente como argumento. Ele, que adorava visitar o Japão, viajava de avião. Devia ter usado o mesmo critério. O avião, quando saísse da fronteira europeia, deveria obedecer a outras leis da física e matemática que não as europeias. O avião teria caído e ao menos nisto Lévi-Strauss nos teria dado um ensinamento sério com a sua morte. Dizer disparates teria consequências.

Que nos interessa esta história na nossa época? Isto são águas passadas, podem-me dizer.

Não. Mostra que a fraude está instalada nas universidades há muito tempo e que quem se surpreende com a fraude actual apenas mostra que andou adormecido. Também ele é correligionário de Lévi-Strauss. Enquanto não sofreu as consequências pode dormir o seu sono de beleza.

Sokal e Bricmont mostraram muitos casos de fraude intelectual de criaturas que citaram a física e a matemática em pura ignorância e apenas para impressionar o parolo.

O caso de Lévi Strauss mostra algo mais profundo. A fraude intelectual foi montada e planeada durante décadas. Nada tenho contra a formalização das ciências humanas. Mas nesse caso o que deveríamos esperar? Que só pudessem entrar em antropologia e sociologia pessoas com sólida formação matemática. Mas não. São pessoas que deixaram a matemática aos catorze anos sem saber o que é um integral, um seno, um quantificador, uma relação de implicação, em boa verdade muitas vezes nem sequer o que é uma regra de três simples ou uma equação quadrática... São estas pessoas que durante décadas fazem exames, trabalhos e teses sobre o problema da formalização das relações de parentesco ou dos mitemas.

Para agravar o facto de não saberem grego nem latim, e por isso o Perseu ou a Arícia dos etnólogos ingleses lhes escaparem.

O século XVIII usou amplamente o conceito de impostura, sobretudo a propósito de Maomé. É natural, muita da impostura que actualmente vivemos começa no próprio século XVIII. Que uma época seja obcecada com um pecado nos outros mostra quanto é  tentação em si.

Mas desde a II Guerra Mundial que o mundo se instalou numa rede de imposturas. E o cidadão comum viveu na ilusão de que era tudo lúdico. Ou seja, de que nada tinha consequências. Mas o tempo destas não é o tempo da lucidez do comum. Lévi-Strauss é apenas um entre muitos dos agentes de uma fraude que vem de longe. E quem desde há décadas avisa do horror passava por exagerado. Agora que todos podem perceber os seus efeitos, mesmo que não vejam as suas causas, apenas posso lembrar que as pestes que não se evitaram só se vão embora depois de fazerem vítimas. E só espero que em justiça sejam estas os que as deixaram entrar nas cidades. Mas também a justiça adoece com as pestes e apenas nos resta aceitar isso.

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

 

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segunda-feira, 20 de outubro de 2025

La douce décadence da la France

La télévision publique française promeut la diversité. Elle promet avoir dans le futur des gens intelligents.

 

Rousseau disait que les femmes étaient trop stupides pour étudier la science. Non, ce n'est pas Sandrine, ce ne sont pas des Confessions.

 

Elle considère que la société de consommation ne fonctionne pas. Elle a raison. Elle dépense un argent fou en produits de beauté.

 

Elle dit qu’elle vit avec un homme déconstruit. La pauvre, qu’elle rencontre des difficultés avec la langue français. Il vit avec elle. Il n’est pas déconstruit. Il est défait.

 

Moscovici dit qu'il ne voit pas de rapport entre le christianisme  et l’Europe. Il a la vision et la beauté de Tirésias.

 

Fabius parle de l’identité heureuse, celle où il n’y a pas de la culture chrétienne. Elle n’est pas heureuse : elle est ridicule.

 

Pourquoi Jean Michel Aphatie veut détruire Versailles ? Pour la même raison qu'il aime se contempler au miroir. C'est sa vocation celle de contempler des ruines.

 

Le moderne a commencé sans culottes: il finit en contemplant ses siennes.

 

Sartre était un humaniste qui a applaudi la mort de millions de personnes.

 

Durkheim a dit : Dieu ou la sociologie. Il était rusé. Il voulait une alternative qui pousse  des candidats pour une et autre chose. Il ne s’y est pas mis, donc.

 

Lévi-Strauss voulait un monde retourné au Néolithique pour qu'il puisse avoir l'autorité de dicter les règles d'étiquette.

 

Un homme intelligent peut se tromper. Un intellectuel doit le faire toujours pour inspirer des thèses de doctorat.

 

Mélenchon n'est pas possédé par le démon. Le diable a refusé.

 

Bourdieu disait qu’il n’y avait pas de différence de valeur entre Stravinsky et Petula Clarck. Je ne suis pas d’accord. Il y a des hiérarchies. «Point de Vue» a beaucoup plus de classe que ses livres.

 

Lacan aimait citer la topologie, dont il ne savait rien. Il a voulu connaître  le pape pour lui dire qu'il avait résolu le problème de la Très Sainte Trinité. Soit. Il a  toujours aimé parler de choses qu’il ne comprenait pas.

 

Le président  de la République  Française dit qu'il ne sait pas ce que c’est que la culture française. C’est claire la conséquence. Il y a le président de la république … et après c’est le vide.

 

Caron porte à l'enfer en espérant n'y pas entrer

 

Panot a raison. Quand je la vois moi aussi je suis en faveur de la burqa.

 

Panot sera canonisée. Elle sera la sainte patronne contre le priapisme.

 

Les fascistes inavoués voient partout de simples faits divers. Ils ne sont capables d’induction sans seringue.

 

Je ne sais pas s'il y en a un ordre en tout ça, mais c’est décroissant... et monotone.

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

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segunda-feira, 15 de setembro de 2025

As culturas são todas iguais?

 Lévi-Strauss dizia que não há culturas superiores ou inferiores, as culturas são todas iguais, apenas são diferentes.

 

Poucos homens conseguiram dizer tanto dislate em tão poucas palavras.

 1. Dizer que as culturas são iguais é um juízo de valor. Tão juízo de valor quanto dizer que as há superiores e inferiores. É substituir um juízo de valor por outro juízo de valor. Nenhum passo científico foi dado com isto.

2. É desonesto intelectualmente porque dá a entender que finalmente se superaram os juízos de valor e passámos a uma análise científica.

3. Sob o ponto de vista lógico é uma proposição universal empírica. Para ser demonstrada teria de haver análise de todas as culturas. Ora Lévi-Strauss não as conhece todas. Nem a europeia conhece bem, porque nunca soube matemática, física, teologia, e de psicologia e filosofia era estreito o seu conhecimento. Está portanto a doutrinar sobre o que não sabe.

4. Sendo uma proposição universal positiva, sob o ponto de vista lógico basta dar um contra-exemplo para demonstrar a sua falsidade. E é fácil de demonstrar que a cultura grega clássica era superior à assíria ou a francesa é superior à turca. Quem achar o contrário tente usar um computador ou andar de avião com base na ciência turca.

5. É apenas um mandado moral. Uma mera imposição e não uma afirmação sobre facto. Mas porque quer fazer imposições morais em vez de falar da realidade? Porque se acoita em algo tão pequeno burguês como o mandado moral?

6. É uma tese de facilidade intelectual. Já na altura em que o defendeu, mas cada vez mais hoje em dia, quem defende a igualdade entre as culturas não tem de demonstrar mais nada. Posta-se rodeado por sorrisos de anuência. Entra triunfante num campeonato que já o decidiu como vencedor antes de começar a correr. Duro, exigindo conhecimento profundo de duas culturas pelo menos, é a afirmação fundamentada da superioridade de uma sobre outra ou outras.

7.  7. Dentro da cultura europeia, Lévi-Strauss não achava que todas as manifestações culturais eram iguais. Por isso não citava um artigo sobre modas e bordados como citaria um artigo científico. 

    8. Significativamente não há memória de que tenha dito que há, não só pessoas, mas inteiras partes na cultura Bororó que são medíocres como as revistas de modas e bordados. Se a elas não aplica os mesmos critérios que usa com a europeia quer apenas dizer que as aprecia de outra forma. Como um objecto. Tudo nelas é interessante, como para um naturalista é interessante a defecação de um elefante ou o metabolismo de uma amiba. E, caso nos queira convencer do elevado nível cultural da amiba, desmonta de um só golpe que acha que há coisas de elevado nível, e portanto tem de haver de baixo - um nível só é elevado por comparação - e o seu ridículo. As amibas serem de elevado nível cultural...

 

Afirmar a igualdade de todas as culturas revela assim até que ponto se percebe que há na sua mente apenas duas culturas: a europeia, que pode ser elementos e pessoas desprezíveis, e as outras que são sempre interessantes em todas as suas dimensões, mas como objectos. Nenhuma ideia separa mais a cultura europeia das outras que esta da igualdade. É quem afirma a igualdade das culturas que mais as separa.

 

Mas porque Lévi-Strauss quer impor este mandado? Talvez isso tenha a ver com o refeitório de casa do seu avô onde uma placa dizia: «mastiga bem para digerires bem». Está tudo dito. Uma casa destas não é fidalga, é o mínimo que se pode dizer. Ter feito um livro sobre os modos à mesa para demonstrar que somos todos selvagens... Ele poderá falar da família dele com mais autoridade que eu.

 

Ainda nos empesta este mandado moral da pequena burguesia. Nietzsche viu bem que era o ressentimento do plebeu. Se Lévi-Strauss se deliciava com Wagner sem perceber que os Bororós nunca poderiam fazer Wagner, é o problema dele. Quem tinha alguma razão era Bordieu que dizia que não há diferença de valor entre Stravinsky e Petula Clarke. Dou-lhe razão. Acho que os livros de Bordieu têm o mesmo valor que uma revista de bordados.

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

 

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segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Proust era católico

Proust era judeu ou cristão?

 

1.     Foi baptizado em 5 de Agosto de 1871 na Igreja Saint-Louis d’Antin, paróquia dos Proust (DIESBACH, Ghislain de, Proust, Perrin, Paris, 2022, p. 26).

2.     O seu avô judeu, Nathan, embora respeitasse os rituais judeus, seguia as predicações de Quaresma em Notre-Dame de Paris (p. 28).

3.     A educação da sua Mãe é liberal sob o ponto de vista político e conservadora sob o ponto de vista moral, como era típico nas famílias judias da época (p. 35).

4.     Aceitou os usos da sua época, e fará baptizar os seus filhos, frequentará sem dúvida a igreja na suas estadas em Illiers, mas será enterrada civilmente (p. 36).

5.     A sua Mãe fá-lo seguir um curso de catecismo, a que assiste com o seu filho (p. 50).

6.     Num seu texto de juventude «L’Irreligion d’État» revolta-se contra o absurdo de querer uma sociedade sem Deus, quando esta descristianização é apresentada como uma nova fé, e lembra que a França deve ao cristianismo as suas maiores obras-primas (p. 180).

7.     Proust assistiu às conferências do padre Vignot (p. 192).

8.     Proust «aura sur les chrétiens l’œil ironique et sagace du Juif, et sur les Juifs le regard d’un chrétien sans tendresse et même sans charité» (p. 246).

9.     Mas a sua perspectiva irónica em relação aos cristãos é também comum entre os cristãos e os laicos da sua época, e o seu olhar sobre os judeus é o de muitos cristãos e laicos da sua época. Se ter sangue judeu da parte da sua Mãe pode ter dado um contributo para o seu olhar nada diz que era essencial para ele.

10.  O próprio diz «si je suis catholique comme mon père et mon frère, par contre ma mère est juive» (p. 282).

11.  A sua tia Amiot, sempre adoentada, fazia um papel dos primórdios do cristianismo e acabava por desarmar com uma doçura angélica (p. 387), ou seja, um cristianismo burguês, de paródia.

12.  Não concorda que o velho pároco de Illiers, que lhe ensinou os rudimentos de latim, não seja convidado para uma distribuição de prémios pelo poder laico (p. 422).

13.  «Que les anticléricaux fassent un peu plus de nuances et visitent au moins avant d'y mettre la pioche, les grandes constructions sociales qu'ils veulent démolir » (p. 423).

14.  Proust aproveita para dizer a Barrès que não é verdadeiramente judeu (p. 445).

15.  Mostra a sua hostilidade ao general André na altura do caso das fichas, como às leis anticlericais de Combes (pp. 467, 496-497).

16.  Paul Morand ouve-o contar anedotas anti-semitas (p. 830). Chamava a «Vida de Jesus» de Renan a «Belle Hélène do cristianismo» (p. 927) dando a entender que era uma obra de opereta e ficção.

17.  Sentindo-se morrer, pede à sua criada que chame o padre Mugnier (pp. 973, 975). O seu funeral foi feito na capela Saint-Pierre-de-Chaillot (p. 976).

 

Sintetizando: (1) A Mãe de Proust era judia? Sim. Mas não piedosa, nem catequizante, assimilada não apenas sob o ponto de vista da cultura laica, literária ou científica, mas também até por via da família, próxima da prática católica (por exemplo, o tio que assiste a prédicas pascais católicas). (2) A família paterna de Proust era católica? Sim, sem qualquer dúvida. (3) Proust era católico? Sim, sem dúvida nenhuma, como o seu irmão. Baptizado, catequizado e dizendo de si mesmo ser católico. Sim, como a imensa maioria dos franceses da época, que não carecem de ter êxtases místicas de Santa Catarina de Siena para se verem como católicos. Um catolicismo burguês, feito dos extremos da auto-lamentação e do estoicismo. Um catolicismo de práticas culturais, nos casamentos, baptizados, épocas festivas.

 

Mas agora enfrentemos a questão mais dura: (4) Proust era um fervoroso crente? E esta questão divide-se em duas: (4A) é sempre importante verificar uma fervorosa fé para se merecer esta qualificação? E (4B) qual seria o tipo de fé de Proust?

 

Quanto à questão (4A) quem ache que é fundamental que haja uma fervorosa crença para qualificar alguém como de uma religião terá de entender então que a maioria dos génios judeus não eram judeus. Nem Espinosa, nem Einstein eram fervorosos seguidores do judaísmo. Quem usar este critério está a afastar quase todos as pessoas relevantes na História com origem judaica da qualificação de judeus e quem usar esse critério esqueça a referência ao facto de Einstein ser judeu.

 

Quanto à (4B) é questão mais difícil. Em geral é muito difícil entrar na intimidade de alguém. Mas isto tanto mais quanto o século XIX, que é um século glorioso para o cristianismo, um século de expansão na Ásia e na África, é visto porque quem tem uma perspectiva provinciana como o século da dita «morte de Deus». No entanto, a cultura teológica dos homens cultos não era a mais aprofundada em geral. Poderiam conhecer muito bem a História das ordens religiosas, os clérigos mais conhecidos, as representações artísticas e literárias dos santos eram bem melhor conhecidas que pelos os homens actuais. Mas poucos saberiam pronunciar-se sobre a «homoousia» ou o problema da «theosis». Os místicos que eram estudados eram lidos numa perspectiva estética. Neste sentido, se Proust não era católico, a grande maioria da sociedade da sua época não o era. Isto a começar pelos reis de Portugal e Espanha até muitos bispos. Procurar a peculiaridade de Proust no seu impulso anticristão, ou judeu é assim algo ocioso. A sua recusa da perseguição laicista é também sintomática. Não significa forçosamente uma fé, mas antes o reconhecimento de um mérito (dos católicos e do catolicismo) e a repulsa pelo fanatismo laicista.

 

O facto de pedir a presença de um padre na hora da morte pode-se também argumentar não significa uma profunda fé católica, mas apenas um sintoma de conformismo social. E Proust tinha, como todos os seres humanos, aspectos de conformismo. Mas começam a ser elementos a mais para se descurar a profunda relação que tinha com o catolicismo. De sangue, de cultura, de admiração pela dívida que a cultura francesa a ele tinha, no momento final da sua vida. Se se esperar como prova da sua fé que Proust levite como São Francisco de Paula, temos de reconhecer que na História terá havido poucos, muito poucos, católicos. Como poucos judeus viram a sarça ardente ou maometanos receberam o anjo Gabriel.

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

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quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Como reconhecer um filisteu

 

1.  1. Se um académico invoca a ciência junto do público é preciso ver o que anda a escrever nas universidades. Se diz que não existe «a verdade», «o referente» que a ciência mais não é que um ritual como qualquer outro, sem superioridade em relação a um ritual de selvagens, temos de o tratar como um selvagem e ignorar a autoridade que invoca e nega ao mesmo tempo consoante os destinatários.

2.    2.  Não dar a informação sobre os autores de crimes porque isso pode aumentar o racismo é sinal de que se acha que o povo é diminuído intelectualmente. São discípulos de Salazar: «se soubesses o que custa mandar querias obedecer toda a vida». Quem faz censura, quem quer censura defende a existência de uma polícia política.

3.  3. Os tiranos gregos sabiam como enfraquecer o poder dos povos que governavam. Importavam populações que diminuem o laço social entre os seus súbditos e assim enfraqueciam o poder de contestação dos povos. Mas exigir conhecimento de cultura grega a catedráticos é inglória esperança. Leram obras dos últimos cinquenta anos, porque o fiat lux nas suas pobres cabeças é de data tão recente quanto a sua nobreza. Quando peroram os que não sabem, só cativam quem não sabe o que eles ignoram.

4.   4. Quem acha que o povo não pode decidir algo ou não deve saber se algo está a dar-se um estatuto aristocrático. Havia um antigo critério entre a alta nobreza: se quiseres reconhecer a origem de alguém olha-lhe para o seu perfil e para as mãos. Quando se vir um perfil burgesso e mãos de talhante estamos apenas a ver um ressentido que gostava de ter nascido brâmane quando é de reles origem.

5.    5. Todas as sociedades multiculturais foram de violência cíclica. Assim em relação a cristãos e judeus na Pérsia sassânida, nos impérios árabe e otomano, e em relação aos judeus na Alexandria dos Ptolemeus e nos reinos cristãos. Querer multiculturalismo é aceitar violência cíclica.

6.    6. Todas as ciências sociais assentam num axioma: a recusa do sofisma da composição. O todo não é igual à soma das partes, há fenómenos colectivos. Quem acha válido o argumento «a maioria dos muçulmanos é boa gente» tem de ao mesmo tempo exigir o encerramento dos cursos de ciências sociais.

7.    7. Os que criticam o etnocentrismo são os mais etnocêntricos porque esquecem que ser outra cultura é ser efectivamente diferente. Dizer que todos querem ser livres é esquecer que em árabe e turco a palavra liberdade surge por influência cristã no século XIX, quando já no século XIII e XIV todos pensadores europeus nela falavam: Duns Scoto, São Tomás Marsílio de Pádua, etc.

8.    8. Se alguém disser que todas as culturas são iguais está a produzir uma afirmação universal empírica. Para o poder afirmar precisa de conhecer todas as culturas. Senão o que diz é arbitrário. Usemos os métodos dos matemáticos. Demos um contra-exemplo. A cultura alemã é infinitamente superior à turca. Quem ache o contrário use um telemóvel baseado na física e na matemática turca enquanto ouve as sinfonias turcas e os escritores e filósofos turcos. Está dado o contra-exemplo. Perante isto percebe-se que não é uma afirmação mas uma imposição, um mero exercício de poder.

9.     9. Da mesma forma, quem condena publicamente a pós-verdade - ou conceitos bárbaros quejandos que em bom vernáculo querem apenas dizer mentiras - tem de ser confrontado com obras que escreva para as faculdades dizendo que a verdade é conceito vazio, arbitrário, mera imposição de poder. Se diz que não existe a verdade não tem autoridade para condenar quem a nega.

1010. A quem se diz aberto a outras culturas tem de se perguntar porque não sabe nada da sua. Um europeu que não saiba latim, grego, matemática e teologia não percebe nada da Europa. Se quiser ir além do que não sabe apenas quer estender a sua ignorância

1111. Os primeiros que abandonaram o primado da História ou a desprezam e ignoram sem mais são também os primeiros a usar conceitos de síntese histórica como judaico-cristão patriarcado opressão das mulheres num eterno presente sem comparação informada no tempo e no espaço. Mais uma duplicidade: oráculos da História (de uma História congelada, ficcionada e estéril é certo) fora das universidades, descuram-na dentro delas.

1212. Esquerda e direita falam de valores mas nas universidades ensinam Foucault e Derrida que dizem que realidade são relações de poder. No fundo o que os fascina é o poder, mesmo se a sua língua apenas sabe falar de valores. Em todas as épocas os burros se babam com os tartufos.

1313. Poder exactamente. Os hindus acham as vacas sagradas e não fazem manifestações contra os MacDonalds. Os jinaístas são vegetarianos e não querem fechar matadouros. Os budistas acham graça a imagens de Buda gordos a sorrir. Há uma religião que se quer impor no espaço público não só exigindo a sua presença como impondo a ausência das outras. Imagine-se qual. A que pretende conquistar o poder e por isso gera o medo dos políticos de esquerda e direita. 

1414. São os que se dizem pós-modernos e negam essências que dizem que o islão é necessariamente tolerante e a Europa é necessariamente colonialista. Tanta contradição seria poética se não viesse de esfacelos.

 

Perguntam em que aspectos a nossa época será objecto de  risota pelos futuros? Acabei de dar alguns exemplos. Quando ouvimos mestres do positivismo e radicais socialistas do século XIX demonstrar a superioridade da raça branca achamos ridículo? Pois achemos desde já ridículas estas criaturas que nasceram para serem apenas fósseis. Daqui a cem anos este texto será mais visto como lúcido que as teses de doutoramento que apenas cacarejam que todos esperam ouvir. Deus tenha as sua almas em descanso, porque as suas inteligências os precederam na tumba.

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

 

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segunda-feira, 28 de julho de 2025

O governo dos juízes

Como de costume, não estou em nenhum dos lados da questão. É tão boçal defender os tribunais a todo o transe como sem dó atacá-los.

 

A história é bem conhecida. Em Itália havia políticos criminosos, eram efectivamente corruptos. Mas os magistrados que os perseguiam eram tão verdadeiramente motivados politicamente. Não há santos de um lado ou do outro.

 

Não enuncio juízos morais. Apenas tento compreender. E o problema do governo dos juízes tem quatro aspectos que nunca são tratados em conjunto:

a)     O Estado de direito é contraditório com a democracia;

b)    Os juízes não são responsáveis pelos efeitos políticos, sociais e económicos e culturais das suas decisões;

c)     Por educação e por ofício têm uma visão do mundo limitada;

d)    O poder absoluto corrompe absolutamente.

 

O Estado de Direito é criação aristocrática. Nada tem de democrático. A Rule of Law é defendida desde a Idade Média, e é algo duvidoso que a Inglaterra dos séculos XV ou XVI fosse uma democracia. A República Romana assenta no direito. O Estado do direito é criação de repúblicas aristocráticas. O que visa, são os ditos checks and balances. Mas não é criação americana. O Estado de direito tenta resolver um problema: uma família aristocrática não pode impor-se às outras seja os Fabii, os Cornelli, os Iulii, seja em Veneza os Dandolo, os Faliero, seja em Génova…

 

Por isso, sempre que alguém pretende defender o Estado de direito, está a colocar-se ao lado de algo que nada tem de democrático. Se fossem a mesma coisa, ou implicação uma da outra, não seria necessário falar de «Estado de direito democrático» como faz a nossa pobre Constituição.

 

Os juízes são irresponsáveis. A intenção foi boa ao criar este estatuto. E continua a fazer algum sentido. Mas os juízes criam problemas sistemáticos para os quais não têm capacidade, nem técnica, nem política, nem jurídica para dar solução. A questão não é dos juízes, a questão é constitucional. Foi um sistema instituído que deu poderes a juízes que criam problemas sistemáticos, sem criar nenhuma válvula de segurança para os resolver.

 

Algumas constituições têm válvulas fracas como uma segunda votação por maioria reforçada no parlamento contra um entendimento de inconstitucionalidade dos juízes. Mas não basta. Se um juiz torna impossível expulsar estrangeiros, se torna impossível dar segurança às populações, o juiz lava daí as suas mãos, e os parlamentos não têm forma de compensar os problemas criados.

 

Não é papel dos juízes conduzir os destinos das sociedades. Não será acaso que o leitor se lembre do nome de Churchill mas não dos membros da Câmara dos Lordes da época, ou De Gaulle lhe diga algo mas o presidente do Conselho Constitucional francês lhe seja estranho. Tudo está no seu devido lugar. Uns são grandes homens, outros têm um papel ancilar na História. Desde sempre isso foi admitido. Falta daí retirar as consequências. Quem não pode dar grandes curas também não pode ter o poder de instalar grandes doenças.

 

Os juízes têm uma cultura limitada. Em geral não sabem História, nem latim, nem grego, nem matemática, nem física, nem teologia, nem filosofia… A lista do que ignoram é vasta. Na sua maioria são técnicos, apenas com conhecimentos técnicos. São incapazes de pensar nos efeitos de longo prazo do que fazem, pela mesma razão que ignoram o que é um ablativo absoluto, um semigrupo, ou a transubstanciação.

 

Não se trata de insultar alguém por não ter uma cultura universal. Mas a partir do momento em que tomam decisões que têm efeitos no muito longo prazo, em que as suas decisões afastam dezenas de milhares de anos da História genética da Europa, para quem nunca estudou genética das populações, nem nada sabe pensar em dezenas de milhares de anos, dar-lhe tal poder chama-se de estado de inocência. De Gaulle, que era maior que qualquer juiz de que há memória, quando queria saber as implicações do que fazia interrogava-se como se interroga toda a História da França. A maioria dos juízes riem-se desta imagem, mas deviam perguntar-se por que razão De Gaulle será lembrado pelos séculos e eles não.

 

O poder absoluto corrompe absolutamente. A ingenuidade foi a de achar que havia um tipo de poder sempre imaculado. O dos juízes. Esse e só esse poderia não ter limites, porque não teria nunca efeitos indesejáveis. É ingénuo, inumano no verdadeiro sentido. O poder judicial apenas foi inofensivo quando tinha fortes limites. E foi com a imagem dessa fraqueza quase crística que se aumentaram os seus poderes. Mas não são Nossos Senhores, nem isentos de pecado original. Triste ingenuidade.

 

Mitterrand, cujo passado fascista é bem conhecido, dizia que os tribunais destruíram a monarquia e iriam destruir a República. Seja. Quem usa palavras vindas do nazismo como «desconstrução» ou «responsabilidades históricas» viverá bem com isso.

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

 

 

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quinta-feira, 17 de julho de 2025

Bishop Barron and the Three Theoretical Limits to René Girard

 

In an interesting interview, Bishop Barron speaks of Girard's greatness, a greatness that I do not deny.

https://youtu.be/ZOdPLrq5ViM?si=UUC3YCRlo5Vl4fgg

But this is to forget that all theoretical view is limited, and only a message identified with the messenger can be complete.

Girard's theories have three limits.

It is a theory without psychology. Girard had an almost physical repulsion for psychology. He was an anthropologist, and, even better, he had a philological background. I read societies as one reads a text. Searching for their meaning and object. That is why he never accepted the theories of the absence of a referent, but at the same time without investing in the intimate psychology of the text.

Not all desire is mimetic. Girard himself recognized it. There are autonomous desires. I'm hungry and thirsty, I need to breathe. Nothing is mimetic in this. But what I want to eat, when, this can have a mimetic inflection.

If all desire is mimetic, where does the first desire come from? Girard does not explain it. His theory is like a kind of Big Bang. After the Big Bang, it explains well what is going on. But not the first irruption of desire.

Where is the foundation of these three limits? Perhaps it is unique, and it comes from the absence of psychology. Reading society as a text is the work of a philologist. It has limits. But between a critical edition of Plato and a fanciful one there is a long distance. It's a good thing that someone brought philology to anthropology to end decades of cheap nominalisms.

A student at the École des Chartes, he showed us the power of philology to read the profound reality. But also its limits. To speak of people without speaking of soul is a fruitful deviation. But being a detour hides part of the road.

One day, comparing him with St. Irenaeus of Leo and with Jung, I hope to explain why.

 

Alexandre Brandão da Veiga

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segunda-feira, 31 de março de 2025

Um agnóstico encontra uma judia

 

 

 

 

Bem sei. Parece o início de uma anedota estereotipada. Mas não é.

 

Vi algures que Camus disse que, se a Europa se quisesse construir, precisaria de conhecer a obra de Simon Weil «L'Enraciment». Em suma, se se quiser uma Europa com alma.

 

Eis o agnóstico, eis a judia. Judia especial à porta do catolicismo. É verdade.

 

Que nos interessa este paralelo agnóstico? Observemos católicos sinceros, com prática generosa. Que dizem? Que a Europa são os direitos do homem, a democracia e a economia de mercado, que o centro do pensamento é a doutrina social da Igreja, que o importante é ser boa pessoa e a Santíssima Trindade é apenas um jogo intelectual, o importante é seguir Jesus.

 

Capturados pela excelsamente inepta teoria dos valores, coxinhos da ontologia, julgam que é impunemente que o seu estreito horizonte vital se estende à sua frente. Nas suas impunes mentes não aparece nem dissonância nem escândalo.

 

Mas são os cúmplices de uma Europa sem alma, aberta a definir-se de qualquer forma, em saldos ontológicos, sendo qualquer coisa desde que a coisa que seja permita a todos serem, menos nós que nada somos e se pretendermos ser é apenas sinal de intolerância em relação aos outros, os únicos que realmente são. Há mil maravilhosas culturas e nenhuma dela é europeia, como é evidente.

 

O católico bem intencionado mas turístico não percebe porque cada vez tem menos lugar numa Europa que é Estado de direito, democracia e direitos do homem. E não percebe que é tão coxo ontologicamente quanto os seus vizinhos laicos. Aceita definir-se sem alma, apenas instrumento jurídico e sentimental. O que interessa é ser boa pessoa, o que se identifica tontamente com seguir Jesus.

 

Quanto à ontologia, deixo-a para outra reflexão. O que importa agora é lembrar o que disse o agnóstico sobre a judia. Sem alma apenas se faz uma Europa vazia onde só está em casa quem a ela não pertence e por isso quer dela tomar posse.

 

Alexandre Brandão da Veiga

(mais)

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Porque os modernos odeiam as mulheres?

 


 

É muito curioso passar pelas referências dos ditos modernos e ver o que eles realmente pensam.

 

A grande democracia ateniense. Expulsa as mulheres do espaço público. Na aristocrática Esparta ou Lesbos as mulheres têm um mais forte papel.

 

A grande Renascença. É nela que as bruxas começam a ser perseguidas. Em que os juristas como Bodin defendem que deveria retornar o direito ao repúdio - só pelos homens, é evidente - onde nem depois de viúvas as mulheres podem fazer parte de corporações, em que se teoriza e impõe em grande parte a impossibilidade da mulher herdar património, poder feudal ou soberania.

 

As Luzes. Em que Voltaire diz que o grande mérito do confucionismo é o de ter sido a única religião que não foi seguida pelas mulheres, onde tantos (Boulainvilliers, Diderot, Montesquieu, Voltaire) defendem os haréns porque a poligamia é o regime natural - só para os homens, é evidente. Em que Rousseau entende (contra o papa Bento XIV que promove a carreira da professora de física de Bolonha Laura Bassi) que as mulheres são estúpidas demais para aprender ciência. E em que durante a Revolução Francesa, perante o protesto de Olympe de Gouges, que diz não haver apenas direitos do homem, mas também da mulher, a grande Assembleia Nacional decreta que o lugar da mulher é na cozinha.

 

A atracção pelo islão. Que enfia as mulheres em haréns. Que tem leis divinas que lhes mandam receber «barada» (tabefe, piparote, estaladão, murro?).

 

Se bem virmos, o traço comum de todas estas referências dos modernos é o de expulsar as mulheres do espaço público e retirar-lhe direitos e liberdades.

 

Quando uma mulher diz que deve muito às Luzes podemos assentir, que talvez seja verdade. Deve às Luzes, mas não à inteligência. Lady Montague é bom exemplo disso no século XVIII, quando acha os turcos fascinantes, mas não  percebe que só falam com ela por ser uma mulher europeia, e não súbdita do império otomano. E ao mesmo tempo conta que uma mulher encontrada morta na rua não  é entregue à família porque, tendo andado sempre velada, ninguém sabe quem ela é. Usar véus significa ser anónima para o mundo, mesmo quando cadáver.

 

Já sabemos, pois, qual a intenção dos ditos modernos. Expulsar as mulheres do espaço público. Salvo se não for a sua intenção, podem dizer em sua defesa. Talvez. Mas só numa condição: se forem ignorantes.

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

(mais)

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

A democracia da impotência

 

Não vou perder tempo a valorar cada um destes aspectos. Apenas os vou elencar e dizer da sua implicação. Desde o início dos anos 1990 que na Europa se diz que matérias fundamentais não dependem do voto popular. Mais ainda, que não há nada a fazer na matéria:

1) a imigração - são os tribunais sobretudo o tribunal europeu dos direitos do homem que a definem. Além do mais é uma inevitabilidade nada podemos fazer contra ela

2) a islamização - é algo de bom mas quando se referem aspectos negativos diz-se que temos de viver com ela, que temos de fazer acomodações razoáveis que não devemos fazer em relação a outras religiões. Além do mais é inevitável. 

3) a liberalização dos fluxos internacionais - é a OMC quem a regula. Além do mais é inevitável. 

4) as regras de protecção dos países - são definidas pelos tribunais em função dos direitos do homem. Além do mais é inevitável aceitar que cidadãos europeus sejam mortos. São meros faits divers, que não devem ser usados politicamente.

5) a política de defesa depende da NATO - É por isso inevitável passar por ela.

6) a integração da Europa - é tema complexo demais para os povos, dizem políticos onde se vê a origem reles e baixa. É inevitável. 

 

Perante isto, pergunta-se se os europeus podem decidir em algo relevante ou se estão reduzidos a ter as liberdades dos munícipes durante o império romano: enquadradas, limitadas, e historicamente irrelevantes.

A implicação é esta: quando se fala do desinteresse dos cidadãos em relação à política ou do voto de protesto são os mesmos que dizem que é tudo inevitável, e que portanto o voto é irrelevante, que se espantam com o desprezo das populações. Que se espantem diz apenas o pouco que são intelectualmente. Que sejam desprezados revela apenas que os povos perceberam que vieram do pouco.

 

Que alguém se diga democrata e ao mesmo tempo diga que o voto do povo apenas pode ter lugar em questões menores mostra que acha ser o exercício democrático destinado apenas a questões menores. E diz portanto quão menores é quem o diz.

 

Alexandre Brandão da Veiga

(mais)

Editorial

As democracias liberais em que vivemos não impõem objectivos sociais, nem quaisquer concepções normativas de bem. Estão ancoradas na ideia de direitos e liberdades individuais, recusando a imposição de valores absolutos ou de concepções pré-definidas de um bem comum. Sem negar a existência de uma Verdade última (isto é, sem negar a existência de um bem último ou comum), e nesse sentido afastando-se do puro niilismo, as nossas actuais democracias, assumindo a sua matriz liberal, negam ao Estado o direito de impor dogmaticamente uma concepção específica de bem. Ao invés, assentam no pressuposto de que o indivíduo pode, por si próprio e através de um processo racional de confronto de ideias, encontrar o caminho para a Verdade.

A pedra angular de todo este edifício demo-liberal, a condição mesma da sua existência, é um espaço público em que, de modo livre e incondicionado, sem preconceitos, sem dogmas e com uma atitude assumidamente tentativa, se confrontam teorias e concepções distintas, ideias e visões opostas, das quais, em última análise, acabarão por brotar valores que nos implicam com tudo o que tem a ver com a vida contemporânea, da filosofia ao sexo, da arte à política, da história à moral, da liberdade a Deus.

Como tal, este ‘marketplace of ideas’, à maneira de Stuart Mill, constitui uma das mais preciosas e poderosas garantias do respeito pela nossa liberdade individual. A sua construção e alimentação quotidianas são um direito, mas sobretudo uma responsabilidade de cada um de nós – que não pode ser inteiramente delegada nem em partidos políticos, nem em corporações, nem tão pouco no chamado sistema mediático.

Neste contexto, o «Geração de 60», enquanto espaço plural de debate que se deseja imodestamente sério e inteligente, é uma contribuição egoísta para a defesa da nossa própria liberdade.