O governo dos juízes
Como de costume, não estou em nenhum dos lados da questão. É tão boçal defender os tribunais a todo o transe como sem dó atacá-los.
A história é bem
conhecida. Em Itália havia políticos criminosos, eram efectivamente corruptos. Mas
os magistrados que os perseguiam eram tão verdadeiramente motivados
politicamente. Não há santos de um lado ou do outro.
Não enuncio juízos morais. Apenas
tento compreender. E o problema do governo dos juízes tem quatro aspectos que
nunca são tratados em conjunto:
a)
O Estado de direito é contraditório com a
democracia;
b)
Os juízes não são responsáveis pelos
efeitos políticos, sociais e económicos e culturais das suas decisões;
c)
Por educação e por ofício têm uma visão do
mundo limitada;
d)
O poder absoluto corrompe absolutamente.
O Estado de Direito é
criação aristocrática. Nada tem de democrático. A Rule of Law é defendida
desde a Idade Média, e é algo duvidoso que a Inglaterra dos séculos XV ou XVI
fosse uma democracia. A República Romana assenta no direito. O Estado do
direito é criação de repúblicas aristocráticas. O que visa, são os ditos checks
and balances. Mas não é criação americana. O Estado de direito tenta resolver
um problema: uma família aristocrática não pode impor-se às outras seja os Fabii,
os Cornelli, os Iulii, seja em Veneza os Dandolo, os Faliero, seja em Génova…
Por isso, sempre que
alguém pretende defender o Estado de direito, está a colocar-se ao lado de algo
que nada tem de democrático. Se fossem a mesma coisa, ou implicação uma da outra,
não seria necessário falar de «Estado de direito democrático» como faz a nossa
pobre Constituição.
Os juízes são irresponsáveis.
A intenção foi boa ao criar este estatuto. E continua a fazer algum sentido.
Mas os juízes criam problemas sistemáticos para os quais não têm capacidade, nem
técnica, nem política, nem jurídica para dar solução. A questão não é dos juízes,
a questão é constitucional. Foi um sistema instituído que deu poderes a juízes que
criam problemas sistemáticos, sem criar nenhuma válvula de segurança para os resolver.
Algumas constituições têm
válvulas fracas como uma segunda votação por maioria reforçada no parlamento
contra um entendimento de inconstitucionalidade dos juízes. Mas não basta. Se
um juiz torna impossível expulsar estrangeiros, se torna impossível dar
segurança às populações, o juiz lava daí as suas mãos, e os parlamentos não têm
forma de compensar os problemas criados.
Não é papel dos juízes conduzir
os destinos das sociedades. Não será acaso que o leitor se lembre do nome de
Churchill mas não dos membros da Câmara dos Lordes da época, ou De Gaulle lhe
diga algo mas o presidente do Conselho Constitucional francês lhe seja
estranho. Tudo está no seu devido lugar. Uns são grandes homens, outros têm um
papel ancilar na História. Desde sempre isso foi admitido. Falta daí retirar as
consequências. Quem não pode dar grandes curas também não pode ter o poder de
instalar grandes doenças.
Os juízes têm uma cultura
limitada. Em geral não sabem História, nem latim, nem grego, nem matemática,
nem física, nem teologia, nem filosofia… A lista do que ignoram é vasta. Na sua
maioria são técnicos, apenas com conhecimentos técnicos. São incapazes de pensar
nos efeitos de longo prazo do que fazem, pela mesma razão que ignoram o que é
um ablativo absoluto, um semigrupo, ou a transubstanciação.
Não se trata de insultar
alguém por não ter uma cultura universal. Mas a partir do momento em que tomam
decisões que têm efeitos no muito longo prazo, em que as suas decisões afastam dezenas
de milhares de anos da História genética da Europa, para quem nunca estudou genética
das populações, nem nada sabe pensar em dezenas de milhares de anos, dar-lhe
tal poder chama-se de estado de inocência. De Gaulle, que era maior que qualquer
juiz de que há memória, quando queria saber as implicações do que fazia interrogava-se
como se interroga toda a História da França. A maioria dos juízes riem-se desta
imagem, mas deviam perguntar-se por que razão De Gaulle será lembrado pelos séculos
e eles não.
O poder absoluto corrompe
absolutamente. A ingenuidade foi a de achar que havia um tipo de poder sempre
imaculado. O dos juízes. Esse e só esse poderia não ter limites, porque não
teria nunca efeitos indesejáveis. É ingénuo, inumano no verdadeiro sentido. O poder
judicial apenas foi inofensivo quando tinha fortes limites. E foi com a imagem
dessa fraqueza quase crística que se aumentaram os seus poderes. Mas não são Nossos
Senhores, nem isentos de pecado original. Triste ingenuidade.
Mitterrand, cujo passado
fascista é bem conhecido, dizia que os tribunais destruíram a monarquia e iriam
destruir a República. Seja. Quem usa palavras vindas do nazismo como «desconstrução»
ou «responsabilidades históricas» viverá bem com isso.
Alexandre Brandão da
Veiga
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