terça-feira, 10 de novembro de 2020

A vitória de Estaline

 


 

Os romanos tinham uma instituição religiosa e política (que diferença existe entre uma e outra para todas a culturas, salvo uma?). A «euocatio». Quando queriam conquistar uma cidade, um território, evocavam os deuses dessa região e desse território e chamavam-nos para o seu lado. Prometiam sacrificar a esses deuses caso tivessem a vitória.

Na perspectiva popularucha esta é mais uma forma de «tolerância» dos pagãos. O lugar comum é tão descabido que não perco neste momento tempo a desmontá-lo. O que faziam era um negócio, muito simples. Vem para o meu lado e eu adoro-te. Sirvo-te. Os romanos prometiam as mesmas ou mais honras aos deuses dos inimigos que as que os inimigos lhes davam. O negócio não saía de graça. Os novos deuses tinham de ser cuidados. Não podiam ser menos cuidados que no inimigo, sob pena de serem vingativos. Mas o outro risco era bem mais insidioso. O da possessão. Convidar, seduzir os deuses dos inimigos, tem um preço. Corremos o risco de ser possuídos por eles.

Só uma visão infantil acha que o inimigo está completamente desfeito. O inimigo deixa-nos sempre marcas. O velho adágio em que os romanos se diziam vencidos pelos vencidos, os gregos, é apenas um de muitos exemplos. A adoração a Ísis ou Adónis ou Cibele mostram outros exemplos. O sítio onde morreu o inimigo é local sagrado para muitos povos, não por respeito, mas por medo. Os costumes do inimigo ou são objecto de zelo apagador ou de zelo pagador.

Quando caiu o Muro de Berlim, entre a populaça, nomeadamente a universitária, ouviu-se falar do fim da História e da vitória do Ocidente (seja o que isso for) sobre o comunismo. Esta é a música popular, mas agora que podemos falar em salões mais exigentes, tentemos ouvir uma música mais castigada. E refiramo-la em três notas.

Que venceu? Quem venceu? Três herdeiros do comunismo.

Em primeiro lugar, a reescritura da História. Logo desde 1992, celebra-se a descoberta das Américas… Não! Nem pensar. Celebra-se o «encontro de culturas». Porque, como todos sabem, os europeus não descobriram as Américas, houve uma expedição conjunta de índios e europeus, e encontraram-se a meio do Oceano. Ano de cerebração de Cole Porter e de Mozart. Mozart é relegado para segundos canais, enquanto há horas de programação a celebrar o génio de Cole Porter. Já em 1992 se tinham dados de que a técnica estalinista ganhava força. A Turquia passa de repente a ser uma cultura europeia, o que surge como surpresa para quem aprendeu História até então. O islão passa a ser essencial na cultura europeia, coisa que o europeu culto desconhecia até então, e a Europa deixou de ter cultura própria, é uma encruzilhada de culturas.

Agitprop. Agitação e propaganda. Os países «ocidentais», exactamente estes países «ocidentais», são uns criminosos. Conquistaram com violência as Américas. O que nos faz pensar que deve haver outras formas de conquistar, e que a conquista turca do império bizantino deve ter usado cócegas ou festinhas. Estrangeiros ilegítimos os europeus em toda a parte que passaram. Os incas eram estrangeiros em Cuzco, mas esse facto tem de ser apagado. Os incas são legítimos porque são incas. Os chineses, porque são chineses, podem ser colonizadores de Taiwan desde o século XVII e XVIII, há menos tempo que Portugal tem Angola. Mas são legítimos. Porquê? Precisamente porque não são «ocidentais». O que é ocidental é ilegítimo. Eis o que se aprende nas universidades «ocidentais», incluindo as americanas. Estas últimas centro de imitação dos franceses. Eis o mundo que venceu: o que se anuncia como o único ilegítimo. Enquanto canta vitória, ensina os outros a degolá-lo.

Os americanos julgavam que sairiam limpos deste jogo. Porque, habituados a ser críticos dos impérios coloniais europeus para os destruir e colocar o seu poder sobre eles, julgavam que as vítimas seriam apenas os europeus. Mas não perceberam que são eles mesmos de matriz europeia. Por isso, ganha a agitprop feita pelo mundo capitalista, mostrando-se assim muito mais eficaz que o antigo mundo comunista.

Terceira vitória. Os amanhãs que cantam. A estratégia cantadeira que diz que «tout va très bien, Madame la marquise», mesmo que a casa esteja a arder. O mundo vai estar cheio de democracia, liberdade, e mercados, e as pessoas vão viver cada vez melhor. E se cada vez há mais pessoas nesse mundo ocidental a viver pior, ou de modo estagnado, e sem futuro para os filhos, ou futuro pior, o que lhes dizem? Amanhã vai estar melhor. «Look at the bright side…». Tudo a cantarolar uma musiqueca popular mesmo enquanto estão a ser crucificados. O plano quinquenal ou a mão invisível são ambos míticos quando se é pobre.

O que o mundo ocidental se fez a si mesmo é metade do que o comunismo alguma vez lhe fez. Estaline da sua cova deve estar a lançar o seu sinistro sorriso. Os ditos ocidentais  foram possuídos pelos deuses dos povos que julgaram vencidos. Lenine diz que o capitalista venderia a corda em que seria enforcado. O dito mundo ocidental conseguiu ir além disso: financiou o espectáculo, pagou o estrado, os foguetes, convidou a multidão. E fica espantado que ainda não tenham começado as festividades, nem lhe sinta o cheiro. Isto tudo enquanto, como o cisne dos «Carmina Burana», vai sendo assado no espeto que mandou fabricar.

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

 

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