Três ideias sobre Nietzsche II
E eis que a aparece a terceira
observação. Todo o projecto de Nietzsche é o de demonstrar a falsidade do
«nulla salus sine Ecclesia». Não há salvação fora da Igreja. O que ele diz é:
eu serei a minha própria Igreja, e fabricarei a Igreja que me há-de sustentar.
Deu-lhe um nome. O de super-homem. Assente nas suas próprias forças, e próprio
fundamento, sua própria escora, esse super-homem conseguiria fazer do nada,
criar a partir do nada, ou de uma massa informe, talvez seja mais correcto
dizer assim, porque sem o Deus cristão nem o nada existe…
Criar a partir desse
quase nada, dessecados… Mas de que caos, mas criar o quê, com que forças? Eis a
sua experimentação. Sobretudo, sem pecado, sem pecado original, sem base a não
ser a de uma tradição grega… Nietzsche sem a tradição é incompreensível. Alguma
tradição. A dos gregos, ou mais precisamente a de como os alemães cultos da sua
época viam os gregos.
O problema é que essa tradição
alemã era marcada pelo cristianismo. O problema é que quis criar com base na filologia,
a ciência mais cautelosa em relação à criação. A mais legitimamente desconfiada
em relação a conceitos como o de criação, nomeadamente a artística. Queria
criar um aristocrata a partir do que o não era, uma glória sem genealogia, um brasão
sem campos.
Uma salvação sem o Cristo,
ou o afundamento. E Nietzsche afundou-se, depois de um ataque de piedade, a sua
primeira natureza venceu, seja o que resultasse de uma primeira natureza tão
martirizada por anos de pensamento destruidor da sua parte. Os cavalos de Aquiles
falavam. O cavalo de Nietzsche apenas sofreu. Nem o cavalo falou com ele.
Queria ser aristocrata, e Cristo ele mesmo. Fundamento do mundo. Boa tentativa.
E falhou. Num filósofo a sua vida é fraco argumento contra as suas teorias. O
cristianismo ensinou-nos a apreciar a obra de um autor independentemente da sua
exemplaridade moral. Mas no caso de Nietzsche a sua vida era a obra prima que
ele estava a tentar conseguir com a sua obra. E a sua vida afundou. A sua obra
toda ela soçobra.
Hitler, que, como é moda,
admirava o islão e falava de civilização judaico-cristã, mandou realizar em
pedra algumas das obras, porque percebeu que as ruínas do betão eram feias.
Mais que obras belas para o presente, queria fazer ruínas belas para o futuro.
Eis o que é a obra de Nietzsche. Desde a origem uma obra que se anuncia como
uma ruína, um aviso, um resto. A ser admirada, a suscitar-nos ternura em certos
momentos, admiração noutros.
Mas a ser seguida…
No fundo, Nietzsche tem
razão. Dizia que devia ser lido com desconfiança. Se Jung é genial, os jungianos
em geral são insuportáveis, salvo Marie Luise von Franz. Se Nietzsche é genial,
os seus esbirros são insuportáveis. Mas para o próprio Nietzsche. Ele seria o primeiro
a desprezar os seus esbirros, os seus idólatras, os seus seguidores. O seu
fracasso ao menos foi espectacular, trágico, banhado pela beleza crepuscular.
Os seus seguidores vivem em antros de pequenas dimensões, e confundem a fraca
luz que os ilumina com o entardecer do mundo, a pequenez da sua vida com a discreta
semente do futuro. Mas são exactamente o inverso de Nietzsche. Ele ao menos
experimentou. Eles apenas copiam.
Alexandre Brandão da
Veiga
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