Lévi-Strauss o ambíguo
Lévi-Strauss o ambíguo
Lévi-Strauss é uma personagem muito
ambígua. Tem aspectos positivos quando procura invariantes, universais, nas
práticas sociais, e encontra nestas a proibição do incesto (DOSSE, François, Histoire
du Structuralisme, Tome I, Le Champ du Signe, 1945-1966, Éditions la
Découverte, Paris, 2012, p. 35).
Já quanto à recusa de recurso ao sujeito
falante (pp. 38-39) é mais equívoco. Por um lado, é uma premissa saudável, de
simplificação do modelo. Mas o problema é que ele comete o erro epistemológico
mais elementar: coisifica o modelo. Quando recusa o sujeito sem mais, não por
induzir complexidade no modelo, mas como um dogma, comete o pecado basilar de
reificação. A prevalência da sincronia de Saussure em si mesma também não é
pecado (p. 39, embora de forma mais extrema a p. 67). O problema é a sua recusa
da História (p. 39; Lacan dizia que detestava a História pelas melhores razões
a p. 146, e a obra de Vladimir Propp porque tinha dimensão histórica, foi
esquecida em França nos anos 60 e só publicada nos anos 80 a p. 375; Paul
Ricoeur diz que o custo do estruturalismo é afastar a História e a palavra no
sentido de Saussure, e tenta receber a palavra, mas a verdade é que se esquece
da História a p. 379; mas o próprio Barthes não consegue evitar a História como
modelo explicativo a p. 382).
Uma História total teria sempre um produto
igual a zero, afirma (p. 278), atacando o cristianismo sem o visar. A
Incarnação não serviu de nada, vivemos todos num magma de eventos, bem vindos
ao mundo arcaico. O problema é sempre o mesmo. O que pode começar por ser uma
saudável simplificação do modelo, acaba por ser fetiche, barreira
inultrapassável. A questão é a de saber porque coisifica ele o modelo. Com
efeito, o que começa por ser modelo em Saussure naquele passa a ser evacuação
do significado e privilégio do significante (p. 46). A sua ideia da irredutível
diferença entre as culturas (p. 155), impede em última análise qualquer fusão,
ao contrário do testemunho da História (mas a prova empírica não era a
preocupação de Lévi-Strauss, já o sabemos). Ataca os fundamentos do
europeicentrismo (p. 155). O «outro» pode ensinar-nos sobre nós mesmos (p.
156), diz. Mas isto mais não é que o que fizeram os jesuítas séculos antes
dele, o que habilidosamente omite. Fala do encerramento ocidental-centrado e
quando aparentemente está a fazer um discurso sobre a igualdade das culturas,
lembra apenas os aspectos em que culturas não ocidentais são superiores à
nossa, os beduínos e esquimós na capacidade de adaptação a climas duros, os
orientais na espiritualidade (p. 156). Também aqui passa uma visão meramente
turística da realidade. Lévi-Strauss nunca referiu a mística cristã, seja
ocidental, seja ortodoxa. Faz, por isso, um juízo comparativo presumindo que a
Europa não tem espiritualidade ou a tem menor, logo é fácil encontrar qual seja
maior que ela. Não há aqui nenhuma preocupação de conhecimento, mas apenas
impor um dogma.
Afirma que o pensamento mítico é tão
estruturado quanto o pensamento científico (p. 298), o que é ideia
autobiográfica, como tudo o que não é muito inteligente. O seu pensamento pode
não ser mais estruturado que o mítico. Mas talvez fosse altura de ele se
confrontar com o pensamento de Riemann, por exemplo, para verificar, se o
tivesse conseguido, que existe uma hierarquia entre esses pensamentos. Outro
exemplo ocorre quando diz que os australianos são superiores nas formas de
organização parental (p. 156). Em parte nenhuma se mostra em que termos estudou
as genealogias europeias e os mecanismos familiares na aristocracia europeia.
Instalado no seu mundo plebeu, compara-o com o resto do mundo, como se o seu
assento burguês fosse o da Europa. Começa por falar em prosa e celebra a poesia
alheia. Roger Caillois, mostra o evidente, que só a Europa pela sua curiosidade
criou a etnografia, mas a este argumento apenas sabe responder com a paródia
(pp. 158-159). Declara que o seu mestre é Rousseau ao qual muito devemos e em
relação ao qual temos sido ingratos (p. 162). Não referiu a alegria da
guilhotina, como uma das suas implicações ideológicas, não obstante. Maxime
Rodinson responde a este relativismo integral dizendo que, perante as suas
teorias, nada permite afirmar que seja mais importante conhecer o princípio de
Arquimedes que a nossa genealogia (p. 165). O que é só parcialmente um bom
argumento. Porque se Lévi-Strauss não parece compreender o princípio de
Arquimedes, de certeza ignora a sua genealogia, e quer por isso que a dos
outros seja irrelevante. A sua é a procura de desviar as costas ao Ocidente, à nossa
História, a que nos produziu (p. 168). Porquê? Precisamente por essa História
não o glorifica a ele, e impõe-lhe limites à sua grandeza. Nunca fará parte dos
kaloi kai agathoi, por isso diz que é o próprio kalos kai agathos
que é irrelevante, condenável, desprezível. A única estratégia que tem para
afastar os obstáculos da sua subida à glória. O ressentimento do plebeu, em
suma, e mais uma vez.
Sublinha a enorme complexidade das línguas
primitivas, e refere as trezentas e cinquenta plantas recenseadas pelos índios
Hopi e os índios Navaro mais de quinhentas (p. 275), sem nunca se ter
apercebido que c camponês europeu sabia muitas mais em frequentes casos.
Lévi-Strauss diz (repare-se, não escreve) que é um materialista
(p. 214), mas que fala das leis do espírito humano (p. 276). Quando Jean
Duvignand em 1958 opõe à postura estruturalista uma visão pluralista da
sociedade, Lévi-Strauss diz que a questão da liberdade não tem sentido nenhum,
porque a estuda como cientista (p. 215). A afirmação parece ser nobre e
sensata. É por demais legítimo ter uma visão estrutural do homem, ou melhor,
uma visão formalista das relações humanas. Todas as relações por definição são
formalizáveis. Isso em si não é pecado, mais uma vez. A questão mais uma vez é
de ter transformado o que é mero princípio de contenção dentro de um modelo em
fonte de máximas da existência. Coisifica e expande o omitido para o resto da
vida. Porque bem sabe que quando diz que a liberdade é irrelevante, não vai ser
entendido «neste modelo que construi não existe uma variável liberdade», mas no
sentido em que «não existe de todo a liberdade, ou não tem importância
nenhuma». É também significativo que o seu conceito de formalização implique
alguma linguística, algum marxismo e algum freudismo (p. 281), mas nenhuma
matemática. Como nesta matéria é ignorante e não quer cair nas asneiras de
alguns dos seus correligionários que brandem conceitos matemáticos a
despropósito, fica-se por uma formalização «homemade», de amador. Quando diz
que o sistema de parentesco cria uma linguagem (p. 216), esquece-se de dizer
quão complexa é a linguagem dos sistemas de parentescos europeus, e quanto mais
ricas são as suas genealogias, que são entendidas como irrelevâncias.
A relação com a linguística é confusa,
inábil, cheia de arrependimentos, em suma, não era tema que Lévi-Strauss
dominasse bem ou usasse com lisura, usa a gíria linguística como uma forma de
propulsão para outras análises (p. 216). Aqui Dosse pretende defender
Lévi-Strauss por ter usado a equivocidade como forma de fazer ciência. Mas a
equivocidade não é a marca de um cientista, é antes a marca de alguém que
pretende obter poder. E mais uma vez se vê onde quer chegar Lévi-Strauss. Mais
discreto, menos histriónico que os seus seguidores, teve o cuidado de deixar
queimar os outros, e preservar-se a si. Mas esta estratégia nada tem a ver com
a procura da verdade, mas de poder.
O próprio reconhece que se em 1960 a
História e a antropologia se tinham aproximado, ambas procuravam capturar a
atenção do público (p. 223). O projecto de poder encontra-se igualmente na sua
tentativa de agregar si os sociólogos (p. 270), e os antropólogos africanistas
(p. 313), mas também quando expulsa a equipa de semióticos de Greimas do
Collège de France, porque não admitia concorrência (p. 373).
As contradicções não terminam por aqui.
Pretende afastar o biológico da análise antropológica mas ao mesmo tempo diz
que a emergência da cultura é um mistério do homem enquanto não conseguir
determinar as mudanças biológicas da estrutura e funcionamento do cérebro (p.
222), e diz que é na fronteira entre a natureza e a cultura que prospera o
estruturalismo (p. 276), e coloca o problema do cozido como ponto de encontro
entre a cultura e a natureza (p. 299). Encontra a ordem num caos de mitos onde ninguém
a tinha visto (p. 277), mas significativamente depois dele os pós-modernos
recusam qualquer ordem; de tanto ter fustigado as ordens europeias, não podia
espantar-se que viessem outros que quisessem acabar o seu trabalho de
destruição. Ele julgava que seria soberano o suficiente para impor limites, mas
não era de modo nenhum soberano. A sua visão pequeno burguesa nota-se na
oposição que faz entre dois tipos de éticas: a ocidental, que respeita as
medidas de segurança para se proteger enquanto indivíduo, e a das sociedades
ditas primitivas, em que se respeitam as medidas de higiene para que os outros
não sejam vítimas da nossa impureza (p. 303). Vê-se facilmente que nunca
aprendeu uma ética aristocrática, está a usar o pequeno burguês como símbolo do
ocidental.
O rol de disparates e enviesamentos não
acaba por aqui. Rosseau é dado como mestre do pensamento científico (p. 305). O
paralelo entre a tetralogia das «Mitologias» de Lévi-Strauss e a de Wagner é
significativa (p. 305), mostrando como o judeu assimilado procura assimilar-se
ao gigante Wagner. Preocupado em desvalorizar tudo o que pode fundar a Europa,
diz que o milagre grego nada mais é que uma simples ocorrência histórica, que
nada mais significa que o facto de se ter produzido onde se produziu (p. 309);
é significativo que diga isto e ao mesmo tempo estabeleça proibições: não se
deve falar sobre as origens. É neste esquecimento imposto que se funda o
pensamento contemporâneo. Proibição de referir as origens equívoca e suspeita,
é evidente. Esquecer as origens violentas das sociedades, incluindo as
primevas, ou esquecer as origens imperialistas da própria antropologia (ver p.
440)?
Com toda a alegria Domenach diz que
Lévi-Strauss participa da destruição (p. 310). E diz-se que é exemplo do
pessimismo mais profundo (p. 418). Sabe que vem do nada e está apenas a
preparar o nada. É pessimista? Tem toda a razão de o ser: quanto a si mesmo.
Melhor saberá porque acha o mundo feio. Num fase posterior Lévi-Strauss defende
aparentemente tudo o contrário , mas continua a usar o termo de estruturalista.
Entendamo-nos: mudar de opinião em si não é problema. O problema está quando a
etiqueta não muda, como se houvesse uma continuidade de projecto e se defende
tudo o contrário do que se defendeu até então. Ele que pretendia um modelo
cultural livre da biologia, afinal parece participar da era da suspeição (?)
que pretende sair da dicotomia tradicional entre cultura e natureza (DOSSE,
François, Histoire du Structuralisme, Tome II, Le Chant du Cygne,
1967 à nos Jours, Éditions la Découverte, Paris, 2012, p. 43), e encontra
uma reconciliação entre a natureza a cultura (p. 257).
Vejamos as invariantes do seu pensamento.
Não são o estruturalismo porque notoriamente usa este nome para dizer uma coisa
e o seu contrário. Mas são outras matérias: o materialismo, a vontade de poder,
e o ressentimento em relação à Europa. São estes os três traços comuns do seu
pensamento. Em 1967 vê-se a sua vontade de poder, querendo marginalizar os
filósofos em relação aos antropólogos (p. 256). A antropologia foi uma forma de
dar escoamento ao funcionários tornados caducos pelo fim do colonialismo (p.
258). Os seus combates anti-colonialistas (p. 412) são uma forma de dar
ocupação, objectivamente e independentemente das intenções, aos antigos
funcionários coloniais (pergunta-se aliás a que titulo Lévi-Strauss tem
legitimidade para fazer parte de movimentos anticolonialistas, mistura de
géneros entre cientista e cidadão que só gera equívocos no seu caso.).
Quando Dan Sperber diz que Lévi-Strauss
reuniu a antropologia enquanto ciência geral e etnologia (descritiva) (p. 27),
tem só em parte razão. Esquece Mauss e a escola alemã e britânica da
antropologia (o conceito de «savage thought» é inglês como Hartland mostra).
Mas esquece-se igualmente que a reunião permite a concentração de poder
igualmente, independentemente do que tenha sido a sua intenção. O seu
anti-humanismo teórico mantém-se como constante na sua vida até ao fim, mas
agora parece que privilegia as diferenças em vez do universal, e o único
universalismo que aceita é o da identidade biopsicológica da espécie humana (p.
466). O seu projecto de poder do domínio da linguística desde que nas mãos dos
antropólogos (pp. 227-228). Participava de uma ilusão cientista (p. 233).
Embora o seu modelo de parentesco funcione de modo pertinente (p. 233,
mal-grado não ser referida a importância de André Weil para a construção deste
modelo).
Um dos seus elementos de continuidade
entre o primeiro e o segundo Lévi-Strauss é a sua fidelidade a um anti-humanismo
(p. 465). Mas quando se diz que faz prevalecer o enraizamento em vez da
universalidade (p. 466). Nisto ficou aquém da sua análise. O enraizamento que
admite é só o dos outros, e o dos primitivos, e tentou impor um formalismo que
pretendeu ser universal. A ideia de estruturalismo sofre um deslize porque
passa de uma forma de dar sentido para estar ínsita na própria natureza na
segunda fase do pensamento de Lévi-Strauss (p. 463). Para ele a chave do
problema são os neurologistas (p. 463). O sujeito volta, mas sob a forma de
cérebro. Tudo o que pode fazer para salvar o suposto estruturalismo revela
apenas o que para ele é o essencial. Um materialismo como mera negação de um
património anterior, a recusa de uma hierarquia, salvo a que eleve as culturas
não europeias. Até o sujeito admite, o sujeito no que tem de mais básico, na
sua neurologia, desde que o homem europeu não seja, não tenha valor, seja só
motivo de fruição para si (o «si» aqui é Lévi-Strauss, que pode ouvir Bach, não
os europeus em geral, que não são merecedores disso), mas não como paradigma
para os outros; postula um isomorfismo entre os processos físico-químicos e os
do espírito (p. 463), em parentesco não assumido com o psicoide de Jung.
Um mérito tem de se lhe reconhecer. É um
mestre do glissando: deixa os seus esbirros berrarem e queimarem-se,
enquanto ele passa delicadamente pela tormenta, incólume, como se fosse o único
que desde a origem tivesse tido razão e não, como era, a origem da irrazão.
Olímpico para as classes populares, é-o só para elas. Talleyrand de baixo
coturno, tendo aprendido a elegância em livros e não em família, quis-se
árbitro dos gostos . Mestre do glissando, deixa os berros aos seus
esbirros, que se queimam enquanto ele vive num Olimpo de papel por lhe faltar o
feito de carne, sangue e linhagem. Lévi-Strauss precisou dos seus Fouché como
utilidades dispensáveis. Mas nunca lhe coube ser o vício apoiado no crime, não
lhe tinha o nascimento, não vinha de alturas para ser decadente. Foi apenas o
embuste apoiado na farsa.
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