Contestando os bons sentimentos
Circulando pelo espaço
público encontramos a mesma ladainha, a mesma música, o mesmo enfado
repetitivo: «tenho tão bons sentimentos», «os meus sentimentos são melhores que
os teus». As pessoas estão um concurso de amor em relação à humanidade, em que pretendem
sentir mais amor pelo humano, pelo humano na sua abstracção, no seu conjunto,
na sua totalidade, bem mais que amor pelos vizinhos.
Se se trata de amor, e
que problema está por detrás deste amor industrializado, é questão para outras discussões.
Neste momento apenas vou referir três aspectos que me levam a sentir repulsa
pela expressão de bons sentimentos em público.
Existe, em primeiro lugar,
uma dimensão social. Mostrar sentimentos em público é sempre sintoma de má
educação. Mostrar bons sentimentos em público é, em acréscimo, sintoma de baixíssima
origem social. Por isso, quando alguém demonstra em público bons sentimentos,
não está forçosamente a falar dos seus sentimentos reais. Está apenas a demonstrar,
para além de qualquer dúvida razoável, que não teve educação, tem mau gosto, e
vem de muito baixa extracção social. O que, convenhamos, não era necessário
dizer de outra forma, a sua imagem gráfica há o teria denunciado. Mas como vive
num mundo de redundâncias mais esta não o assusta, apenas nos enfastia.
Em segundo lugar, há uma dimensão
psicológica. Jung dizia qualquer coisa como: quanto maior a luz, maior a sombra.
Apenas expunha uma verdade psicológica conhecida do fundo dos tempos. Quando
alguém quer mostrar os seus bons sentimentos, perguntamo-nos legitimamente por onde
andam os restantes. Onde estão os seus maus sentimentos? Porque os cala? Porque
não fala deles? Que negrume pretende esconder? Que ódios? Com que intensidade? Em
relação a quem? A quê? São perguntas que ele não se faz, senão no escuro do seu
quarto, onde relega a sua sujeira. Mas quando de modo afectado pretende mostrar
apenas a sua parte luminosa, não percebe que se trai, junto de quem tem alguma
lucidez, e se percebe que é o nojo que o impulsiona. É a sua natureza nojenta
que pretende esconder com tanta luz. E espera que haja gente tão inepta quanto
ele para acreditar na sua farsa.
Em terceiro lugar, há uma
dimensão teológica. O actual humanista, muitas vezes frequentador de uma missa
cujo significado ignora, desconhece teologia. O que é a muitos títulos
significativo. Pensemos um pouco: porque exprime ele bons sentimentos, em total
contradicção com o que sempre foi uso entre os santos? Porque falam os santos
dos seus maus sentimentos, dos seus pecados? Dos seus pecados pessoais, não os colectivos,
forma fácil de dissolver a responsabilidade? Não os da Europa, do Ocidente, dos
países ricos, mas sua, sua, muito sua? Porque Santo Agostinho mostrava ao mundo
as suas falhas e São João da Cruz a longa noite da fé? Porque mostravam ao
mundo os seus maus sentimentos? Como se dá o caso de que, ao contrário dos
santos, o escorregadio humanista apenas faz exactamente o contrário? Expressa
os seus bons sentimentos. Porque não segue ele o percurso da santidade? Talvez
porque é o demónio que ele quer esconder. Alguém dizia que Lúcifer é a mais
bela das criaturas. É sob a capa da bondade que quer esconder que mais não é
que um esbirro do demónio.
As três dimensões estão mais
ligadas do que se julga. Cerca de dois mil anos de fusão entre a tradição
aristocrática e a cristã levaram a não se falar de sentimentos em público, e a
ver como de muito baixo coturno mostrar os bons. Em boa aprendizagem da psicologia,
se sabe desde as origens da humanidade, que a luz exposta é vista com
desconfiança, as boas intenções vistas com cepticismo. A tradição teológica vai
no mesmo sentido: fala dos teus pecados pessoais ao mundo, dos teus méritos
Deus saberá. Baixa origem. Não só na sociedade, mas também escatologicamente.
Vem algures dos infernos a sua atitude, cheira a céu de plástico o seu
discurso. E só acredita no seu lodaçal quem começa a ser enfeitiçado pelo mesmo
esterco. Como os companheiros de Ulisses, já começa a transformar em porcos a
sua audiência. E os membros desta, quando julgam que batem palmas, estão apenas
a grunhir.
Alexandre Brandão da Veiga
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