segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Contestando os bons sentimentos

 

Circulando pelo espaço público encontramos a mesma ladainha, a mesma música, o mesmo enfado repetitivo: «tenho tão bons sentimentos», «os meus sentimentos são melhores que os teus». As pessoas estão um concurso de amor em relação à humanidade, em que pretendem sentir mais amor pelo humano, pelo humano na sua abstracção, no seu conjunto, na sua totalidade, bem mais que amor pelos vizinhos.

Se se trata de amor, e que problema está por detrás deste amor industrializado, é questão para outras discussões. Neste momento apenas vou referir três aspectos que me levam a sentir repulsa pela expressão de bons sentimentos em público.

Existe, em primeiro lugar, uma dimensão social. Mostrar sentimentos em público é sempre sintoma de má educação. Mostrar bons sentimentos em público é, em acréscimo, sintoma de baixíssima origem social. Por isso, quando alguém demonstra em público bons sentimentos, não está forçosamente a falar dos seus sentimentos reais. Está apenas a demonstrar, para além de qualquer dúvida razoável, que não teve educação, tem mau gosto, e vem de muito baixa extracção social. O que, convenhamos, não era necessário dizer de outra forma, a sua imagem gráfica há o teria denunciado. Mas como vive num mundo de redundâncias mais esta não o assusta, apenas nos enfastia.

Em segundo lugar, há uma dimensão psicológica. Jung dizia qualquer coisa como: quanto maior a luz, maior a sombra. Apenas expunha uma verdade psicológica conhecida do fundo dos tempos. Quando alguém quer mostrar os seus bons sentimentos, perguntamo-nos legitimamente por onde andam os restantes. Onde estão os seus maus sentimentos? Porque os cala? Porque não fala deles? Que negrume pretende esconder? Que ódios? Com que intensidade? Em relação a quem? A quê? São perguntas que ele não se faz, senão no escuro do seu quarto, onde relega a sua sujeira. Mas quando de modo afectado pretende mostrar apenas a sua parte luminosa, não percebe que se trai, junto de quem tem alguma lucidez, e se percebe que é o nojo que o impulsiona. É a sua natureza nojenta que pretende esconder com tanta luz. E espera que haja gente tão inepta quanto ele para acreditar na sua farsa.

Em terceiro lugar, há uma dimensão teológica. O actual humanista, muitas vezes frequentador de uma missa cujo significado ignora, desconhece teologia. O que é a muitos títulos significativo. Pensemos um pouco: porque exprime ele bons sentimentos, em total contradicção com o que sempre foi uso entre os santos? Porque falam os santos dos seus maus sentimentos, dos seus pecados? Dos seus pecados pessoais, não os colectivos, forma fácil de dissolver a responsabilidade? Não os da Europa, do Ocidente, dos países ricos, mas sua, sua, muito sua? Porque Santo Agostinho mostrava ao mundo as suas falhas e São João da Cruz a longa noite da fé? Porque mostravam ao mundo os seus maus sentimentos? Como se dá o caso de que, ao contrário dos santos, o escorregadio humanista apenas faz exactamente o contrário? Expressa os seus bons sentimentos. Porque não segue ele o percurso da santidade? Talvez porque é o demónio que ele quer esconder. Alguém dizia que Lúcifer é a mais bela das criaturas. É sob a capa da bondade que quer esconder que mais não é que um esbirro do demónio.

As três dimensões estão mais ligadas do que se julga. Cerca de dois mil anos de fusão entre a tradição aristocrática e a cristã levaram a não se falar de sentimentos em público, e a ver como de muito baixo coturno mostrar os bons. Em boa aprendizagem da psicologia, se sabe desde as origens da humanidade, que a luz exposta é vista com desconfiança, as boas intenções vistas com cepticismo. A tradição teológica vai no mesmo sentido: fala dos teus pecados pessoais ao mundo, dos teus méritos Deus saberá. Baixa origem. Não só na sociedade, mas também escatologicamente. Vem algures dos infernos a sua atitude, cheira a céu de plástico o seu discurso. E só acredita no seu lodaçal quem começa a ser enfeitiçado pelo mesmo esterco. Como os companheiros de Ulisses, já começa a transformar em porcos a sua audiência. E os membros desta, quando julgam que batem palmas, estão apenas a grunhir.

 

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

 

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