Ciência e contra-intuitivo.
Ora bem. Ouçamos o homem da
rua. O que lhe vai na mente? Desde Einstein que passámos a saber que o universo
era não euclidiano. Uma revolução. O passante não percebe muito bem o que está
a dizer, mas não é relevante. O importante é que saibamos uma coisa nova, mesmo
que não saibamos o que essa coisa nova é.
Antes «todos» pensavam de
uma maneira e veio a relatividade (generalizada, no caso) e veio mostrar-nos
outra coisa. Será assim?
Já de há muito se sabe que
bastantes matemáticos entendiam que a geometria do nosso mundo podia não ser euclidiana.
Gauss assim o achava, do mesmo modo Riemann, Clifford, também Hilbert e Poincaré.
A lista podia ser estendida. Mas «as pessoas» não acreditavam nisso. A questão é
a de saber o que entendemos por pessoas. «Quem» não achava isso? A resposta é
simples: a comunidade científica.
O problema de dizer que
antes todos pensavam de uma maneira e foi alguém (no caso, Einstein) quem lhe
mudou as ideias é que a comparação é assimétrica. Compara-se um génio, não com
outros génios, mas com uma comunidade de gente inteligente e erudita, sem dúvida,
mas não forçosamente genial. A comparação está viciada e assenta em equívoco.
O primeiro equívoco
ocorre entre os físicos e os matemáticos. Os matemáticos, os geniais, insistem
sobre a natureza, pelos menos parcialmente, empírica da geometria. Os físicos,
na sua maioria, quando expõem geometria e cinemática, dizem precisamente que estão
a falar da parte da física que não depende da experiência.
O segundo equívoco funda-se
no conceito. Porque a explicação que surge de várias penas de cientistas é
simples: a nova teoria é «contra-intuitiva». E é nesta que nos temos de fixar. Perguntemos,
pois: as antigas teorias eram «intuitivas»?
A física de Galileu era «intuitiva»?
Galileu explicou a queda dos graves de uma maneira simples: não viu corpos de diferentes
pesos cair a velocidades diferentes e daí explicou o fenómeno com a inércia. Ou
seja, explicou algo que não viu com
outra coisa que não viu. A inércia é «intuitiva»?
Não conheço ninguém que ande a passear uma inércia pela trela. A física de Newton
é «intuitiva»? Pela lei da gravidade de Newton, se eu levantar um copo e fizer um
brinde, perturbei a órbita de Sirius (lei do inverso do quadrado da distância).
Que tem isso de «intuitivo»?
A física de Aristóteles
está bem longe de ser «intuitiva». Que haja uma coisa chamada acto e outra
potência («Física», «Metafisica») nada tem de «intuitivo». Senão Platão teria desenvolvido
o tema. Que os objectos caiam no centro da Terra («Física») também não. O
conceito é de «lugar natural». Identificar esse lugar natural com o centro da Terra
para os objectos pesados nada tem de evidente. Aristóteles nunca viu o centro da
Terra, nem viu objectos cair em Marte. Não podia conceber a gravitação
universal. Trata-se de um modelo. Que nós estejamos de cabeça para baixo («De
Caelo») também nada tem de «intuitivo». Ao contrário do que se pensa, a física aristotélica
nada tem de «física de bom senso». Como o movimento aparente das esferas
celestes é da direita para a esquerda (como escrita semítica) e o movimento
mais nobre é da esquerda para a direita (escrita grega) a única explicação é
que estamos de cabeça para baixo. Nada disto é «intuitivo».
O que querem, pois, dizer
os cientistas quando falam de «contra-intuitivo»? Em boa verdade, o que querem
dizer é «contra a tradição». Uma tradição especializada (dos físicos, v.g.) ou
comum, mas uma tradição.
Esclarecendo o «quê»
resta explicar o «porquê». Por que razão os cientistas usam o conceito de contra-intuitivo,
quando em boa verdade querem falar de tradição? Porque evitam o conceito de
tradição? Há para mim duas causas, ambas paradoxais.
Em primeiro lugar o
próprio peso na ciência da sua tradição. A tradição da ciência é ver a tradição
como algo acrítico, a que a ciência se opõe. A ciência é precisamente o contrário
da tradição. A investigação autónoma, crítica, da realidade, sem as peias das
tradições. Se o cientista fala em intuição e não em tradição, é porque é precisamente
essa a sua… tradição.
Em segundo lugar, por causa
do peso da intuição na ciência. Independentemente das escolas de pensamento, e
de visões mais ou menos escolásticas da intuição, de se se entende essa intuição
como sensível, intelectual ou outra coisa, a verdade é que de uma forma ou de
outra, todos os grandes cientistas reservam um lugar à intuição no seu pensamento.
Nada vem do nada (daí a tradição), mas nada vem apenas como simples decurso de
alguma coisa (daí a intuição). É a sua intuição que cria, e por isso é ela que
os obceca. Por isso, quando falam da tradição que visam superar, usam o
conceito da intuição.
É evidente. Não é possível
destrinçar a intuição da tradição a partir de certo momento. Estão de tal modo interligadas
que as suas fronteiras são por vezes muito difusas. Para um polaco, que tem uma
língua declinada, a estrutura do latim é mais «intuitiva» que o seu vocabulário.
Para um português, que tem uma língua latina, mas analítica, passa-se o inverso.
Porque o que é «intuitivo» para uns não o é para outros? Porque em grande medida
o que chama de intuitivo nada mais é que uma tradição.
Por isso suspeitemos
sempre que alguém fala de intuição ou de contra-intuitivo na ciência. A ciência
em si mesma nada tem de «intuitivo». Aliás, nenhum campo da cultura é «intuitivo».
Os chineses levaram milhares de anos de civilização e nunca foram capazes de imaginar
os teoremas da geometria pura grega. E, no entanto, nada de mais «intuitivo»
para nós, mesmo e precisamente quando a queremos superar.
Suspeitemos tanto mais
quanto, quando se fala de «contra-intuitivo», se quer mostrar um mundo mágico
que viola as nossas regras «habituais». Violam-se assim as nossas tradições, ou
a nossa visão das tradições, mas quer-se mostrar que é a própria essência do ser
humano que é violentada. Quer-se dar picante, no que deveria ser mais, em boa
verdade, fundante e entusiasmante.
Sem tradição e sem
intuição não percebemos o mundo. Que uma ou outra possam ser incompletas ou estar
erradas nada mais trivial: somos humanos. Que não saibamos distinguir uma da
outra quer dizer apenas que não aproveitamos o bastante da nossa faculdade de destrinça.
Alexandre Brandão da
Veiga
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