quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Ciência e contra-intuitivo.

Ora bem. Ouçamos o homem da rua. O que lhe vai na mente? Desde Einstein que passámos a saber que o universo era não euclidiano. Uma revolução. O passante não percebe muito bem o que está a dizer, mas não é relevante. O importante é que saibamos uma coisa nova, mesmo que não saibamos o que essa coisa nova é.

Antes «todos» pensavam de uma maneira e veio a relatividade (generalizada, no caso) e veio mostrar-nos outra coisa. Será assim?

Já de há muito se sabe que bastantes matemáticos entendiam que a geometria do nosso mundo podia não ser euclidiana. Gauss assim o achava, do mesmo modo Riemann, Clifford, também Hilbert e Poincaré. A lista podia ser estendida. Mas «as pessoas» não acreditavam nisso. A questão é a de saber o que entendemos por pessoas. «Quem» não achava isso? A resposta é simples: a comunidade científica.

O problema de dizer que antes todos pensavam de uma maneira e foi alguém (no caso, Einstein) quem lhe mudou as ideias é que a comparação é assimétrica. Compara-se um génio, não com outros génios, mas com uma comunidade de gente inteligente e erudita, sem dúvida, mas não forçosamente genial. A comparação está viciada e assenta em equívoco.

O primeiro equívoco ocorre entre os físicos e os matemáticos. Os matemáticos, os geniais, insistem sobre a natureza, pelos menos parcialmente, empírica da geometria. Os físicos, na sua maioria, quando expõem geometria e cinemática, dizem precisamente que estão a falar da parte da física que não depende da experiência.

O segundo equívoco funda-se no conceito. Porque a explicação que surge de várias penas de cientistas é simples: a nova teoria é «contra-intuitiva». E é nesta que nos temos de fixar. Perguntemos, pois: as antigas teorias eram «intuitivas»?

A física de Galileu era «intuitiva»? Galileu explicou a queda dos graves de uma maneira simples: não viu corpos de diferentes pesos cair a velocidades diferentes e daí explicou o fenómeno com a inércia. Ou seja, explicou algo que não viu com outra coisa que não viu. A inércia é «intuitiva»? Não conheço ninguém que ande a passear uma inércia pela trela. A física de Newton é «intuitiva»? Pela lei da gravidade de Newton, se eu levantar um copo e fizer um brinde, perturbei a órbita de Sirius (lei do inverso do quadrado da distância). Que tem isso de «intuitivo»?

A física de Aristóteles está bem longe de ser «intuitiva». Que haja uma coisa chamada acto e outra potência («Física», «Metafisica») nada tem de «intuitivo». Senão Platão teria desenvolvido o tema. Que os objectos caiam no centro da Terra («Física») também não. O conceito é de «lugar natural». Identificar esse lugar natural com o centro da Terra para os objectos pesados nada tem de evidente. Aristóteles nunca viu o centro da Terra, nem viu objectos cair em Marte. Não podia conceber a gravitação universal. Trata-se de um modelo. Que nós estejamos de cabeça para baixo («De Caelo») também nada tem de «intuitivo». Ao contrário do que se pensa, a física aristotélica nada tem de «física de bom senso». Como o movimento aparente das esferas celestes é da direita para a esquerda (como escrita semítica) e o movimento mais nobre é da esquerda para a direita (escrita grega) a única explicação é que estamos de cabeça para baixo. Nada disto é «intuitivo».

O que querem, pois, dizer os cientistas quando falam de «contra-intuitivo»? Em boa verdade, o que querem dizer é «contra a tradição». Uma tradição especializada (dos físicos, v.g.) ou comum, mas uma tradição.

Esclarecendo o «quê» resta explicar o «porquê». Por que razão os cientistas usam o conceito de contra-intuitivo, quando em boa verdade querem falar de tradição? Porque evitam o conceito de tradição? Há para mim duas causas, ambas paradoxais.

Em primeiro lugar o próprio peso na ciência da sua tradição. A tradição da ciência é ver a tradição como algo acrítico, a que a ciência se opõe. A ciência é precisamente o contrário da tradição. A investigação autónoma, crítica, da realidade, sem as peias das tradições. Se o cientista fala em intuição e não em tradição, é porque é precisamente essa a sua… tradição.

Em segundo lugar, por causa do peso da intuição na ciência. Independentemente das escolas de pensamento, e de visões mais ou menos escolásticas da intuição, de se se entende essa intuição como sensível, intelectual ou outra coisa, a verdade é que de uma forma ou de outra, todos os grandes cientistas reservam um lugar à intuição no seu pensamento. Nada vem do nada (daí a tradição), mas nada vem apenas como simples decurso de alguma coisa (daí a intuição). É a sua intuição que cria, e por isso é ela que os obceca. Por isso, quando falam da tradição que visam superar, usam o conceito da intuição.

É evidente. Não é possível destrinçar a intuição da tradição a partir de certo momento. Estão de tal modo interligadas que as suas fronteiras são por vezes muito difusas. Para um polaco, que tem uma língua declinada, a estrutura do latim é mais «intuitiva» que o seu vocabulário. Para um português, que tem uma língua latina, mas analítica, passa-se o inverso. Porque o que é «intuitivo» para uns não o é para outros? Porque em grande medida o que chama de intuitivo nada mais é que uma tradição.

Por isso suspeitemos sempre que alguém fala de intuição ou de contra-intuitivo na ciência. A ciência em si mesma nada tem de «intuitivo». Aliás, nenhum campo da cultura é «intuitivo». Os chineses levaram milhares de anos de civilização e nunca foram capazes de imaginar os teoremas da geometria pura grega. E, no entanto, nada de mais «intuitivo» para nós, mesmo e precisamente quando a queremos superar.

Suspeitemos tanto mais quanto, quando se fala de «contra-intuitivo», se quer mostrar um mundo mágico que viola as nossas regras «habituais». Violam-se assim as nossas tradições, ou a nossa visão das tradições, mas quer-se mostrar que é a própria essência do ser humano que é violentada. Quer-se dar picante, no que deveria ser mais, em boa verdade, fundante e entusiasmante.

Sem tradição e sem intuição não percebemos o mundo. Que uma ou outra possam ser incompletas ou estar erradas nada mais trivial: somos humanos. Que não saibamos distinguir uma da outra quer dizer apenas que não aproveitamos o bastante da nossa faculdade de destrinça.



Alexandre Brandão da Veiga

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