quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Ciência e protestantismo






Toda a pessoa com cultura distraída conhece a ideia de Max Weber que liga o desenvolvimento da ciência ao protestantismo. Os países protestantes seriam mais desenvolvidos na ciência que os católicos. É um dito de espírito, um modelo bem pensado, mas a questão é que tem duas falhas: revela contradicções e não é verdadeiro.



Revela contradicções. São precisamente os mesmos que dizem que não há nenhuma relação entre a ciência e a religião que alegremente debitam a ligação que existe entre a ciência e o protestantismo. É curiosa esta contradicção. No fundo, o que enunciam é uma outra verdade: a de que consideram que a única religião verdadeiramente religião é o catolicismo. O protestantismo é para eles uma libertação da verdadeira religião, um passo na direcção «certa». O que parecia ser de origem uma observação epistemológica, é afinal antropológica, e em suma, autobiográfica. Falam sobre eles e não sobre a ciência.



Mas não é verdadeiro. Os países católicos produziram ciência em todas as épocas da revolução cientifica.



Em primeiro lugar, logo no início da revolução científica. Ainda em pleno século XV e XVI. Vejamos as ciências da vida. Fuchs, luterano, ensina na católica Munique. Valerius Cordes, protestante, investiga em Itália, acabando por morrer em Roma. Joachim Camerarius, protestante, estuda na católica Bolonha. Pierre Belon estuda medicina em Wittenberg, onde se mantém estanque ao protestantismo. William Turner, um anglicano, estuda na católica Itália. Pieter Paauw, um protestante, estuda na católica Lovaina. James Primrose, um escocês nascido em França, estuda em Montpellier. O protestante inglês Caius estuda medicina em Pádua desde 1539. Charles de l’Écluse, protestante, vem a Espanha e a Portugal em estudo no século XVI (também a Viena, embora, como centro de um império híbrido sob o ponto de vista religioso, isso fosse mais evidente). William Turner, protestante inglês, refugia-se em Ferrara no século XVI. Joachim Jung, nascido em Lübeck, recebe em 1618 em Pádua o grau de doutor.

Se tantos protestantes estudam na católica Itália isso talvez queira dizer que não estava tão atrasada nas ciências quanto se diz. Mostra igualmente que as guerras de religião nunca impediram que a Europa funcionasse como um todo.

Na filologia mesmo no início da Reforma o protestante Spalatinus procura o católico impressor Aldo Manúcio. Na matemática são os católicos Cardan ou Trataglia que dominam o campo. Na astronomia o católico Copérnico tem alguma relevância.

No século XVII Galileu, Descartes (que nunca abandonou a fé católica, e bem o podia ter feito tendo vivido em países protestantes), Pascal, são bons exemplos de cientistas não totalmente irrelevantes que foram católicos. O arcebispo de Spalato Antonius de Dominis publicou no início do século XVII em Veneza obra sobre óptica que antecipa Newton (e este reconhece-o), tendo sido um dos pioneiros do método científico.

No século XVIII a França e a Itália produziram cientistas com algum relevo, apesar de tudo. Cassini e Volta seriam bons exemplos. E um clérigo como o padre Boscovich é um dos que define o que é a física do fim do século XVIII.

No século XIX, o muito católico Pasteur, os muito católicos Cauchy, Hermite e Camille Jourdain dizem algo sobre a importância de países católicos na ciência. No início do século XIX a França é a maior potência na física e na matemática, e uma das maiores na química e nas ciências da vida. A Itália tem na matemática mais interessentes exemplos que a Inglaterra da mesma altura, Volterra, Beltrami, e mais tarde Ricci Curbastro, Levi-Cività, Peano. Ao longo do século XIX os ingleses queixaram-se do seu atraso em relação à matemática e física alemãs, mas também francesas e italianas.

No século XX a Itália e a França ainda podem apresentar exemplos de glórias científicas na matemática e na física, na química e nas ciências da vida. A França domina o estudo da pré-história com o padre Breuil, a paleoantropologia tem Teilhard de Chardin.

Se bem se reparar dei exemplos de protestantes que estudam em países católicos, de pessoas ligadas ao catolicismo das mais diversas maneiras, desde padres a judeus. Não quis mostrar aqui a imensa importância que tiveram clérigos no estudo das ciências até à época contemporânea, nem estabelecer uma relação entre catolicismo e ciência.

O que tentei fazer é apenas uma demonstração negativa. É que, ao contrário do que se diz, não há uma ligação directa entre protestantismo e desenvolvimento científico. A Alemanha, que propositadamente é aqui esquecida, é um país que está bem longe de ser puramente protestante. Durante o II Reich todo o Sul da Alemanha é católico. E não deixou de participar da aventura científica alemã por causa disso. A destrinça entre cientistas do Sul da Alemanha, e, de entre os alemães em geral, os que são católicos ou não, levaria muito tempo. A Holanda igualmente é um país onde cerca de metade da população é católica e seria necessário destrinçar católicos de protestantes. A muito laica França do fim do século XIX deveria ser mais bem investigada, porque sob a capa laica se escondem crentes profundos ou nostálgicos da crença (Poincaré é um dos últimos). A católica Hungria, que deu génios na matemática em grande número foi também esquecida, mas também a muito católica Polónia que deu no século XX a mais consistente em escola da lógica matemática. A católica Áustria deu contributos não irrelevantes para a física e a biologia. A ortodoxa Rússia não é igualmente aqui referida, quando ao longo do século XIX revelou génios em todas as ciências.

Fica-nos apenas a lição. Aceitar que existe uma ligação especial entre protestantismo   e ciência mostra que afinal se dá relevância à relação entre ciência e religião. Mas de um modo duplamente pouco saudável: de forma escondida e de forma injusta.



Alexandre Brandão da Veiga

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