Ciência e protestantismo
Toda a pessoa com cultura
distraída conhece a ideia de Max Weber que liga o desenvolvimento da ciência ao
protestantismo. Os países protestantes seriam mais desenvolvidos na ciência que
os católicos. É um dito de espírito, um modelo bem pensado, mas a questão é que
tem duas falhas: revela contradicções e não é verdadeiro.
Revela contradicções. São
precisamente os mesmos que dizem que não há nenhuma relação entre a ciência e a
religião que alegremente debitam a ligação que existe entre a ciência e o protestantismo.
É curiosa esta contradicção. No fundo, o que enunciam é uma outra verdade: a de
que consideram que a única religião verdadeiramente religião é o catolicismo. O
protestantismo é para eles uma libertação da verdadeira religião, um passo na direcção
«certa». O que parecia ser de origem uma observação epistemológica, é afinal antropológica,
e em suma, autobiográfica. Falam sobre eles e não sobre a ciência.
Mas não é verdadeiro. Os países
católicos produziram ciência em todas as épocas da revolução cientifica.
Em primeiro lugar, logo
no início da revolução científica. Ainda em pleno século XV e XVI. Vejamos as
ciências da vida. Fuchs, luterano, ensina na católica Munique. Valerius Cordes,
protestante, investiga em Itália, acabando por morrer em Roma. Joachim
Camerarius, protestante, estuda na católica Bolonha. Pierre Belon estuda
medicina em Wittenberg, onde se mantém estanque ao protestantismo. William
Turner, um anglicano, estuda na católica Itália. Pieter Paauw, um protestante,
estuda na católica Lovaina. James Primrose, um escocês nascido em França,
estuda em Montpellier. O protestante inglês Caius estuda medicina em Pádua
desde 1539. Charles de l’Écluse, protestante, vem a Espanha e a Portugal em
estudo no século XVI (também a Viena, embora, como centro de um império híbrido
sob o ponto de vista religioso, isso fosse mais evidente). William Turner,
protestante inglês, refugia-se em Ferrara no século XVI. Joachim Jung, nascido
em Lübeck, recebe em 1618 em Pádua o grau de doutor.
Se tantos protestantes estudam
na católica Itália isso talvez queira dizer que não estava tão atrasada nas ciências
quanto se diz. Mostra igualmente que as guerras de religião nunca impediram que
a Europa funcionasse como um todo.
Na filologia mesmo no
início da Reforma o protestante Spalatinus procura o católico impressor Aldo
Manúcio. Na matemática são os católicos Cardan ou Trataglia que dominam o
campo. Na astronomia o católico Copérnico tem alguma relevância.
No século XVII Galileu,
Descartes (que nunca abandonou a fé católica, e bem o podia ter feito tendo
vivido em países protestantes), Pascal, são bons exemplos de cientistas não
totalmente irrelevantes que foram católicos. O arcebispo de Spalato Antonius de
Dominis publicou no início do século XVII em Veneza obra sobre óptica que
antecipa Newton (e este reconhece-o), tendo sido um dos pioneiros do método
científico.
No século XVIII a França
e a Itália produziram cientistas com algum relevo, apesar de tudo. Cassini e
Volta seriam bons exemplos. E um clérigo como o padre Boscovich é um dos que
define o que é a física do fim do século XVIII.
No século XIX, o muito católico
Pasteur, os muito católicos Cauchy, Hermite e Camille Jourdain dizem algo sobre
a importância de países católicos na ciência. No início do século XIX a França
é a maior potência na física e na matemática, e uma das maiores na química e nas
ciências da vida. A Itália tem na matemática mais interessentes exemplos que a Inglaterra
da mesma altura, Volterra, Beltrami, e mais tarde Ricci Curbastro, Levi-Cività,
Peano. Ao longo do século XIX os ingleses queixaram-se do seu atraso em relação
à matemática e física alemãs, mas também francesas e italianas.
No século XX a Itália e a
França ainda podem apresentar exemplos de glórias científicas na matemática e
na física, na química e nas ciências da vida. A França domina o estudo da pré-história
com o padre Breuil, a paleoantropologia tem Teilhard de Chardin.
Se bem se reparar dei exemplos
de protestantes que estudam em países católicos, de pessoas ligadas ao
catolicismo das mais diversas maneiras, desde padres a judeus. Não quis mostrar
aqui a imensa importância que tiveram clérigos no estudo das ciências até à época
contemporânea, nem estabelecer uma relação entre catolicismo e ciência.
O que tentei fazer é
apenas uma demonstração negativa. É que, ao contrário do que se diz, não há uma
ligação directa entre protestantismo e desenvolvimento científico. A Alemanha,
que propositadamente é aqui esquecida, é um país que está bem longe de ser puramente
protestante. Durante o II Reich todo o Sul da Alemanha é católico. E não deixou
de participar da aventura científica alemã por causa disso. A destrinça entre cientistas
do Sul da Alemanha, e, de entre os alemães em geral, os que são católicos ou não,
levaria muito tempo. A Holanda igualmente é um país onde cerca de metade da população
é católica e seria necessário destrinçar católicos de protestantes. A muito
laica França do fim do século XIX deveria ser mais bem investigada, porque sob a
capa laica se escondem crentes profundos ou nostálgicos da crença (Poincaré é
um dos últimos). A católica Hungria, que deu génios na matemática em grande número
foi também esquecida, mas também a muito católica Polónia que deu no século XX
a mais consistente em escola da lógica matemática. A católica Áustria deu contributos
não irrelevantes para a física e a biologia. A ortodoxa Rússia não é igualmente
aqui referida, quando ao longo do século XIX revelou génios em todas as ciências.
Fica-nos apenas a lição. Aceitar
que existe uma ligação especial entre protestantismo e ciência
mostra que afinal se dá relevância à relação entre ciência e religião. Mas de um
modo duplamente pouco saudável: de forma escondida e de forma injusta.
Alexandre Brandão da Veiga
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