STABAT Mater
STABAT Mater dolorosa
iuxta Crucem lacrimosa,
dum pendebat Filius.
Quando medimos a grandeza de uma civilização temos de medir aos sues picos mais altos, mas igualmente a sua capacidade de reelaborar os dados de base. Que um evento do séc. I contado nesse mesmo século e no século seguinte dê uma poesia no século XIII, inspire uma música no século XVIII e audições no XXI é-nos tão trivial que esquecemos o que este mecanismo de transmissão tem tudo menos de evidente.
Que Pergolesi se tivesse deixado inspirar por este hino não é de espantar, se tivermos em conta a sua beleza. Que esta se tenha preservado numa cultura tantos séculos, viva o suficiente para meio milénio depois de ser feito ainda tocasse um músico, é que é de espantar.
O primeiro elemento, muito esquecido, é o da permanência da literatura em língua latina por mais de 1000 anos após a tão batida queda do império romano. Quando e diz que a língua latina é morta cada um sabe se fala da sua. Viva o bastante para inspirar obras-primas na musica.
Mas viva o suficiente para inspirar obras-primas na literatura também. Quando se fala na novidade do realismo como movimento, tendemos a esquecer-nos de que os seus instrumentos são seculares.
Stabat. Em bom latim dir-se-ia “erat”. E de boa forma se traduziria por “estava”. Mas em latim “stabat” tem um significado mais preciso, que um autor de poesia latina não ignorava. Não foi por isso por evolução semântica que teria usado um verbo incorrectamente. Sabia bem que verbo estava a usar: “stare” significa estar de pé, firme, assente, sólido. O seu parentesco com estável, estaca é evidente. De quem se fala estava bem ancorada no solo, firme, plenamente segura do que fazia, o seu corpo obedecia-lhe, não fraquejava exteriormente.
E quem estava? Uma “mater”. Não que as religiões não tivessem já falado de mães de deuses, ou do sofrimento de Cibele, nem a tristeza que invadia quem perdia os seus nas histórias divinas. Mas é de uma mãe concreta que se trata. Uma e só uma. Aquela, aquela que efectivamente viveu o que viveu, e por isso única, e exemplo para as outras.
Dolorosa. É um dos lugares comuns falar-se do dolorismo do cristianismo, e sobretudo do catolicismo. Uma civilização que criou oi Carnaval, o gótico e o barroco está bem longe de ser dolorista. A síntese histórica em mão de cavador é natural que cheire a grão de terra. Em vez de os terem nas mãos têm-no nos pés. Por isso é natural que análise pareça sempre feita com os pés. Dolorosa porque a vida na sua intensidade máxima tem também momentos de dor profunda, insuportável. Nada é esquecido, nada é poupado a uma vida plena. É sabido que o dogma da assunção, que Jugie analisou com grande profundidade e beleza é neutro em relação à morte de Maria. Não se pronuncia sobre ela. Por isso e morte de compaixão à frente da cruz é aceite por muita teologia. Sofrer pelo outro ao ponto de ter morte na alma é expressão de diferenciação sentimental bem maior que o da ataraxia estóica. Não se foge à vida. Deixa-se-a fluir plenamente em nós.
Uxta crucem. Onde está esta Mãe? Ao pé da cruz. É natural que não dê pulos de contentamento. É natural que não seja esse o momento de bodas ou alegria. Não padeceu da cruz directamente, mas da forma indirecta mais profunda. É a tese da com-paixão de Nossa Senhora, que muitos teólogos entenderam como o martírio de Maria, o seu verdadeiro martírio e não um legendário que gerasse a sua morte. Co-redemptora em com-paixão.
Lacrimosa. E eis que chora. Não é uma mãe de plástico. Toda divertida por saber que o seu Filho afinal vai estar bem. Ao contrário das crenças muçulmanas, que vem de algumas heresias gnóstica, acreditando que na cruz apenas estava um simulacro de homem, estava um homem pleno na cruz. E em vez de uma impassibilidade estóica, que poderia ser a única fundante da civilização cristã, entra em jogo pela primeira vez, e de forma nobilitada, uma expressão essencial do sentimento humano: a lágrima.
Dum pendebat. Não é em qualquer momento que esta mãe é vista. É num momento concreto. Enquanto alguém pendia na cruz. Na perspectiva do eu poético somos obrigada a vê-la enquanto ela vê alguém. Sob o ponto de vista da criação de situações, esta mostra arte bem complexa. Não é para o crucificado que olhamos, mas para a mãe, que por sua vez vê alguém. Somos obrigados a focar a nossa atenção, como num filme, para uma só pessoa, para percebermos indirectamente a sua situação. Não se olha para o crucificado, mas para quem O olha.
Filius. Não é qualquer um que está a ser visto pela mãe. É o seu próprio Filho. E eis que a coisa se revela em toda a sua veracidade e pertinência. Que houvesse relações filiais parte de histórias divinas já se sabia. Que estas se passassem na terra, também temos muitos exemplos na mitologia. Que o sentimento da Mãe que perde o Filho seja presente, também se sabia. Cidipe chora pelos seus filhos, presume-se. Não são apenas deusas que o fazem. Mas que duas pessoas humanas, plenamente humanas vivam a mais humana e terrível das situações, e que seja essa humanidade a revelar o plano divino para o mundo, essa é a novidade.
A poesia neolatina não é um conjunto de artificialidades de corte. Que o Império Romano tenha acabado com data certa e encerramento de contas é mito constitutivo da Europa, mas em boa verdade mito. Com tudo o que isso tem de pertinente, mas de falseador também. Não é por vontade de erudição que se verte em latim um dos momentos mais relevantes da História da humanidade. Procura-se a universalidade? É bem provável. Procura-se a língua sagrada? Admitamo-lo. Mas encontra-se sobretudo o que é a língua natural da vida intensa, bem mais que o vernáculo na época. Não é por necessidade tabular que se latiniza. É por inevitabilidade vital. Latim, Idade Média e cristianismo apenas são realidades menores para quem não as viu. O turista distraído prefere o sorvete tanto ao pequeno episódio que se passa à sua frente quanto ao grande monumento que o constituiu. O maior e o mais pequeno são-lhe estranhos. Apenas vive com base no directo, o imediato, o mediano. Que um facto tão irrelevante (Tibério soube algum dia desta crucifixão?) seja afinal o mais importante é categoria estranha para o turista. Mas para ele é sempre estranho o que é relevante.
http://www.youtube.com/watch?v=mNt13Vw-K6Q
http://www.preces-latinae.org/thesaurus/BVM/SMDolorosa.html
http://www.stabatmater.info/
http://www.lastfm.com.br/music/Giovanni+Battista+Pergolesi/_/Stabat+mater+dolorosa
http://www.wf-f.org/Sorrows.html
http://campus.udayton.edu/mary/resources/poetry/stbmat.html
Alexandre Brandão da Veiga
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