terça-feira, 6 de julho de 2010

Inglaterra e Turquia

É bem sabido que a Inglaterra é desde sempre, juntamente com os Estados Unidos, o mais fervoroso adepto da adesão turca à União Europeia. É sabido, e assumido pela Inglaterra, pública, oficial e recorrentemente. A mesma Inglaterra que não quis nunca uma união política e nunca foi criadora da integração europeia.

É bem conhecido o episódio em que a senhora Thatcher (baronesa, corrijo, mas não senhora; a Inglaterra tem isto de maravilhoso, que é o de a manter como low middle class por mais baronizada que tenha sido) quis a adesão imediata de todos os países da Europa central à União Europeia logo a seguir à queda do muro de Berlim. Os interessados desdenharam a oferta porque bem sabem o vale a generosidade de oferecer aquilo que é sobretudo dos outros. As intenções de dissolução da União Europeia num mero mercado são bem conhecidas, e mais uma vez, embora mais discretamente, assumidas.

Que a Inglaterra tenha interesse em impedir o aprofundamento da União, ou melhor que tenha essa vontade, é de seu direito. Cada povo escolhe da sua vida. Posso achar que são pouco lúcidos quanto aos seus próprios interesses, mas não nego a legitimidade de tal decisão.

O que tem de ser analisado é porque razão a Inglaterra tanto quer a adesão turca, o que espera ganhar com ela, e o que efectivamente ganhará.

A Inglaterra não tem um passado de especial ligação à Turquia. A presença francesa e sobretudo alemã na Turquia é bem mais forte. A Turquia deve à Alemanha grande parte do seu Direito, a estruturação do seu exército (e exército e identidade turca estão correlatas desde há quase um século), a modernização tecnológica. A maior comunidade turca no estrangeiro está na Alemanha e daí vem uma das mais preciosas fontes de divisas para a Turquia. A Alemanha é dos principais parceiros económicos da Turquia, senão mesmo o maior. Da França a Turquia recebeu uma certa versão do pensamento laico, ao mesmo tempo que os restantes países turcófonos da Ásia Central, embora sob a forma cesaropapista do “turquificar, islamizar, europeizar”, válida para todo o Turquestão. Se a língua inglesa tem peso na Turquia é por via americana e não britânica. E se tipicamente a Inglaterra é o segundo mercado da exportação da Turquia sob o ponto de vista da importação é pouco representativa.

Porque insiste a Inglaterra então nesta adesão? Porque lhe dá tanta importância? Em primeiro lugar joga um factor de pura mentalidade. A Inglaterra, não menos que os outros países, está formada pela Guerra-fria, que distorceu a auto-imagem da Europa. A imagem da Europa é a da Europa NATO, entidade que nasceu de uma tara, uma divisão artificial da Europa e que, de bom penso, tem acumulado ao longo dos anos o pus da sua malsã origem.

Em segundo lugar porque sabe que, entrando a Turquia, nunca haverá união política. E que qualquer aprofundamento da União será muitíssimo mais difícil. Uma União implica sacrifícios, mesmo que os ganhos de longo prazo os justifiquem. E nem a Turquia quer a União Política, nem as outras populações europeias a quererão caso a Turquia entre. Dissolver aumentando é o moto britânico, e assim pretende fazer também com a adesão turca.

Em terceiro lugar, porque pensa que, sendo paladino da adesão turca, terá na Turquia um fiel aliado. Em quarto, porque não tendo a forte imigração turca ao contrário da Alemanha, pensa que o preço desta imigração incidirá sobretudo na Europa continental e não nas suas fronteiras (recentemente o governo britânico já deu a entender que mesmo em relação à Roménia e à Bulgária não terá a generosidade de regime migratório que mostrou em relação aos restantes novos aderentes, o que não faria com uma adesão turca?). Em quinto, porque pensa que reforçará a dimensão NATO da Europa, aproximando-a mais da sua visão europeia. Finalmente, porque projecta no plano internacional a sua política interna multicultural.
Resta saber se a Inglaterra ganhará alguma coisa a longo prazo com esta adesão, se a sua aposta é ganhadora.

Em primeiro lugar os padrões da Guerra-fria desapareceram. E quando o substrato desaparece a mentalidade pode teimar em inércia de movimento mas vai perdendo cada vez mais a sua base. Pode durar muito mais que o seu fundamento, mas não durará perenemente para além dele. Por isso, uma Europa formada sob os padrões NATO está condenada a desaparecer. Mesmo que se queiram manter artificialmente hostilidades com a Rússia estas são insustentáveis a longo prazo. Mesmo para os que não gostam, a Rússia é um parceiro importante e sê-lo-á cada vez mais. Ou seja, a imagem sob que se baseia a sua decisão é a de um mundo em retrocesso.

Em segundo lugar tem razão que com a adesão turca nunca haverá real aprofundamento da União. O paradoxo britânico é que precisa de uma União estável. Cada vez mais irrelevante para os Estados Unidos pela a sua dimensão e força estratégica a importância do Reino Unido depende cada vez mais da importância da União Europeia. Uma União instável, com fracturas internas, torna a Inglaterra cada vez mais irrelevante como país.

O terceiro aspecto é aposta fraca. Duvidosamente a Turquia poderia ser aliado perene da Inglaterra. É evidente que teriam interesses comuns. Seriam os dois extremos da União, e ambos com interesse em que esta não seja uma união política. Mas a Inglaterra tem interesse numa política social e estrutural pouco custosa: exactamente o oposto dos interesses turcos. Dificilmente se veria a Turquia como paladina do liberalismo económico. A Turquia tem interesse na dimensão militar da Europa, exactamente o oposto do interesse britânico. Além do mais os turcos bem sabem que o apoio britânico não se baseia numa particular simpatia pela Turquia mas numa antipatia pela Europa. E bem conhecem o desprezo britânico pelos turcos (“se Portugal e a Hungria entraram, os turcos podem entrar”, ouvi muitas vezes). Os ingleses não podem esperar gratidão turca. As populações turcas desprezam os ingleses como lacaios dos americanos bem mais que o europeu continental, que sente afinidades de civilização com os britânicos. A Turquia dificilmente teria aliados europeus estáveis, obrigando a Europa a dirigir os seus interesses para o Médio Oriente e para a Ásia central. E se a Inglaterra tem interesses nessa zona o centro de gravidade da Europa ficaria mais a Leste. Seria, pelo menos a longo prazo, o país mais reivindicativo de fundos estruturais, que a Inglaterra não está disposta a dar. Os conflitos financeiros seriam um dos pontos de fractura perene da Inglaterra e a Turquia. Além disso a regra tem sido a de as alianças serem moldáveis. A Turquia estaria mais próxima da França na sua concepção de Estado, da Alemanha na sua dimensão e relações económicas, dos Balcãs na proximidade geográfica, dos países da Europa mediterrânica quanto ao grau de desenvolvimento.

Em quarto lugar, a Inglaterra já não pode contar com a constância dos fluxos migratórios tradicionais. Sendo conhecido como país de mais flexível mercado de trabalho e com menos exigências de integração (apesar das novas leis de imigração terem endurecido, estas não seriam aplicáveis a futuros cidadãos comunitários), a Inglaterra seria um dos pontos principais de chegada das novas imigrações turcas. E numa população que está cada vez mais cansada do modelo multicultural (a Inglaterra dar-nos-á surpresas nesta matéria no futuro), é a própria estabilidade interna que estará em jogo.

Além do mais terá de arbitrar entre alianças cada vez mais contraditórias, entre os países da Europa central e a Turquia. A visão NATO da Europa mostrará aí mais um dos seus campos de falência. Para países em que a experiência multicultural foi a de serem dominados e não dominadores a adesão turca será, não apenas concorrencial sob o ponto de vista dos fundos, mas sobretudo contraditória com o seu sonho de Europa.
E para finalizar, a Turquia retirará importância estratégica à Inglaterra. Sempre que os Estados Unidos quiserem uma Europa mais unida, não é com a Inglaterra que contam. Ford ligou-se a Giscard e Schmidt. Sempre que quiserem desestabilizar a Europa, a Turquia fará bem melhor papel. De boa ou má vontade, o peso da Turquia junto dos Estados Unidos aumentará a expensas da Inglaterra.

Alguns americanos começam a perceber mais depressa que os ingleses o erro da aposta turca. É natural que quem está à frente veja mais coisas. O problema é que se a inversão da política americana nesta matéria, a ocorrer, poderá ser tardia, a da Inglaterra poderá sê-lo de forma desastrosa.

São os ingleses estúpidos e não percebem que esta política lhes é desvantajosa? - Adivinho a pergunta. Duvido. Mas pior que a estupidez é a cegueira e a força de inércia. Os atenienses não eram estúpidos, mas deixaram que a inércia das suas rivalidades abrisse caminho para Filipe. O pior cego é o que não quer ver. Sobretudo numa época em que se quer pôr pedras nas bocas em Demóstenes que delas não carecem.


Alexandre Brandão da Veiga



1 comentários:

miguel vaz serra..... disse...

Sei que quando diz Inglaterra quer dizer Reino Unido e acho muito interessante tudo o que diz.
Vivi uma década no Reino Unido, na nação Inglesa por acaso, e conheço bem aquele povo. Os interesses são muitos e Escoceses, Galeses, Ingleses e Irlandeses, comungam dos mesmos interesses em relação á Turquia.
Primeiro porque é a porta legal ao mundo Árabe e depois porque tendo a Turquia na mão, a Alemanha está mais controlada visto ser a segunda Turquia. Algo assim como o Luxemburgo é uma sucursal lusa.
Os britânicos têm uma minoria muito imperialista que são os Ingleses. Mataram Rainhas, assassinaram Reis, para se apoderarem dos reinos a norte, já que a Bretanha preferiu ser Galesa, mas o espírito nacionalista das outras nações está vivo e bem vivo.
Nunca se chame a um Britânico, Inglês, sem saber se realmente o é. Pode ser um insulto....