segunda-feira, 19 de julho de 2010

STABAT Mater







STABAT Mater dolorosa
iuxta Crucem lacrimosa,
dum pendebat Filius.

Quando medimos a grandeza de uma civilização temos de medir aos sues picos mais altos, mas igualmente a sua capacidade de reelaborar os dados de base. Que um evento do séc. I contado nesse mesmo século e no século seguinte dê uma poesia no século XIII, inspire uma música no século XVIII e audições no XXI é-nos tão trivial que esquecemos o que este mecanismo de transmissão tem tudo menos de evidente.

Que Pergolesi se tivesse deixado inspirar por este hino não é de espantar, se tivermos em conta a sua beleza. Que esta se tenha preservado numa cultura tantos séculos, viva o suficiente para meio milénio depois de ser feito ainda tocasse um músico, é que é de espantar.

O primeiro elemento, muito esquecido, é o da permanência da literatura em língua latina por mais de 1000 anos após a tão batida queda do império romano. Quando e diz que a língua latina é morta cada um sabe se fala da sua. Viva o bastante para inspirar obras-primas na musica.

Mas viva o suficiente para inspirar obras-primas na literatura também. Quando se fala na novidade do realismo como movimento, tendemos a esquecer-nos de que os seus instrumentos são seculares.

Stabat. Em bom latim dir-se-ia “erat”. E de boa forma se traduziria por “estava”. Mas em latim “stabat” tem um significado mais preciso, que um autor de poesia latina não ignorava. Não foi por isso por evolução semântica que teria usado um verbo incorrectamente. Sabia bem que verbo estava a usar: “stare” significa estar de pé, firme, assente, sólido. O seu parentesco com estável, estaca é evidente. De quem se fala estava bem ancorada no solo, firme, plenamente segura do que fazia, o seu corpo obedecia-lhe, não fraquejava exteriormente.

E quem estava? Uma “mater”. Não que as religiões não tivessem já falado de mães de deuses, ou do sofrimento de Cibele, nem a tristeza que invadia quem perdia os seus nas histórias divinas. Mas é de uma mãe concreta que se trata. Uma e só uma. Aquela, aquela que efectivamente viveu o que viveu, e por isso única, e exemplo para as outras.

Dolorosa. É um dos lugares comuns falar-se do dolorismo do cristianismo, e sobretudo do catolicismo. Uma civilização que criou oi Carnaval, o gótico e o barroco está bem longe de ser dolorista. A síntese histórica em mão de cavador é natural que cheire a grão de terra. Em vez de os terem nas mãos têm-no nos pés. Por isso é natural que análise pareça sempre feita com os pés. Dolorosa porque a vida na sua intensidade máxima tem também momentos de dor profunda, insuportável. Nada é esquecido, nada é poupado a uma vida plena. É sabido que o dogma da assunção, que Jugie analisou com grande profundidade e beleza é neutro em relação à morte de Maria. Não se pronuncia sobre ela. Por isso e morte de compaixão à frente da cruz é aceite por muita teologia. Sofrer pelo outro ao ponto de ter morte na alma é expressão de diferenciação sentimental bem maior que o da ataraxia estóica. Não se foge à vida. Deixa-se-a fluir plenamente em nós.

Uxta crucem. Onde está esta Mãe? Ao pé da cruz. É natural que não dê pulos de contentamento. É natural que não seja esse o momento de bodas ou alegria. Não padeceu da cruz directamente, mas da forma indirecta mais profunda. É a tese da com-paixão de Nossa Senhora, que muitos teólogos entenderam como o martírio de Maria, o seu verdadeiro martírio e não um legendário que gerasse a sua morte. Co-redemptora em com-paixão.

Lacrimosa. E eis que chora. Não é uma mãe de plástico. Toda divertida por saber que o seu Filho afinal vai estar bem. Ao contrário das crenças muçulmanas, que vem de algumas heresias gnóstica, acreditando que na cruz apenas estava um simulacro de homem, estava um homem pleno na cruz. E em vez de uma impassibilidade estóica, que poderia ser a única fundante da civilização cristã, entra em jogo pela primeira vez, e de forma nobilitada, uma expressão essencial do sentimento humano: a lágrima.

Dum pendebat. Não é em qualquer momento que esta mãe é vista. É num momento concreto. Enquanto alguém pendia na cruz. Na perspectiva do eu poético somos obrigada a vê-la enquanto ela vê alguém. Sob o ponto de vista da criação de situações, esta mostra arte bem complexa. Não é para o crucificado que olhamos, mas para a mãe, que por sua vez vê alguém. Somos obrigados a focar a nossa atenção, como num filme, para uma só pessoa, para percebermos indirectamente a sua situação. Não se olha para o crucificado, mas para quem O olha.

Filius. Não é qualquer um que está a ser visto pela mãe. É o seu próprio Filho. E eis que a coisa se revela em toda a sua veracidade e pertinência. Que houvesse relações filiais parte de histórias divinas já se sabia. Que estas se passassem na terra, também temos muitos exemplos na mitologia. Que o sentimento da Mãe que perde o Filho seja presente, também se sabia. Cidipe chora pelos seus filhos, presume-se. Não são apenas deusas que o fazem. Mas que duas pessoas humanas, plenamente humanas vivam a mais humana e terrível das situações, e que seja essa humanidade a revelar o plano divino para o mundo, essa é a novidade.

A poesia neolatina não é um conjunto de artificialidades de corte. Que o Império Romano tenha acabado com data certa e encerramento de contas é mito constitutivo da Europa, mas em boa verdade mito. Com tudo o que isso tem de pertinente, mas de falseador também. Não é por vontade de erudição que se verte em latim um dos momentos mais relevantes da História da humanidade. Procura-se a universalidade? É bem provável. Procura-se a língua sagrada? Admitamo-lo. Mas encontra-se sobretudo o que é a língua natural da vida intensa, bem mais que o vernáculo na época. Não é por necessidade tabular que se latiniza. É por inevitabilidade vital. Latim, Idade Média e cristianismo apenas são realidades menores para quem não as viu. O turista distraído prefere o sorvete tanto ao pequeno episódio que se passa à sua frente quanto ao grande monumento que o constituiu. O maior e o mais pequeno são-lhe estranhos. Apenas vive com base no directo, o imediato, o mediano. Que um facto tão irrelevante (Tibério soube algum dia desta crucifixão?) seja afinal o mais importante é categoria estranha para o turista. Mas para ele é sempre estranho o que é relevante.



http://www.youtube.com/watch?v=mNt13Vw-K6Q
http://www.preces-latinae.org/thesaurus/BVM/SMDolorosa.html
http://www.stabatmater.info/
http://www.lastfm.com.br/music/Giovanni+Battista+Pergolesi/_/Stabat+mater+dolorosa
http://www.wf-f.org/Sorrows.html
http://campus.udayton.edu/mary/resources/poetry/stbmat.html


Alexandre Brandão da Veiga

4 comentários:

joão wemans disse...

Gostei muito de ler esta reflexão sobre a nossa Mãe do Céu e o seu sofrimento, sobre a nossa civilização; sobre a capacidade de transmissão e de duração que lhe são próprias.
- Assim se vai contribuindo para que não nos tornemos num "museu do cristianismo".

Táxi Pluvioso disse...

A ida de Nixon à China também deu uma Ópera e estou convencido que inspirará mais no futuro. E também Alberto Gonzales inspirou uma cantata, e David Kelly uma Ópera, só de 15 minutos, mas Ópera. bfds

miguel vaz serra....... disse...

Tudo neste mundo necessita uma "mãe".Até pode ser homem, não importa o sexo. São anjos, certo? Pois os anjos, já sabemos...não têm sexo.
Humanos, animais ainda mais irracionais que nós, pobres arrogantes da nossa pretensiosa inteligência, e até cidades, necessitamos “mãe”.
Cascais por exemplo…Há muito tempo que não ia a Cascais com olhos de ver. Ficar lá a dormir. Passear durante o dia e noite. Só indo a pé a todo o lado se pode ver como está uma cidade. Parei o carro bem lá em cima perto da Gasolineira do Jumbo, onde a gasolina é a 1,29eu para quem ainda não saiba e cometa o pecado mortal de dar um tostão à Galp e andei sempre a pé durante 4 dias. Fui até a Azarujinha depois do Estoril a pé. Andei por todo o lado. Descobri que o famoso Piela’s Bar é agora uma loja de colchões. Que o Cinema mesmo ao lado já não existe e que Cascais tem mais de 50 casas, lindas, senhoriais algumas, outras dos anos 40,50 e 60, todas a cair aos bocados. Os jardins metem medo, já não têm janelas algumas, outras estão com tijolos a tapar as portas…Imensas…por toda a cidade. Fiquei…fiquei chocado(íssimo). Até aquela casa imensa mesmo em cima da praia ao lado da Estação de Comboios que eu lembro ter sido recuperada há uns anos, está abandonada, janelas partidas, madeiras podres, jardim medonho. Duas casas antigas mesmo ao lado do Supermercado Jumbo estão a cair aos bocados. Lindas…Os estrangeiros tiram fotografias e eu pergunto, para quê isso? Resposta: porque viemos há 30 anos e era tudo lindo…
Depois o HORROR. Vou a andar pelo “passeio marítimo” e vejo que no sítio do famoso e cheio de história Hotel Estoril Sol, está o mais horrendo mamarracho que jamais um arquitecto poderia ou deveria parir. Parecem caixas de vidro, nojentas, pornográficas e que estragam a harmonia de todo o ambiente que por exemplo o Hotel ao lado tentou manter. É um horror. Enormes caixas em cima umas das outras, tudo em ferro preto, feio, grande, disforme, chocante. Não há ninguém, portuga ou bife que não aponte e diga “que horror!!!”
Quem deixou fazer aquilo???? desculpe? não entendi!? Quem? Quem atirou o Hotel abaixo porque era grande demais e feio e enorme para fazer ou deixar fazer aquele monstro??? Mais uma vez…desculpem, mas não entendo o nome…Quem?????????
Façam um favor a Cascais. Façam o que eu fiz. Vão, fiquem a dormir uns dias. Passeiem bem pela cidade, por todas as ruas, todas. Passem pelo velho Hospital…..(outra coisa para escrever muito sobre ) e depois escrevam o que viram ou melhor,…o que sentiram…Eu estou em estado de choque!
Cascais necessita “mãe”.

oH brandÃo disse...
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