domingo, 26 de outubro de 2008

O nosso problema

O debate entre a Sofia e o Manuel deixa-nos num impasse. Como poderão ambos ter razão se entre eles parece estabelecer-se uma oposição ainda que metodológica? A Sofia expôs uma tese: a de que o governo actual manipula e condiciona a televisão pública. O Manuel relativiza a tese afirmando com exemplos e interrogações afirmativas que se trata de disputa política e que a denúncia sempre surge de quem está na oposição. A Sofia tem razão. O Manuel também. É aí que surge o nosso problema. Agirmos dentro do quadro e das regras políticas actuais é corrermos o risco de, mesmo sendo justos a criticar, sermos unilaterais ou, não criticando porque não queremos ser unilaterais tornarmo-nos coniventes e acomodados ao status quo. Porém, hoje só há status quo. Então, o que é que nos resta?

O nosso problema é este: a mentalidade do nosso tempo não corresponde já ao modelo político que se pratica. Vivemos num estilo político do passado, com as suas jogadas e truques, esquemas e montagens, mas verdadeiramente já ninguém, que pense com autenticidade, está nesse registo. A classe política e a cidadania começam a ser de órbitas diferentes e desfasadas. E a ética começa a superar a simples legalidade.

A ética, que se opõe à moral no sentido em que a consciência dos indivíduos não pode esconder-se indefinida e indistintamente em regras estáticas ou sem progresso mental, é a expressão da superioridade do género humano e a garantia do seu aperfeiçoamento. A ética, ou educação, supera o que está, em nome do que há-de vir e afirma-se com coragem e determinação sobre a massa informe e retrógrada das morais inertes, imóveis e anquilosadas.

O que fazem os políticos?, agarram-se à lei ou à moral e reduzem-na à sua expressão mais literal para justificarem os seus actos e, com isso, condicionam a vida dos indivíduos e garantem a sua perpetuação no poder. O que fazem as pessoas livres?, denunciam os políticos e os seus esquemas e insurgem-se contra a evidente ausência de ética nas diversas práticas seja no governo seja na oposição.

A armadilha dos políticos é a autolegitimação que se funda através de uma aparente e pretensa pluralidade social representada por partidos políticos. O que estamos sempre a criticar, ora de um lado, ora do outro, é aquilo que nos tiraniza e é só uma coisa: a classe política. A classe política é uma organização de pessoas e grupos com interesses cruzados e que se baseia numa espécie de alternâncias e alianças que garantem a sua perpetuação.

Os que pensam livremente têm dificuldade em entrar e pulverizar esta selva complexa. Os meios de que dispõem são poucos e frágeis frente aos meios de que a classe política dispõe e valida. Mas é da consciência das pessoas que pensam livremente que sempre surge a necessidade de introduzir novos valores, ou novas formas de compreender os valores, porque se apercebem do paradoxo que é a situação das sociedades em que uma classe política autista comanda uma sociedade que já não se revê nela.

A Sofia e o Manuel, à sua maneira, representam essa superação ética da moral politiqueira. Seja na indignação pelas suas manipulações, seja pela verificação de que uns e outros são o mesmo e não vale a pena estar de um dos lados se os dois lados são iguais ou parecidos, ou, pelo menos aceitam as regras de um mesmo jogo. Verificamos, assim, estarmos perante um mundo exaurido, cansado e infecundo que aguarda um novo alento que os indivíduos mais capazes possam trazer à consciência geral a partir das suas consciências individuais, quer dizer, da ética, ou educação. O resto cairá por si mesmo.

Porém, para que caia de podre, é preciso que as vozes se façam ouvir e um novo paradigma seja proposto. Não podemos ficar só na interminável denúncia e na interminável análise dos problemas. Para superar é preciso fazer. As sociedades contemporâneas ocidentais criaram pelo pensamento, pela arte, pela religião e pela ciência um modelo de convívio que se baseia na liberdade dos indivíduos. É essa a fonte da sua prosperidade (mesmo em tempos de crises financeiras). Uma teoria da inveja, minou nos últimos dois séculos as raízes desse modelo de prosperidade civilizacional que não prosperidade simplesmente económica. A cruzada da igualdade económica precaveu-se na fundamentação errónea e funesta da igualdade dos indivíduos. Essa inversão fez da igualdade dos indivíduos a antecâmara de uma pretensa nova ordem de prosperidade económica que não de liberdade.

Porém, a prosperidade civilizacional é também política, filosófica e artística. Diz respeito ao saber e à evolução espiritual dos homens. A teoria da inveja, que tem como característica principal reduzir os homens (as massas) a um igualitarismo informe e dócil ás mãos de uma qualquer tirania que se lhe queira impor, tem sido responsável pelas maiores guerras que eclodiram no mundo ocidental quando já nada o faria supor. Foram guerras sobretudo contra o individualismo perpetradas por ignóbeis instintos totalitários de matriz socialista. Perdidas as guerras, os mesmos autores perceberam que a forma de prolongar essas guerras era tomando conta da cultura e das universidades, o totalitarismo político foi então substituído pelo totalitarismo do pensamento único, ou politicamente correcto, como agora se diz. Depois do totalitarismo do internacionalismo comunista, veio o totalitarismo nacional-socialista e por fim o totalitarismo do pensamento único que nos chegou por via da cultura e da universidade.

Mesmo assim, a ideia de liberdade foi perdurando como valor essencial do mundo ocidental: é o seu motor. E, por isso, foi também sobrevivendo às atrocidades que o socialismo nas suas diversas formas e transmutações foi assumindo. Actualmente, o pensamento único é de certa forma a causa do nosso problema. O pensamento único torna-se numa moral, é ensinado em todas as escolas e em toda as universidades e vai formatando sucessivas gerações até reduzir a humanidade à unanimidade e em que qualquer oposição exige a igualdade dos opostos!...

Ora é este cenário de pensamento único que torna a política tão opressivamente monótona e desencorajante. Monótona, porque não há verdadeiramente alternativas vindas de dentro; desencorajante, porque a dimensão planetária do pensamento único vai pulverizando e relativizando toda e qualquer manifestação, organização ou simples tomada de posição. O nosso problema é esse mesmo: intervindo, não temos capacidade, por agora, de mudar nada. Instala-se, por isso, a descrença, parece não valer a pena lutar e os que permanecem na luta serão, mais tarde ou mais cedo, condicionados e integrados no sistema.

Mas, como acontece a tudo o que se torna insuportável, um momento virá em que a ruptura se há-de dar. Quem a fará, quando a fará e como a fará não sabemos dizer. Será de onde menos se espera, porque a história não se faz de previsões mas de choques. O desinteresse dos jovens pela política pode ser um bom sinal. Quando forem chamados a intervir, quando for a sua vez, talvez tragam uma nova visão e uma nova prática. Aos que, por enquanto, não têm nem meios nem disponibilidade para arriscar tudo, que produzam ao menos a literatura que outros irão por em acto. Não terá sido sempre assim?

5 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns, João-Luís!
Parece-me também a mim que é como dizes: esta "nossa" sociedade põe "de fora" a quantos tentem
viver segundo os seus próprios fundamentos - o que, tarde ou cedo, dará choque.
Um abraço

João W.

Anónimo disse...

"Puns filosóficos

Olavo de Carvalho
Jornal do Brasil, 15 de maio de 2008

Nos vários confrontos polêmicos que tive no Brasil – e, à distância, tenho ainda –, jamais encontrei um único opinador com menos de oitenta anos que tivesse o senso da verdade, mesmo em dose mínima. O que tinham, isto sim, era o apego devoto e crédulo, menos a certas opiniões do que a certas frases, às quais conferiam o título prestigioso de “verdades”, sem jamais ter tido sequer a preocupação de averiguar se o que entendiam por esse termo era algo existente na realidade ou apenas um símbolo da afeição que sentiam por si mesmos e pelo seu grupo de referência.

Sei que pareço exagerar, mas digo apenas o que vi. E, descontado um ou outro octogenário, não vi, mesmo entre os melhores e mais sensatos, de todos os partidos e correntes de opinião, um debatedor sequer que tivesse o sentimento, a vivência, a consciência profunda de que a verdade não é um direito natural, sobretudo não é um direito da juventude barulhenta, mas é uma conquista longa, dolorosa, imperfeita e fácil de perder. O amor à verdade, a busca da verdade, simplesmente não fazem parte da cultura brasileira atual. "Chercher en gémissant" é uma idéia que não ocorre aos nossos compatriotas há pelo menos duas gerações.

Três fatos chamaram a minha atenção para isso.

Primeiro: os sujeitos que menos toleravam objeções eram precisamente aqueles que mais proclamavam a relatividade de tudo e a inexistência de verdades absolutas. O mecanismo mental aí subentendido de maneira quase sempre inconsciente era no entanto simples e claro: livre de quaisquer exigências superiores que pudessem travá-lo, cada um desses fulanos tornava-se ele próprio o único absoluto. Discutir com deuses, os senhores compreendem, é cansativo e inútil.

Segundo: quando reconheciam a existência de "verdades", apelavam no máximo ao testemunho da "ciência", com a credulidade de autênticos patetas que ignoravam o caráter altamente problemático de qualquer "verdade científica" e, para dizer o português claro, nem tinham jamais pensado nisso. O símbolo "ciência" havia se tornado, para estas criaturas, um amuleto contra a complexidade do real.

Terceiro: invariavelmente, o fato de que eu houvesse mudado de idéia quanto a um ponto ou outro me era atirado na cara como prova de minha inconsistência e desonestidade, como se persistir no erro comprovado fosse o mais elevado mérito intelectual.

Não existe busca da verdade se primeiro você não fez um esforço sério de compreender o que é a verdade em si mesma, o que é essa qualidade geral misteriosa que, anexada a certas afirmações, tem o dom de as tornar dignas de reverência. Não me refiro a nenhuma especulação lógica sobre o conceito da verdade, especulação que também pode ser conduzida por meios meramente formais e sem nenhum senso da verdade. Refiro-me, isto sim, à investigação anamnética – obrigatória para todos que pretendam opinar em público –, sobre as primeiras experiências que lhes trouxeram o conhecimento direto da distinção entre verdade e mentira, entre verdade e erro. Para quase todo ser humano, essa experiência é a de ocultar uma culpa que ele sabe que tem ou a de ser acusado de uma culpa que ele sabe que não tem. A primeira noção da verdade é a da sinceridade de um indivíduo para consigo mesmo, quando toma consciência de seus próprios atos sem poder apelar ao testemunho de ninguém mais. Todas as especulações filosóficas posteriores sobre a verdade têm de partir daí. Só respeitamos a verdade porque alguma vez a possuímos e tivemos nela nossa única garantia, sem nenhum apoio exterior, e porque daí obtivemos a noção da ordem divina, transcendente a toda autoridade humana. Todo uso da palavra "verdade" que não tenha como referência a memória viva dessa experiência primordial é apenas um flatus vocis, um pum filosófico.

A arte de soltar esses puns é a única coisa que há muito tempo os brasileiros vêm aprendendo nas universidades."

Ver em:
http://olavodecarvalho.org/semana/080515jb.html

NC:

Gonçalo Pistacchini Moita disse...

João Luís, permite-me aqui dois comentários.
O primeiro para dizer que gostei muito do teu post, no qual reparo em preocupações e sentidos que me parece temos em comum.
O segundo sobre este "puns filosóficos" que aqui aparece acima, deste Olavo de Carvalho que por vezes vem visitar-nos nos teus posts. Este seu artigo, especialmente, é fantástico. Bem merecia ser colocado num post autónomo.
Um abraço
Gonçalo

Manuel S. Fonseca disse...

Meu caro João,

Antes de mais, obrigado por esta sua inteligente e cuidada reflexão e por se dar ao trabalho de nos ajudar a pôr alguma ordem na casa. Até por ser mencionado, já deveria ter vindo aqui comentar. Com atraso deixe-me juntar estes dois pontos:

1. As minhas expectativas relativamente à política são mais modestas do que as do João. Nem creio que aquilo que nos tiraniza seja a classe política. Não conheci, na minha vida, constrangimentos piores do que os da política de Salazar e isso não impedia a liberdade individual íntima e essencial. Se calhar até ajudava a estimulá-la. Aqui e agora (há que tempos que eu não usava esta pomposa expressão) basta-me que os políticos façam pequenas coisas, as coisas práticas que tornam mais fácil a vida dos cidadãos. Agradeço-lhes, até, que não façam mais do que pequenas coisas. Cabe-nos a nós fazer as grandes.
2. O João diz que o mundo em que vivemos está “exaurido, cansado e infecundo”. Apesar de haver todo um mundo que perdi – a África colonial em que cresci – e que já só existe na minha mente; apesar de haver um mundo cultural em que cresci (um determinado tipo de cinema, de poesia, de romance, de relações pessoais) e de que hoje só consigo falar com meia dúzia de dinossauros, olho para este mundo dos nossos dias(e que é tão pouco meu) com um bocadinho mais de apreço e esperança. As hordas de bárbaros às portas de Roma têm energia, criatividade, sede de vida. Será que, ao contrário do poema da Kavafis, eles vão chegar e ser uma espécie de solução?

Anónimo disse...

Não posso deixar de felicitar o Manuel S. Fonseca
por esta belíssima resposta!
Sinto o mesmo.

João Wemans