terça-feira, 16 de setembro de 2008

II. Ti Manel e Ti Jaquina

É evidente que o Ti Manel e a Ti Jaquina são analfabetos ou quase, mas têm uma grande sabedoria de vida. É bom de se ver. Porque a sabedoria de vida neste sistema pressupõe exactamente o analfabetismo. O escritor está-se a defender a si mesmo. Apenas isso. Justifica a sua ignorância, mostrando que pessoas ainda mais ignorantes que ele podem ser sábias. Aliás, apenas podem ser sábias por nada saberem de culturalmente estruturado. O problema é que este tipo de paradigma destrói o próprio valor da literatura. Alguém que escreve, e afirma quem nem sabe escrever é melhor que ele, está a lançar as sementes para que o próprio acto de escrever se torne coisa menor. E tem razão. E gosto de lhe dar razão no que lhe respeita. Faz arte menor. A arte dos Tis.

Julgava que estava em vias de extinção. Mas infelizmente renasce a todo o tempo. Repare-se que a arte vinda do povo nem sempre é arte popular, no sentido folclórico, estafado e enfadonho que geralmente tem. Hesíodo elevou-se por si mesmo à aristocracia da vida. Assumiu os valores aristocráticos, incorporou-os numa visão da vida e num modo e sentir popular e conduziu-se até à criação dos deuses. Se a sua intenção foi a ultrapassar Homero quanto à qualidade seria temerário dizer, mas ultrapassou-o geneticamente. Escavou até ao fundo o meio que conhecia. A terra. Subiu até ao maior cimo que conhecia. O céu. E neles desvelou a origem dos deuses. A sua formação.

Arte feita pelo povo, quando assume os valores aristocráticos, os faz descer à terra e os eleva até aos céus levando-nos até à origem dos deuses, sem dúvida essa é arte maiúscula. Mas arte popular que nem parte nem chega ao povo, porque dele nunca saiu, é apenas exercício de bairro. Acanhado. Isto tanto mais quanto esse povo é apenas ficcional, mera origem do autor. O escritor, hoje em dia burguês por inevitabilidade, quer assentar em terreno firme. Para ele, esse terreno é o povo. A classe que contribuiu para fazer desaparecer. Assenta em mortos em cujo homicídio participou e inventa por isso figuras em que até os nomes estão truncados. Ti Manel, Ti Jaquina.

Para dizer o quê? Que sendo pessoas de pouco banho e pouco lustre, são eles os verdadeiros, os ilustres representantes da raça humana. Eles devem ser o paradigma. Quando escava a terra apenas fica com lama. Quando sobe aos céus parte as pernas. E quando procura a origem dos deuses apenas encontra – Tis Maneis e Tis Jaquinas. Que Deus lhes perdoe, que outras coisas me ocupam neste momento.


Alexandre Brandão da Veiga

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