domingo, 1 de abril de 2007

Os trabalhos e os dias

Les Travaux et les Jours, Hesíodo, Les Belles Lettres

Falamos de uma das obras fundadoras da cultura grega. Não me vou ocupar da sua análise filológica, tema para o qual há muita gente infinitamente mais competente que eu, mas da sua relevância para a actualidade.


E em pelo menos dois aspectos me parece que releva para a reflexão contemporânea. A sua lição de vida e a sua relevância para o espaço da arte.

A postura de vida é a de um agricultor, habituado a tratar a natureza por tu, a ser por ela fascinado, que a teme e venera, mas que lhe conhece bem a dureza. Um dos ensinamentos clássicos deste livro é que a vida é luta, e essa luta pode ser destrutiva ou construtiva. Está nos antípodas da pieguice e choramingueira que domina o espaço público actual, em que a vítima sacrificial é o centro da legitimação. Não centra a vida na sentimentalidade, mas na justiça por isso mesmo. A cada um o que merece. Sem mais, mas também sem menos.

Houve civilizações mais ricas materialmente que a grega, com monumentos mais vastos. Poucas, no entanto, atingiram o seu grau de sofisticação, tanto intelectual e espiritual, como na expressão física. Nos monumentos, nas pessoas, na diversidade e invenção de modos de vida. O que é espantoso para muitos é que uma civilização tão sofisticada e urbana se identificasse a si e à sua origem com um manual feito por um agricultor. O espanto só pode dar-se em gente superficial. É que, como todas as culturas realmente civilizadas, não perdeu nunca o contacto com a terra. O construtor da cidade vive também no campo, conhece-o e às suas riquezas e dificuldades.

O grego era bem lúcido. Sabia que era também na sua fonte agrária que se encontrava a sua força. Não esquecia a lição de realismo, de dureza da vida, que o agricultor lhe dá. A vida na cidade é diversa da campestre, mas não isenta da dureza natural. A doença ataca, a morte fulmina, e a chuva ou a seca invadem. A cidade não é um tubo de ensaio, nem uma experiência segredada laboratorialmente da vida. Faz parte dela e participa das mesmas condições fundamentais.

A lição para a contemporaneidade é a de que os gregos sabiam ver bem melhor que nós que nunca se está isento do húmus e que por debaixo do asfalto está sempre o mesmo planeta que obedece às mesmas leis.

A segunda lição a retirar é de natureza artística e não menor.

O que é esta obra? Uma peça processual. Nem mais nem menos. Se ficta, se em acção judicial ficta ou verdadeira, ignoro. Os eruditos podem discutir à exaustão a questão, que tem o seu interesse, mas que irreleva para estes efeitos.

O que é espantoso é que uma obra fundamental, e fundamental para uma cultura tão especial quanto a grega, mais não tenha que a forma de uma peça processual. Seria impossível na nossa época imaginar alegações ou um requerimento inicial que fossem considerados peça de arte, quanto mais fundamentais para uma cultura.

É evidente que isto diz algo sobre as consequências da especialização. Passou a ser técnico o que antes era humano, o que é inevitável e tem muitos lados positivos. Assim acedem à luta, e muitas vezes legitimamente, os incapazes para exprimir a dimensão humana da vida. É necessário, tem muitos lados positivos e não pode ser deplorado.

Mas não deixa de ser significativo e uma lição de lucidez para a cultura contemporânea. Aprendemos na escola de uma forma algo simplista que as formas de arte e de cultura se expandiram no séc. XX. Sentimos que abrangemos um espaço bem mais vasto, sentimo-nos a viver em bem maior império. Não estou em condições neste momento de fazer o cômputo final. A verdade é que temos de aceitar que se perderam territórios ricos da expressão artística. Entre os gregos uma peça processual, ficta ou não, poderia ser obra maior da literatura, como a celebração de matrimónios ou vitórias olímpicas.

Mas mesmo antes de fazermos o balanço final para sabermos se em cômputo geral perdemos ou ganhamos com esta troca de territórios, o que é inequívoco é que a arte e a cultura perderam terrenos férteis de criação. Se eram inevitáveis ou não, é coisa sobre a qual nada direi agora. Mas não devemos esquecer que o que muitos julgam ser um alargamento mais não é que uma translação. E que o lastro perdido pode ser irrecuperável, mas era sem dúvida valioso.

Alexandre Brandão da Veiga

http://www.lesbelleslettres.com/livre/?GCOI=22510100141150

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