segunda-feira, 2 de abril de 2007

As vidas dos outros

Li há dias, na rubrica Casa Encantada de João Bénard da Costa no Público, um comentário à sua experiência de viajante pelos países do Leste Europeu, nomeadamente, à Alemanha comunista de Hoenecker em 1983, a propósito do filme de Florian Henkel Donnersmark Das Leben der Anderen (As Vidas dos Outros). Referia o cronista que o aspecto que para ele assume maior relevância no filme é a conversão do capitão Gerd Wisler, quadro médio da Stasi, do polícia implacável e insensível em nome de uma ordem socialista abstracta e totalitária num agente subversivo e desobediente em nome da liberdade individual, antecâmara da possibilidade de mudança de mentalidades.

É claro, que este aspecto, diríamos construtivo, do filme não teria qualquer viabilidade se tivesse surgido sem uma razão necessária e suficiente capaz de operar no real. Segundo Álvaro Ribeiro, o Romance (e isso o caracteriza como estilo) estrutura-se na sequência de três momentos: os estados, os progressos e os conflitos. Em A Vida dos Outros, o estado é a própria situação do regime e dos seus agentes cumprindo as ordens e as finalidades da ordem imposta; o progresso está no processo do capitão que, por via da penetração na intimidade do casal, licenciada pela necessidade de realizar “escutas” invasoras da sua privacidade doméstica, é “infectado” por uma realidade que na sua solidão feita de isolamento o perturba inesperadamente, que é o amor, e até podíamos dizer o amor heróico, dedicado, que perante toda a adversidade social resiste e é compreensivo; e, finalmente, o conflito, é o conflito íntimo em que a ética, a ideia de uma liberdade individual que se sobrepõe ao dever da moral institucionalizada e obediente e, que, como todo o procedimento ético, implica o risco de vida e a entrega às consequências penosas da sua ousadia.
O estado do capitão Gerd é o seu procedimento como um bom funcionário e um diligente interrogador que ensina o que pratica, sempre desconfiado que pode prestar um serviço ainda melhor do que o que lhe é pedido agindo com imperturbável frieza e calculismo. O progresso dá-se pelo confronto que nele se abre entre dois mundos: o do amor íntimo e autêntico que escuta e imagina por detrás da porta e o amor mercenário que compra, em minutos tão frios e inapeláveis como as suas escutas. O conflito que resulta da evolução desse progresso é o culminar da procura de uma humanidade insuspeitada até então que a pouco e pouco o foi invadindo e que nele germinou até à libertação num acto isolado mas universal, um acto de revolta contra um mundo em que verdade e a justiça estão ausentes e a liberdade ou o amor proibidos.
A propósito da conversão do capitão da Stasi, JBC cita Hannah Arendt — “a liberdade só surgiu na nossa tradição filosófica em consequência da experiência da conversão religiosa: primeiro a de São Paulo, depois a de Santo Agostinho” — com a finalidade, precisamente de demonstrar que a conversão é própria do homem na sua procura da perfeição num bem que se opõe, tantas vezes, ao fixismo de regimes totalitários ou de correntes culturais que pretendem esquematizar a realidade do homem concreto. Não será a liberdade na nossa tradição apenas filha da conversão religiosa. Na nossa tradição, a liberdade, que é a liberdade de pensar, tem origem na filosofia e no seu primeiro expoente da nossa cultura: Sócrates. Foi pela liberdade de pensar que Sócrates foi condenado e foi pelo respeito da ordem e da lei que preferiu morrer a fugir demonstrando, assim, que o pensamento e a responsabilidade são valores superiores e decisivos no destino ético do indivíduo e da humanidade.
Resta saber se, como conclui o autor da crónica, é a vontade que é responsável pela mudança: “Acredito que são mais as vontades que mudam os tempos do que os tempos que mudam as vontades”. Demonstra Orlando Vitorino na sua admirável “Refutação da Filosofia Triunfante” de 1976, que o primado da vontade sobre o pensamento especulativo é a origem, na modernidade, de toda a acção. Situando em Santo Agostinho de Hipona, a origem dessa inversão, o filósofo conclui ao longo da sua refutação através de toda a história da filosofia da nossa tradição, que a vontade é o que introduzido no discurso da modernidade veio desviar, essa mesma tradição, da liberdade individual que a partir de Sócrates a civilização ocidental fundara. A acção deixa de ser uma consequência do pensamento especulativo para se anular no agenciamento temporal da vontade cujo princípio não é determinado pela consciência individual. Ora, toda a acção que não resulte do pensamento dos princípios só pode dar origem à escravidão, escravidão a que os regimes totalitários procuram sujeitar os homens e os povos queimando a terra que frutifica para louvor e esplendor da verdade: o pensamento filosófico, especulativo e individual.

João Luís Ferreira

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