terça-feira, 3 de abril de 2007

O Fim do Recreio

O Mundo Ocidental viveu a segunda metade do Séc. XX D.C. (agora muito política e correctamente dito Séc. XX da Era Comum), como se de um Tempo de Recreio se tratasse. Situação ainda mais evidente e notável no último quarto do Século findo, revivendo e continuando, quem sabe, de um outro modo, o fervilhar dos esfusiantes anos de entre guerras, até à abrupta irrupção da II Grande Guerra ou também dita Guerra Mundial. Mas esquecendo os loucos anos 30, afinal, depois da ruidosa queda do Muro de Berlim, olhando os feitos, as conquistas, as realizações operadas sob os auspícios do Ciclo Iluminista iniciado com a Revolução Francesa, sob o jugo do qual ainda, infelizmente, subsistimos, regozijou-se o Ocidente com o Fim da História e a fatal idade de paz e abundância que aí estava prestes a chegar. Uma ilusão. Compreensível ilusão, por certo, mas ainda assim, ilusão.


Nigel Henderson, 1951


Entretanto, bem sabemos todos também como soou o sinal do Fim de Recreio e ruíram, em segundos, pulverizadas em estilhaços todas as mais altas e jubilosas ilusões de advento da já tão próxima idílica idade.

Pasmo, surpresa, incredulidade. De súbito, a Morte tornava-se de novo real, assustadoramente real. Os árabes, essa longínqua abstracção de um povo quase ainda nómada, quase confundido com o próprio petróleo que lhes dava toda a existência e realidade, não só ousavam desafiar a Civilização como, há muito, como sempre, estavam, afinal, no meio de nós _ sem que nós disso nos tivéssemos apercebido sequer. Mas pior do que isso, como se tudo isso pouco fora, como se maior ultraje ainda possível fora, aquilo mesmo que nos singularizava, distinguia, superiorizava, isso mesmo que tão inexpugnáveis nos tornava, transformara-se no próprio e vero instrumento da queda, destruição, devastação. Não apenas simbólica mas, acima de tudo, tragicamente real. Negra Hora. Negros dias. Negra Idade.

Ah, como foi possível???...



Joel Meyerowitz, Ground Zero, 2001

Certo, alguém falara já de um suposto Choque de Civilizações, um tal de Hutchinson, se bem nos lembrávamos _ mas não fora isso mero, muito polémico e estéril académico debate, como sempre sucede com os académicos debates?...

Árabes...

Certo, mesmo do ponto de vista linguístico, como nos ensina Bernard Lewis, o árabe, propriamente dito, é uma língua semita, da mesma família que o hebreu, o aramaico e o etíope; o persa, uma língua indo-europeia e, consequentemente, mais próxima das línguas mais importantes da Europa e da Índia; o turco, uma língua do grupo altaico, remotamente relacionado, como é opinião comum, com o finlandês, estónio e húngaro. E mesmo do ponto de vista político, ele há a Arábia Saudita e Marrocos, o Egipto e o Irão, a Síria e a Turquia, e todos os demais. Mas, numa palavra, não são todos árabes? Árabes e muçulmanos?...

Certo, antes que alguma evocação menos adequada nos desperte alguma incómoda memória menos própria também, depois de, por um dia, todos termos sido americanos, peritos sejamos todos em cultura árabe, muito lidos no Corão, muito intimamente familiarizados e relacionados com os seus usos, costumes e tradições.

Acomodemo-nos, pois!...

Que sucedeu? Que se passa? Porque se transformou e chegou aquela que é dita e reconhecida como uma das mais brilhantes Civilizações da História a esta situação que reputamos de deplorável?...

Teocracia, senhores!... A não separação entre a Igreja e o Estado!... Inveja!... Muito simples.

Hummmm... Com certeza, não podemos deixar de conceder: um ignorante como nós não poderá deixar de admitir como válidas, muito válidas mesmo, tão evidentes razões por tão diversas quanto doutas celebridades expostas. Ah!, Teocracia, nefanda palavra _ só isso não explica quase tudo? E, em bom rigor, o facto de não haver igreja enquanto tal, outro tanto não explicará?...

Porém, relembrando não menos sábias shakespearianas palavras, sabendo sempre haver mais mundos do que aqueles que imaginamos ou a nossa vã filosofia é capaz de conceber, interrogamo-nos singelamente: será assim tão simples?

Orlando Vitorino, em admirável pequeno livro intitulado O Plutocrata, como admirável foi tudo quanto escreveu, dava como responsável pela decadência da designada Civilização Árabe, comentando uma obra de Moisés Espírito Santo sobre os Mouros Fatimidas, o, sob tantos aspectos notável, Al Ghazâlî (450-1059), cujas obras, ainda hoje, segundo rezam as crónicas, se constituem como as obras mais lidas no mundo árabe logo depois do próprio Corão. Al Ghazâlî foi, de facto, também o autor da menos lida Autodestruição dos Filósofos, onde procurou demonstrar, tendo sobretudo em mente Avicena (370-980), como é ou será sempre impossível à razão, de per si e apenas de per si, alcançar a certeza, a verdade, Deus ou Alá. Obra onde procurava em simultâneo provar e demonstrar, filosoficamente, como a demonstração filosófica não demonstra nada.

Ironias do destino.

Averróis, (520-1126), o Comentador, por antonomásia, consciente dessa fraqueza, esgrimindo em defesa da sua dama, escreve, em seu tempo, a Autodestruição da Autodestruição, refutando, ponto por ponto, a obra de Al Ghazâlî. Um feito que não o terá ajudado no fim da terrena existência, é certo, mas ao qual não se podem assacar todos os dissabores, afrontas e, por fim, exílio, sofridos, vendo ainda os seus livros queimados e o seu nome execrado entre os seus.

Protegido, numa primeira fase, tornando-se a Filosofia sempre suspeita aos Ortodoxos e Homens da Lei (e imaginamos que também às Mulheres), com a ascensão destes e as intestinas guerras entre Almorávidas e Almoádes pelo meio, não foi difícil a Al Mansur, numa segunda fase, usar, simplesmente, Averróis como moeda de troca.

Se Al Ghazãlî contribuiu decisivamente para o afastamento entre filosofia e pensamento religioso, só indirectamente poderá ser responsabilizado pelo fim da filosofia no mundo árabe, como Henry Corbin afirmara já, de resto, na sua História da Filosofia Islâmica, seguindo inclusive o seu curso até finais do séc. XIX e início do Séc. XX.

Por este excurso, regressando agora ao ponto que nos importa, poder-se-á entender, compreensivelmente, como algo excessiva a afirmação de Orlando Vitorino sobre a responsabilidade de Al Ghazâlî como primeiro e decisivo responsável pela decadência da dita civilização árabe. Mas o mesmo não se poderá dizer da sua concomitante tese segundo a qual a ausência da filosofia não pode deixar de conduzir os povos senão à mais plena decadência. Tese que é uma quase tão só mera tautologia: civilização radica em cidade mas, como é óbvio, poderá uma cidade aspirar constituir-se verdadeiramente como tal, i.e., como mais do que um mero aglomerado populacional, por mais vasto que seja, sem filosofia que a conceba como tal? Evidentemente que não.

Arrojada afirmação a necessitar de subsequente demonstração? Concede-se, aí residirá talvez o segredo, mas, não se afigurando este o momento adequado a tal, suspendamo-la para ulterior e mais adequado momento.

Entretanto, ouvimos já distintamente os leitores a formularem mentalmente estas outras e muito justas perguntas: se a filosofia persistiu no mundo árabe, como se afirma ter mostrado e demonstrado Henry Corbin sem margem para dúvida, o que conduziu então a dita civilização árabe à sua decadência? Nem toda a filosofia salva?...

Nem toda a filosofia salva? Em rigor não o sabemos mas admitimos que sim, pelo menos até refutação próxima _ como diriam os nossos muito modernos e popperianos cientistas de hoje.

Independentemente dessa pequena grande questão, porém, cumpre afirmar não se nos afigura haver sido exclusivamente essa a questão fulcral no mundo árabe. A questão, ou mesmo problema, afigura-se-nos ter sido, para além da existência ou inexistência da filosofia, a não só a sua completa marginalização mas, mais fundo do que isso, a sua igualmente completa e radical separação do pensamento religioso, suspeitamos mesmo, ab inicio, salvo muito raros e honrosos momentos. O que responde também à primeira pergunta.

No entanto, a nossa perplexidade é também outra, mais concretamente, o não vermos comummente formulada igual interrogação a respeita do próprio conceito de decadência. Por outras palavras, terá havido, de facto, vera decadência da dita civilização árabe ou tão só mera estagnação? Não será o nosso conceito de decadência da dita civilização árabe ditado por comparação com o ascensional movimento de evolução da Civilização Ocidental?...

Na verdade, o que torna tão específica, singular, única, a nossa Civilização Ocidental, a nossa Greco-Romano-Cristã Civilização?...

Talvez isso mesmo, o ser exactamente Greco-Romano-Cristã.

Da Grécia, a Filosofia. De Roma, a Individualidade. Do Cristianismo, a Liberdade (na Ásia, um só era livre; na Grécia, alguns só eram livres, com o Cristianismo, todos são livres _ as imortais palavras de Hegel).

Tudo o mais veio por acréscimo.

Estamos então a salvo? Estamos salvos?...

AhAhAhAH!, a sempiterna e muito cartesiana confiança, sem margem para dúvidas.

Não foi apenas isso que nos distinguiu e nos distingue. O que nos distinguiu também foi a Filosofia Moderna, a Filosofia do Norte, a Filosofia do Ser, e a sua emancipada filha Tecnologia, despida de alma e apaixonada dos novos Titãs. O que não é de bom augúrio, como todos bem sabemos também.

Se Orlando Vitorino não terá sido totalmente justo pata Al Ghazâlî, certo estava, como não poderia deixar de estar, ao preceituar não poder haver civilização sem filosofia, donde, compreensível devém que, admitindo a responsabilidade de Al Ghazãlî pelo degredo sofrido pela filosofia no mundo árabe lhe imputasse tal responsabilidade. E certo é encontrar-se a Filosofia no centro de toda a Civilização Greco-Romano-Cristã, a nossa Ocidental Civilização. Na Grécia, por inerência, quase diríamos; em Roma, no Direito; no Cristianismo, da Patrística a S. Boaventura e S. Tomaz, de S. Boaventura e S. Tomaz a João Paulo II e bento XVI. E como diríamos nós, os portugueses, não há verdadeira Filosofia sem Teologia, não verdadeira Teologia sem Filosofia, não há Civilização sem uma e outra.

Mas este mundo é também o mundo da Filosofia Moderna... Toda a Filosofia salva?...

Atendamos ainda uma última vez a Orlando Vitorino quando, em célebre conferência, comparava o confiante pensamento do nosso Leonardo Coimbra, a Filosofia Bárbara, ao pensamento de Heidegger, o último epígono da Filosofia, e as citadas palavras deste último numa das suas últimas ou mesmo última entrevista:«...só um deus nos pode salvar!...»

Não há esperança para a Filosofia?...

Talvez...


Nigel Henderson, 1951


Mas terminou a Hora do Recreio. É tempo de voltar à Escola, à Academia, talvez ao Liceu, quem sabe.

Gonçalo Magalhães Collaço




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