terça-feira, 15 de abril de 2008

A Origem do Mundo

Publicado ontem aqui.

Pode haver uma, mesmo dez imagens em cada rua. Não importa! A nudez feminina sempre nos provocará o mesmo soluço comovido e encantado. Digo isto num dia em que os jornais de todo o mundo esconderam a sua óbvia solidão noticiando mulheres nuas, a começar na foto benigna de Carla Bruni vendida por 58 mil euros.

a benigna Carla Bruni

Em Serradilla del Arroyo, mais perto da fronteira portuguesa do que da cidade de Salamanca, os jornais espanhóis descobriram, nuas e arruinadas, as mães desse pueblo que decidiram fazer-se fotografar para um calendário em poses de ininterrupta carnalidade. Queriam, com as vendas, pagar um centro de lazer para os seus filhos. A infrene e filantrópica exposição do ventre materno teve um fim cruel. Devem agora 9 mil euros às tipografias. Acabaram mais despidas e mais pobres.

Em Nova Iorque, os jornais proclamam a venda de um secretíssimo filme de 15 minutos em que Marylin, vestida, brinda um parceiro cuja cara nunca se vê com o que era suposto ser um humilde fellatio e a que película confere cruel perenidade. O filme sofreu anos de conspícua análise do FBI, quando J. Edgar Hoover pretendia provar que o homem sem rosto era John F. Kennedy. Lembro-me, sempre me lembrarei, da fotografia de Marylin nua, a pele escandalosamente branca, contra um aveludado fundo vermelho.

tão nua como o mais terno amor
Era, nessa célebre imagem, “a” mulher nua, tão nua como o mais terno amor. Juro que não é por falso pudor, mas não quero ver o filme de sexo caseiro (o súbito e descalço sexo caseiro) que agora lhe atribuem. O comprador é dos meus e promete que o filme permanecerá privado, demonstrando que o quase milhão de euros que pagou por ele é o correlato objectivo do sua paixão pela beleza convulsiva da mulher frágil cuja campa, no cemitério de Westwood, nunca visitei.
Passo à primeira página do Financial Times. Em New York, New York, a nudez e o dinheiro voltam a entregar-se a lânguida confraternização. Refiro-me ao quadro de Lucien Freud, retratando a nudez primitiva e farta de Sue Tilley. "Big Sue" vai ser leiloado, prevendo-se que atinja o valor de 33 milhões de dólares, o que o converteria no quadro mais caro de um artista vivo. “Big Sue”, como os íntimos chamam a este quadro a que Lucien Freud, neto indesmentível do seu avô psicanalítico, deu o título de “Benefits Supervisor Sleeping”, parece-me uma versão carnavalesca da tremenda “Origem do Mundo” de Courbet.







Big Sue, Lucien Freud

A origem do mundo, Courbet

Mas nem a exuberância tumultuosa do corpo que repousa sobre o sofá, ameaçando-lhe o equilíbrio e a integridade, impede o estremecimento face a esta carne que, das camponesas de Serradilla del Arroyo à intimidade da primeira dama parisiense, da parodiável pin-up Big Sue à candura de Marylin, prepara o apetite de todas as coisas.

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