domingo, 23 de março de 2008

Permanecei no Meu amor (Jo 15, 9)


É Páscoa. E os jornais assinalam o êxodo de milhares de portugueses, em busca de férias, para as Caraíbas e o Brasil.

Longe do ritmo do Tríduo e de quaisquer tradições rituais, partem uns e ficam outros. Cá ou lá, alheios à celebração do sentido de Deus presente, estranhos ao mistério da cruz e da Páscoa.
Vivemos num mundo e num tempo de auto-suficiência. Para um número crescente de homens e mulheres, Deus não é um problema – isto é, a ideia de Deus não se coloca como problema. A natureza e o significado da questão religiosa não interpelam a maior parte. O apelo da transcendência e a experiência do sagrado vão estiolando. Paralelamente, e não por acaso, toda a indagação metafísica perde terreno.
Olhando em volta, no meio do frenesim, falha o pensamento. E, sobretudo, o pensamento que se pensa. Poucos se questionam, poucos se perturbam, poucos se detêm. Com maior ou menor consciência, quase todos evitam as perguntas definitivas. Tipicamente, o homem e a mulher de hoje preferem não se confrontar (e não se atrapalhar) com as dúvidas radicais da existência.
Pragmatismo? Prudente intuição de contingência? Não sei. Mas o certo é que, como diz Scruton, «o ser racional vive numa condição de solidão metafísica» (Guia de filosofia para pessoas inteligentes, Guerra e Paz, 2007, p.107).

Ora, tal tem inevitáveis custos. Um dos mais graves, e aquele que aqui importa, é um custo de implicação. Ou seja, a refutação da nossa historicidade cristã como resultado da própria recusa daquele questionamento essencial.

A esse propósito, Benedetto Croce foi lapidar: «não podemos não nos dizer cristãos». Mas, justamente, só seremos capazes de tal postulado se nos colocarmos perante a nossa própria condição existencial – porque esta, necessariamente histórica e concreta, remete-nos para a tradição aberta pelo anúncio de Cristo. Isto é, para nos dizermos cristãos, temos que nos saber cristãos e, para tanto, mais até do que pensar, temos que nos pensar.

São Paulo disse um dia aos Coríntios: «se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação e vã a nossa fé» (1 Cor, 15, 13-14). Na Páscoa, celebra-se a felicidade desta fé. O sentido do cristianismo como mensagem de salvação e de mistério. O sentido do cristianismo como exaltação da esperança. Felizes pois os que acreditam, felizes os que confiam.

Mas aos outros, aos que não acreditam, nesta como em todas as Páscoas, só mesmo a fé deveria ser-lhes estranha. Fruto da história e da cultura, crentes e não crentes reconhecem que a «única possibilidade de sobrevivência humana está depositada no preceito cristão da caridade» (Gianni Vatimo, “A era da interpretação”, in O futuro da religião, Angelus Novus 2006, p. 68).
Uma caridade que irmana. Uma caridade paciente, benigna, justa e verdadeira, que «tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta» (S.Paulo, 1 Cor, 13, 7).

Em dia de Páscoa, celebra-se o testemunho de Jesus Cristo e a decisiva passagem a que Deus convida todos os corações. A partir da Páscoa, cumpre-se a proposta de salvação que converte o amor em chamamento prático.
Todos são convocados, crentes e não crentes. Mas, mesmo com fé, não basta a confiança. No meio do bulício, é preciso querer ter disponibilidade. É preciso querer recusar o vazio e o seu absurdo. É preciso querer apostar numa redenção existencial, fundada na caritas como princípio vital de acção. No fundo, ainda que se possa querer sem crer, o crer é sempre um querer crer.

Boa Páscoa! Aos que crêem e aos que querem...

3 comentários:

Anónimo disse...

Na homilia de quinta feira santa, o bispo do Porto evocou o exemplo da Madre Teresa de Calcutá. Depois de o evangelho lembrar que Cristo lavou os pés dos seus discipulos.
MLB

Madalena Lello disse...

Sofia, entretida a ouvir música num post mais lá para a frente acabei por não ler este seu texto.
Segundo o evangelho de Mateus, Jesus no monte das oliveiras disse a três dos seus discípulos : “A minha alma está numa tristeza mortal; ficai aqui e vigiai comigo.”, Por três vezes lhes pediu, por três vezes o homem adormeceu. Nesta Páscoa, não adormeci, mas uma tristeza invadiu-me e impediu-me da felicidade habitual que costumo sentir na celebração do Domingo de Páscoa. Sexta-Feira Santa, terminei um post com estas palavras” O Homem dormiu, não conseguiu vigiar…e hoje uma tristeza mortal invade-nos quando olhamos para as guerras e atrocidades do mundo.”
Foi para mim reconfortante ler este seu texto em que relembra “o sentido do cristianismo como exaltação da esperança”, por isso obrigado.

Inez Dentinho disse...

«Eu sou o caminho, a verdade e a vida». Que déspota poderia ter este atrevimento sem ter ultrapassado a própria vida? Sem conhecer o que, para nós permanece oculto?
Na verdade, S. Paulo (tinha de ser um jurista!) circunscreve a questão ao essencial: «Se Cristo não Ressuscitou, é vã a nossa pregação e vã a nossa fé».
Na Páscoa de 2001 entrevistei o padre Vasco Pinto de Magalhães apenas sobre a Ressurreição, o Cristo Cósmico, a morte e o sofrimento. Retenho duas ou três ideias:
«Não temos corpo, somos corporais. As células estão sempre a nascer, em transformação. O corpo não é uma coisa que se tenha, é uma diomensão que se vive»;
«Os gregos falam da imortalidade. Recentemente as doutrinas mais esotéricas e, de alguma maneira marcadas pelo espiritismo, falam nas reencarnações e vão buscar isso às espiritualidades orientais. Os Cristãos traduziram o termo técnico teologicamente chamado Ressurreição que depois entendemo-lo - um bocadinho à grega - como um regresso a este mundo. Mas significa a vida para além da morte num outro espaço, num outro tempo, para o qual não temos linguagem».
Falou de tudo isto com palavras simples, de Jesuíta que não acredita em rios que possam correr sem desaguar.