O rei está nu
No Público de hoje, António Borges dá uma entrevista importante. Em primeiro lugar, pelo interesse do que diz. Depois, pelo simples facto de dizer. Finalmente, pela circunstância em que assumiu dizer.
Dos impostos e da política orçamental aos grandes investimentos públicos, da realidade empresarial à promiscuidade que define o controlo dos interesses económicos, do empreendedorismo ao papel do Estado e à reforma da administração pública, do sistema bancário aos modelos de regulação e supervisão, de Portugal à Europa e aos Estados Unidos, António Borges revela competência, espírito crítico e visão. Sabe do que fala e torna-o evidente. O que, neste tempo de ignorância atrevida, feito de trivialidades redondas e pretensiosas, sempre bastaria para que a leitura constituísse um verdadeiro bálsamo.
Mas há mais. E não menos relevante. António Borges não foge aos temas difíceis, nem molda o seu discurso às regras da conveniência mundana. É muito mais imprudente do que habitualmente são os entrevistados. E, não se subestime, muito mais corajoso.
Refere-se à oposição e ao PSD sem cerimónias. «A oposição – diz – não existe e está completamente descredibilizada». E continua: «o PSD atravessa uma fase muito má, que não é de agora». Sobre Luís Filipe Menezes, mais adiante, refere: «é um erro, um lapso do PSD. E julgo que não vai durar». Depois disto, nem sequer se furta à dificuldade que ensombra a possibilidade de construir uma alternativa de futuro: «não são só as regras. É um conjunto de factores que tornam limitadas as escolhas».
No entanto, reserva ao Governo a parte mais letal e grave da sua entrevista. Sem papas na língua, torna público o facto de o Ministro da Economia, Manuel Pinho, lhe ter comunicado a cessação imediata de todos os contratos com a Goldman Sachs, no dia seguinte ao fim-de-semana do Congresso do PSD (Pombal, 2005), em que fora crítico das políticas governamentais. No mesmo tom, sem medo, confessa ter sido mais tarde intimado a um pedido de desculpas, aparentemente devido ao mesmo Ministro da Economia, como forma de se retractar da oposição que havia manifestado no âmbito da mudança da presidência da EDP, há cerca de dois anos. Aqui, de novo, sob cominação de nunca mais haver «trabalho para a GS em Portugal» - e esclarece, «aliás, como nunca mais houve».
Em três páginas de um jornal de domingo, António Borges confronta-nos com o país que somos. Um país entregue a um Governo autoritário, incapaz de perceber o sentido da liberdade e do seu exercício responsável, intolerante para com aqueles que perfilham uma visão diferente da realidade, implacável para com a opinião crítica. Um país entregue a uma oposição em auto-destruição, arrogante também ela no seu patético autismo. Um país incapaz de merecer a democracia que conquistou há quase 40 anos. Um país que desperdiça o seu potencial criador e falha consistentemente o desafio do desenvolvimento.
No entanto, nessas mesmas três páginas, António Borges deixa-nos um fundamental elemento de esperança. A esperança nas pessoas e no poder da sua intervenção política, militante e cívica. Em momento de silenciamento acrítico e cúmplice, António Borges falou. E disse o que não é costume dizer-se (isso mesmo evidenciou Manuel Pinho, já esta tarde, nas pungentes declarações feitas a propósito desta entrevista…). Sem medo das consequências. Antes, para o mal e para o bem, dispondo-se a elas.
Ora, na minha perspectiva, é disto que Portugal precisa. Que pessoas credíveis levantem a voz e a façam ouvir. Que digam alto o que muitos sabem em surdina. Que mobilizem os que estão fartos e querem mudar de vida.
O país não vai bem. Mas é preciso que alguém tenha a coragem de o gritar. Como um dia, no meio da multidão, alguém gritou: «o rei vai nu!».
Termino, como António Borges. É preciso gente «completamente nova». É urgente «uma maneira de fazer política completamente nova». E é imperativo «aparecer uma vaga de fundo que permita mudar».
Post Scriptum – Faço o meu registo de interesses, deixando dito que subscrevi a moção apresentada ao congresso do PSD, em 2005, que tinha António Borges como primeiro subscritor. Depois disso, só me lembro de ter estado com ele uma vez, num almoço que, ao acaso, reuniu um pequeníssimo grupo de congressistas com fome e sem mesa marcada, no intervalo do congresso de Lisboa. Hoje, gosto de o ver regressar assim. Com coragem, com ideias e com vontade de participar.
Dos impostos e da política orçamental aos grandes investimentos públicos, da realidade empresarial à promiscuidade que define o controlo dos interesses económicos, do empreendedorismo ao papel do Estado e à reforma da administração pública, do sistema bancário aos modelos de regulação e supervisão, de Portugal à Europa e aos Estados Unidos, António Borges revela competência, espírito crítico e visão. Sabe do que fala e torna-o evidente. O que, neste tempo de ignorância atrevida, feito de trivialidades redondas e pretensiosas, sempre bastaria para que a leitura constituísse um verdadeiro bálsamo.
Mas há mais. E não menos relevante. António Borges não foge aos temas difíceis, nem molda o seu discurso às regras da conveniência mundana. É muito mais imprudente do que habitualmente são os entrevistados. E, não se subestime, muito mais corajoso.
Refere-se à oposição e ao PSD sem cerimónias. «A oposição – diz – não existe e está completamente descredibilizada». E continua: «o PSD atravessa uma fase muito má, que não é de agora». Sobre Luís Filipe Menezes, mais adiante, refere: «é um erro, um lapso do PSD. E julgo que não vai durar». Depois disto, nem sequer se furta à dificuldade que ensombra a possibilidade de construir uma alternativa de futuro: «não são só as regras. É um conjunto de factores que tornam limitadas as escolhas».
No entanto, reserva ao Governo a parte mais letal e grave da sua entrevista. Sem papas na língua, torna público o facto de o Ministro da Economia, Manuel Pinho, lhe ter comunicado a cessação imediata de todos os contratos com a Goldman Sachs, no dia seguinte ao fim-de-semana do Congresso do PSD (Pombal, 2005), em que fora crítico das políticas governamentais. No mesmo tom, sem medo, confessa ter sido mais tarde intimado a um pedido de desculpas, aparentemente devido ao mesmo Ministro da Economia, como forma de se retractar da oposição que havia manifestado no âmbito da mudança da presidência da EDP, há cerca de dois anos. Aqui, de novo, sob cominação de nunca mais haver «trabalho para a GS em Portugal» - e esclarece, «aliás, como nunca mais houve».
Em três páginas de um jornal de domingo, António Borges confronta-nos com o país que somos. Um país entregue a um Governo autoritário, incapaz de perceber o sentido da liberdade e do seu exercício responsável, intolerante para com aqueles que perfilham uma visão diferente da realidade, implacável para com a opinião crítica. Um país entregue a uma oposição em auto-destruição, arrogante também ela no seu patético autismo. Um país incapaz de merecer a democracia que conquistou há quase 40 anos. Um país que desperdiça o seu potencial criador e falha consistentemente o desafio do desenvolvimento.
No entanto, nessas mesmas três páginas, António Borges deixa-nos um fundamental elemento de esperança. A esperança nas pessoas e no poder da sua intervenção política, militante e cívica. Em momento de silenciamento acrítico e cúmplice, António Borges falou. E disse o que não é costume dizer-se (isso mesmo evidenciou Manuel Pinho, já esta tarde, nas pungentes declarações feitas a propósito desta entrevista…). Sem medo das consequências. Antes, para o mal e para o bem, dispondo-se a elas.
Ora, na minha perspectiva, é disto que Portugal precisa. Que pessoas credíveis levantem a voz e a façam ouvir. Que digam alto o que muitos sabem em surdina. Que mobilizem os que estão fartos e querem mudar de vida.
O país não vai bem. Mas é preciso que alguém tenha a coragem de o gritar. Como um dia, no meio da multidão, alguém gritou: «o rei vai nu!».
Termino, como António Borges. É preciso gente «completamente nova». É urgente «uma maneira de fazer política completamente nova». E é imperativo «aparecer uma vaga de fundo que permita mudar».
Post Scriptum – Faço o meu registo de interesses, deixando dito que subscrevi a moção apresentada ao congresso do PSD, em 2005, que tinha António Borges como primeiro subscritor. Depois disso, só me lembro de ter estado com ele uma vez, num almoço que, ao acaso, reuniu um pequeníssimo grupo de congressistas com fome e sem mesa marcada, no intervalo do congresso de Lisboa. Hoje, gosto de o ver regressar assim. Com coragem, com ideias e com vontade de participar.
6 comentários:
Antes de 2005, quem geria os intereses e as sinecuras era o...PSD...ao qual o A.Borges pertencia já...
Bonito, não?
Qal a moralidadae ?
Vocês não têm espelhos ?
PS, PSD, são todos iguais:infelizmente, medíocres intelectualmente, culturalmente e moralmente.
Uma absoluta descrente e vítima desses medíocres todos
Os momentos de cada têm de ser decididos por cada um. Os vazios morais, intelectuais e culturais deste ou daquele partido são sempre maiores quando estão nas oposições e têm o seu protagonismo reduzido, muitas vezes pela sua própria inépcia, ao papel de destruição dos outros. Na actual situação portuguesa não se podem distinguir os partidos pela intelectualidade, pela moralidade e pela cultura. A verdade é que o sistema político conforme está organizado deixa pouco espaço às ideias e à luta por ideias. Não vejo no que é que o PSD, apesar de mergulhado num marasmo e num labirinto histórico é inferior aos outros se acaba por ser o contraponto do PS. Também o PS esteve por baixo e então ninguém olhava para o partido com a mínima réstea de esperança num futuro. A história é a continuidade dos acontecimentos e não apenas os seus momentos.
Porquê crucificar António Borges só porque não entrou em cena quando alguém achou que ele deveria ter entrado?
Concordo quase inteiramente com o post, com duas pequenas ressalvas. A Sofia afirma:
"Um país incapaz de merecer a democracia que conquistou há quase 40 anos. "
Ora, a democracia não tem nada a ver com o que se passa hoje em dia. (Aliás, como curiosidade, quer gostemos quer não, vários estudos demonstram que não existe uma relação forte entre a democracia e o desenvolvimento económico). O problema actual é o baixo crescimento económico. A democracia está consolidada e bem sedimentada na sociedade portuguesa. Por isso, a conquista da democracia foi (e é) merecida pelos(as) portugueses(as).
Também não concordo com a afirmação "Um país que desperdiça o seu potencial criador e falha consistentemente o desafio do desenvolvimento." A frase não está totalmente correcta. Nas últimas cinco décadas, Portugal não tem falhado o desafio do desenvolvimento. Nos anos 60, a economia portuguesa registou a segunda mais elevada taxa de crescimento económico na Europa. Nos anos 80, a economia portuguesa só foi batida pelo tigre irlandês a nível do crescimento. Nos anos 90, Portugal conseguiu convergir com a União Europeia. A excepção tem ocorrido somente na última década, pois o crescimento económico tem sido muito modesto. Porquê? Porque não só nos debatemos com a entrada no euro (isto é, tivemos que nos habituar a ter uma moeda forte), como também estamos numa fase de transição de modelos económicos.
Neste sentido, nós não falhámos consistentemente o desafio do desenvolvimento. O que estamos a falhar é em fazer a reestruturação da nossa economia. É isso que está a tardar. É isso que urge completar. E é aí que os governos e as oposições têm um papel a desempenhar, para melhorar os incentivos para que a transição económica seja o mais breve e o menos penosa possível.
Duas ou três notas, de retribuição e agradecimento.
À anónima, pouco direi. Não sei com quem falo. Mas sempre adianto que a «absoluta descrença» não ajuda porque nada cria. E azeda.
Ao João Luís, agradeço o complemento - como sempre, atento, construtivo e lúcido.
Ao Álvaro, dois pequenos comentários sobre as suas discordâncias.
Quanto à primeira, assumo-o: discordamos mesmo. É certo que temos uma democracia, no que ela tem de formalmente institucional. Mas, na minha opinião, a nossa democracia material desilude - para já, fomos incapazes de densificar a vivência livre dos direitos políticos e da intervenção cívica. Votamos de quatro em quatro anos e bastamo-nos com isso.
Quanto à segunda, reconheço-me touchée! Tem razão quando me remete para o rigor da análise e quando distingue entre evolução do crescimento e reestruturação da economia. Nem sequer me refugio na difusa percepção da derrapagem que marcou - aí sim, consistentemente - a última década ou no puro recurso à hiperbole como figura de estilo... Nem as percepções, nem as figuras de estilo são as ferramentas analiticamente mais adequadas.
Assumido isto, é bem certo que temo que seja muito difícil inverter a actual tendência e trilhar o caminho do desenvolvimento consistente (porque o nosso desenvolvimento, mesmo quando assomou, foi sempre circunstancial, conjuntural - não foi feito à custa da reestruturação da economia, de ganhos efectivos de produtividade, de um salto em matéria de competitividade e, por isso, estamos assim...).
Sofia: regressado de umas curtas férias, subscrevo por inteiro e sem reservas, o seu texto.
É sempre com gosto que leio entrevistas como a que António Borges deu ao jornal Público. Apreciei particularmente a sua frontalidade, como aprecio a frontalidade que José Manuel Fernandes, director do Público, nos tem vindo a habituar nos seus editoriais.
A Goldman Sachs perdeu contratos com o Estado após críticas de A.Borges ao Governo, mas a Goldman Sachs sobrevive bem sem eles, o mesmo não podemos dizer da grande maioria das empresas portugueses, exceptuando alguns casos, como também A. Borges refere, de maior independência, como o grupo de Belmiro de Azevedo. Repugna-me, como julgo que repugna a qualquer português, a pressão do Governo sobre as empresas. Falta-nos uma verdadeira concorrência, em parte justificada pela dimensão do nosso país, veja-se o caso BCP. Jardim Gonçalves, obcecado que estava por uma eventual OPA espanhola, acabou por ter de alinhar também com o governo. Os últimos episódios do BCP, um balde de água fria, para quem acreditou, como eu, na excelência da banca privada, mas onde estão os accionistas privados, pergunta e muito bem A. Borges na sua entrevista.
Sem ironia, será que com a nossa dimensão conseguiremos um dia a verdadeira concorrência?
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